Masquerade

Uma caleidoscópica multidão colorida e sem face fervilhava pelas ruas, envolta em confetes e purpurina num pandemônio de alegria vulgar, até a hora mais negra que antecedia a aurora. Então, todos se iam, como uma legião de vampiros anônimos a fugir do sol. Os que restavam, impossibilitados de se lembrarem de onde pertenciam, eram o retrato trágico da solidão e do excesso. Atrás de suas máscaras, homens e mulheres se escondiam e mostravam o que verdadeiramente possuíam dentro de suas almas. Alegria regada a vinho, nos cantos mais escuros das ruelas e becos se tornava perversa e excitante, e a carne convenientemente mais fraca. Anjos, demônios, gênios, clowns, piratas, mandarins, sultões, odaliscas, magos, bruxas, reis, princesas, samurais, gueixas, gregos, romanos, ninfas, melindrosas, bailarinas, ciganas, cleópatras. Cada ser do imaginário da humanidade desfilava languidamente pelo luar, provocando com sua exposição dos corpos e seu ocultamento de identidade; sem contar as caricaturas das figuras mortais pervertidas em erotismo como os padres, monges e freiras, aos beijos com o bestiário profano. Se deus não existe, tudo é permitido, assim era o carnaval.

Em meio ao mar onírico, uma figura que trazia consigo a insolência da beleza despudorada, a ousadia da alegria insensata, o suspiro da leveza inquietante valsava sem querer valsar com sapatilhas herméticas através da horda bizarra. Ela deslizava misturando em seus movimentos a malícia de serpente e a vaidade felina, o aroma fresco da brisa primaveril era visível no róseo pálido de sua pele e os que sentiam seu caminhar próximo eram tomados momentaneamente pelo delírio de se sentirem vizinhos do paraíso. Acompanhando a inesquecível figura, orbitando em sua volta e sendo ignorado por ela, um fantasma ebúrneo de olhos negros murmurava choramingos poéticos apaixonados, cultuando sua pequena deusa inacessível e pretensiosa. Mesmo sendo patético, algo perturbador nesse servo afastava quaisquer outros pretendentes, seu sofrimento é o que fabricava o ódio em seu íntimo, transformando sua derrota em uma pérola de puro terror. A fada do desejo alimentava seu guardião com desdém, assim ela podia escolher alguém igual a ela, tão insano, febril e etéreo sem ser importunada pela malta em massa.

Passeando a esmo, chegaram a uma praça antiga com estátuas de conquistadores esquecidos e monumentos ignorados, onde o violino, a flauta, os pandeiros, os tambores e a mágica circense faziam da turba, títeres dançantes quais macacos adestrados. Cuspidores de fogo imitavam dragões fantásticos enquanto engolidores de espadas saboreavam Excalibur, palhaços se esbofeteavam em algazarra tola na fonte de pedra, enquanto no alto das pernas-de-pau, acima dos demais, os malabares incandescentes confundiam o bobo-da-corte com um anjo de luz. O coração de passarinho se encantou imediatamente pelo gigante vagabundo, que em um salto e uma cambalhota desceu de seu andor para cumprimentar a donzela de cristal. Os olhos se cruzaram, uma vertigem tomou a moça que perdeu o rumo nos losangos negros e vermelhos do traje da estranha deidade. Tão insólita quanto ela, talvez. Se o dueto silencioso de encanto do casal recém-descoberto não fosse tão ensurdecedor, eles poderiam ouvir o coração do espectro se partindo enquanto desaparecia com uma única lágrima a rolar por seu rosto e os punhos cerrados lutando contra uma tempestade n’alma.

A princesinha acostumada a ter homens que apenas beijavam seus pés, de repente encontrou um que não só lhe empregava os lábios de lábia em sua mão, como a enfrentava de frente, encarando seus olhos com a certeza de enxergar sua alma. E ela creu nessa ilusão, vendo na fanfarronice, realeza. Apaixonara-se pela megalomania do dançarino mascarado com o cetro de madeira, ele sorriu ao ver tamanha bobagem inocente em tão fácil presa, e tocou as notas certas para levá-la onde ele desejava. Escapulindo da feira, ele a levou por escadarias e ruas estranhas e cada vez mais escuras e vazias até chegar a um beco onde um coche abandonado escondia um portão de ferro. O cavalariço enigmático, por uma algibeira de moedas, entregou a chave da entrada para o bufão que convenceu a musa dos ais a acompanhá-lo para tomar o melhor vinho que ela já provara. Uma sombra seguia as fitas esvoaçantes e o tilintar dos guizos, escondida por entre os ossuários de uma família poderosa que se desfez pelas gerações, tendo suas catacumbas funerárias transformadas em adega.

Enfim encontraram uma parede com dois enormes barris, a ingênua menina ainda tentou entender o que estava errado, quando o diabrete louco mostrou suas garras agarrando-a, rasgando suas fitas, o cetim e a seda. Seus gritos foram calados por beijos soluçantes, até a pausa surpresa. O coringa se afastou com nojo, salivando como quem está prestes a vomitar, a sua Colombina, tão delicada e bonita era um homem! Cambaleando, o Arlequin fugiu aos tropeços do rapaz divino e andrógino que chorava tanto pela recusa, como pela estupidez de se deixar enganar. Apenas nas efêmeras noites de carnaval é que o jovem podia ser livre e desejado. Poderia seguir por anos assim, respirando sonhos nas noites carnavalescas, desde que se controlasse e não se deixasse levar para não ter a sua fantasia descoberta. Agora tudo estava acabado.

Da escuridão surgiu Pierrot e ajoelhando-se, beijou os pequeninos pés de Colombina, subindo por suas pernas e coxas, lavando a pele maltratada com suas lágrimas e com o seu hálito quente até encontrar a língua quente e seu pequeno milagre. Finalmente feliz.

José Rodolfo Klimek Depetris Machado
Enviado por José Rodolfo Klimek Depetris Machado em 18/11/2008
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