A CINDERELA E O MARTELINHO
Numa tarde quente no início do quarto trimestre de 1991, com minha câmara fotográfica Olympus Trip 35 e a namorada que há pouco tinha arranjado, visitei a casa da senhora Anayde Andreazza, no mesmo local do antigo número treze da rua Pinheiro Machado de Caxias do Sul, sobre a loja Comércio de Tecidos e Ferragens Luiz Andreazza Ltda, que está de frente para a rua Moreira César. Com essa visita, teria material mais que suficiente para o caderno especial do jornal O Polenteiro sobre o bairro São Pelegrino. Eram tantas informações e descobertas tão maravilhosas que colhera até então que já começava a pensar que as quatro páginas reservadas para o caderno eram muito pouco.
A idéia de visitar a senhora Anayde surgira após a visita ao doutor Postali, um dos antigos moradores do bairro São Pelegrino, dentista prático aposentado, com idade bem acima dos oitenta anos. Dentre as tantas coisas que ele me falou, contou sobre um pequeno martelo de prata que recebeu do amigo Luiz Andreazza quando este se casou com a jovem Anayde. Sendo padrinho do noivo, o jovem Postali recebeu o martelo de prata com a incumbência de guardá-lo por vinte e cinco anos, até o dia em que comemorariam as bodas de prata.
Empolgado com essa história tão romântica, contei-a a Graziela Andreazza, nossa colaboradora no jornal, que eu presumi que fosse parente da dona Anayde. Então descobri que se tratava de uma de suas netas, filha do seu filho, doutor Eli José Andreazza, que tinha consultório oftalmológico em frente ao edifício Jaguaribe, onde funcionava a sede do jornal O Polenteiro.
E, para aumentar ainda mais a euforia de tão boas descobertas, Graziella ligou para sua avó e nos recomendou, marcando uma data para fazermos uma visita.
No apogeu dessa euforia estava o dia de visitar a adega do martelinho de prata guardado pelo doutor Postali durante vinte e cinco anos. E o momento havia chegado. Após batermos à porta, fomos atendidos por uma senhora de noventa e dois anos, muito altiva, bem vestida e perfumada, que andava por todo recanto da casa nos mostrando tudo e contando coisas como os feitos de seu falecido marido e histórias como a do incêndio da casa logo no começo de tudo.
Na adega, mostrou-nos a porta e o pequeno quadro à altura do peito, por onde o doutor Postali pôs o braço após quebrar o vidro com o martelo de prata que seu marido tinha dado para que guardasse vinte e cinco anos antes das bodas, no dia em que casaram, quando ela ainda era Anayde Chiaradia, nascida em 1900. Passando por aquela porta histórica, tivemos acesso a muitas garrafas de vinho devidamente colocadas sob uma espessa camada de poeira e teias de arranha. Junto à porta, no livro de visitas, vimos as assinaturas de muitas celebridades, entre elas um dos embaixadores do Japão.
Numa placa, num compartimento externo, dona Anaide nos mostrou uns dizeres que seu Luiz vira em uma viagem à Portugal, os quais entalhara na madeira, resguardando ali já há muitos anos.
Enquanto conversávamos, questionei-a sobre um político famoso que tinha o mesmo nome Andreazza, sobre o qual Renato Aragão tanto falava em um quadro no programa Os Trapalhões da Rede Globo. – Mário Andreazza, disse ela, meu filho, ele foi ministro da República por muito tempo. Foi ministro dos Governos Costa e Silva e Médici.
Tantas surpresas interessantes já eram mais do que suficientes. Afinal, eu tinha feito as entrevistas certas. Por certo muitos outros pioneiros haviam e nem eram esses que tinham fundado o bairro. Todavia, esses personagens tiveram atuação notória na história do bairro e eles faziam meu trabalho valer à pena. Por isto já estava considerando a visita satisfatória, encaminhando-nos para a saída. Todavia, dona Anayde deteve-nos um pouco, subindo alguns lances da escada que dava acesso aos cômodos superiores da casa. À altura do meio da escada ela tomou da parede um pequeno quadro contendo uma foto em preto e branco. Na foto do início do século XX, em torno de 1904/05, quando ela tinha em torno de quatro anos, ela aparecia sentada no colo de Maria Paternoster, então em torno de quarenta anos, por volta do tempo em que morreu. Maria Paternoster era a jovem Maria Sartóri, nascida em 17 de dezembro de 1865, no mesmo dia e mês em que eu nascera cem anos depois. Ela era imigrante italiana, uma jovem à frente de seu tempo, como diziam seus contemporâneos, que protagonizou uma história das mais impressionantes, sendo primeiramente viúva de um barão leopoldense que tinha comprado as terras do que veio a ser o bairro São Pelegrino, depois esposa de um padeiro bom vivam apaixonado por ela desde a juventude, o qual se foi de Caxias por causa do seu casamento com o barão, mas retornou ao saber de sua viuvez.
Dona Anayde faleceu em 1994.
Redigi este texto da memória. Os assuntos aqui contidos estão mais exatos e melhor detalhados nas cópias originais do jornal O Polenteiro no Arquivo Municipal de Caxias do Sul.