Celeste

Hoje ia pela rua e lembrei-me dos limpa-chaminés. Já foram muito importantes, parece-me. Até existiu um dia uma lei sobre a obrigatoriedade de limpar as chaminés regularmente. Os pensamentos encadearam-se de tal maneira que fui dar ao Fred Astaire e à Ginger Rogers a bailarem num salão ao ritmo de uma melodia conhecida. E eu e a minha avó Celeste no sofá a assistir à película no écran de televisão a preto e branco.
A minha avó Celeste era uma mulher à antiga portuguesa, como dizia o meu pai. Era modista contra sua vontade pois respeitara a vontade de seu progenitor. Era inteligente, adorava ler e tivera queda para a matemática. Mas o destino estava traçado contra as suas vocações. Detestava coser. Era uma costureira mediana e nada havia a fazer. Casada com um homem menos dotado de neurónios, tomou as rédias da casa e da vida familiar. Nunca tratava o marido pelo nome próprio, ou por diminutivos ou sequer apelidos. Era simplesmente homem: “ó homem isto, ó homem aquilo”. Passavam muitos dias sem se falar, não tanto pelas amantes ocasionais sempre demasiado próximas da vizinhança mas mais pelo seu permanente vício do prazer das patuscadas e festarolas com os amigos. E a vinhaça. Era capaz de gastar o ordenado todo do mês numa noite. Celeste ficava agastada e criou um úlcera no duodeno de origem nervosa.
Nos intervalos das crises oferecia um sorriso generoso a toda a gente. Tinha o dom da simpatia. Gostava de passar uns bocados à janela do nosso rés-do-chão ao lado dela a ver as pessoas passar. Ouvia descrever a história da vida de cada transeunte. Conhecia-os a todos e todos pareciam adora-la. Eu era muito tímida e apertava comigo: “ Diz olá ao senhor! Esta rapariga parece que é muda!”
Também me lembro das tardes das ante-vésperas de natal passadas a partir amêndoas e nozes para a noite da consoada. Sempre a rir. E de comer nêsperas. Eramos muito semelhantes em gostos por certas iguarias que mais ninguém do clã suportava, como por exemplo rim de porco frito e iscas. E bacalhau crú: “ Vamos fazer uma punheta de bacalhau!” dizia ela com um olhar todo maroto.
Tratava de mim quando tinha dismenorreia e pensava que ia morrer com a fúria das cólicas que parecia imitar a das dores de parto. Acalmava-me com chá de alface e um saco de água quente no ventre.
Passavamos férias no camping da Praia Verde, perto de Monte Gordo.
A minha avó era a única pessoa do grupo de primos que se juntava num acampamento estilo índio, que não sabia falar estrangeiro. Mas estabelecia laços de amizade com os alemães, ingleses e o que mais calhasse. Falava por gestos, emprestava os detergentes da loiça na fila para os lavatórios, ajudava os recém-chegados a encontrar clareiras acolhedores perto de nós. Era uma autêntica relações públicas, a encarnação do espírito hospitaleiro da nação.
Gostava dos médicos. Vinha de lá sempre muito mais saudável. Um dia, um deles lançou-lhe uma frase de esperança que nunca mais largou: “ deixe lá: mulher doente é mulher para sempre!”
Depois da cirurugia, para remover a maleita gástrica, melhorou. Foi Sol de pouca dura. Dois anos passaram e aos cinquenta e cinco anos foi-lhe disgnosticada a doença de Parkinson. Pensámos que era coisa lenta e suave. Engano crasso.
Celeste repousou finalmente no cemitério do Alto da Ajuda aos sessenta e nove anos. Mas não sabemos muito bem em que momento morreu ao longo dos seus últimos anos. A mulher que afinal não durou para sempre foi abandonando o seu próprio corpo aos poucos. Centelha a centelha de lucidez até à obnubilação total.
Lembro-me dela sempre a sorrir. Com uma dentadura perfeita e uma boca de extraordinária beleza. Gostava de pessoas. Todas as pessoas. Dos seus dois únicos netos acima de tudo.
“Heaven, I’m in heaven. And my hart beet so that I can hardly speak...”

AnaMarques
Enviado por AnaMarques em 19/11/2008
Reeditado em 16/11/2010
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