Ganchos na Cabeça

Contemplava o rosto do Sr. Faustino no qual aparecia já uma pequena concentração de saliva nos cantos da boca desenhando um sorriso infantil. Noventa e cinco quilos de peso praticamente morto numa cadeira de rodas e dois olhinhos que se riam quando a via pela manhã. Bom dia Sr. Faustino vamos lá ao sinemet e ao parlodel. Vá, não faça caretas. Tem de ser para ficar melhor. Pronto. Vamos lá tomar a nossa banhoca. E fazia um esforço titânico para arrancar o gigante ao assento e coloca-lo na banheira. Sozinha.
Podia ser pior. Podia não ter forças para desempenhar aquela função desgastante. Funcionária de uma empresa de apoio domiciliário em regime interno todos os dias úteis. Vamos lá por a fralda, Sr. Faustino. Hoje vem cá o seu filho visitá-lo. Fica contente? Claro que sim. Não haveria de ficar. O melhor de tudo são os nossos meninos. Eu também adoro passar o fim-de-semana com os meus. Quer ver as fotos? Lindos não são? O Valdemar já não gosta de si? Claro que gosta, Sr. Faustino, claro que gosta! Até vem visita-lo hoje. Vamos pô-lo bonito para o seu Valdemar.
Sexta-feira às dezoito, mais coisa menos coisa, saia da casa do casal de velhotes na avenida de Roma e regressava a casa dos pais. Gostava de ver as montras das lojas de roupa dos estilistas conhecidos. Ana Salazar. Fátima Lopes. Não se demorava muito pois não desejava encontrar a mãe a fazer compras numa delas. Queres uma mala nova Rute? Essa está tão gasta. A mãe oferece-te uma. Não te faças de difícil. Que mal tem? Uma mala lá tira a honra de alguém? Que disparate.
Descia do comboio em São Pedro do Estoril e caminhava até à praia. Eram só cinco minutos sentada na areia a apreciar o mar. Comia uma nectarina como quem fuma um cigarro a ver as ondas. O marulhar das ondas e as pegadas das gaivotas na areia eram paliativos contra as rochas que carregava no peito. Respirava melhor depois. E no entanto não conseguia evitar de se perguntar, à medida que calcorreava os passeios junto às vivendas, o que faço eu aqui? O que faço aqui? Onde estou? Quem sou eu agora? O que é isto? Até chegar o nº 33. É aqui que eles estão. Os dois. O menino e a menina. É aqui. Tlim-tlão!
Aparecem aos pulos e às gargalhadas, mãe, mãe, mãe!
Segunda-feira às oito da manhã mais um sinemet e outro parlodel. Dormiu bem Sr. Faustino? Temos de mudar a fralda. Vamos pô-lo limpinho para ir fazer companhia à sua princesa. Rainha? Está bem, muito bem, é rainha pois então. Quem ama tem sempre razão, não é verdade Sr. Faustino? Era linda a dona Argentina? Posso imaginar. Ainda é muito bonita. Sim, senhor.
Olhava pela janela e já nem ouvia as reclamações da mulher de voz rouca e grave. Está maluco e não me deixa dormir. Para o que eu havia de estar guardada, Deus meu. Pensar que dediquei a minha vida toda a cuidar-lhe da casa e dos filhos para agora nem ser capaz de manter uma conversa de jeito. Doidinho de todo. Não diz coisa com coisa. Ao menos que se calasse de noite. Nem dormir posso. Sempre a mesma lenga-lenga. Veja lá se o almoço está pronto, se não se importa.
Almoçava sozinha na copa depois da funcionária que se ocupava do serviço doméstico ter saído. As tardes eram calmas, passadas a ler o jornal para o doente parkinsónico. A esposa achava que ele se entretinha mais ouvindo as notícias diárias do que se lhe lessem livros. Ela não se atrevia a desobedecer. E lia. O irmão matara a irmã à machadada. O pai violara a filha de quatro anos. E mais uma criança caíra a um poço e a mãe morrera tentando salva-la. E assaltos vários. E acidentes bastantes. Choques frontais e em cadeia. Descarrilamentos de comboios esporádicos. E pequenos crimes sem importância. Sim, Sr. Faustino eu paro.
As lágrimas rolavam-lhe pelas faces raiadas de pequenos capilares muito bem definidos contrastando com a pele clara. Chorava agora compulsivamente escondendo a cara no ombro da auxiliar. Soluçava. Perdia o fôlego e arfava. Acalmava-se para recomeçar a gemer baixinho até ir aumentado o lamento a um nível de angústia revelada em urros lancinantes. É muita dor, menina, muita dor. Não aguento, eu não quero ter de aguentar.
Por favor, menina, faça parar esta dor. Faça parar esta dor. Pare esta dor tão grande!
Diazepam, outra dose. E ainda outra porque não estava a fazer o efeito desejado. Por fim caiu num sono profundo muito perto do coma suave. Assim estava melhor. Sem sonhos nem pesadelos de realidade. Se pudesse gostava de lhe terminar a dor, sim. Se ao menos pudesse. Ao menos ajudava o sr. Faustino. Já que não aplacava a dor que ela mesmo aninhava. Se pudesse oferecia-lhe o alívio final. Como uma dádiva de amor.
Dormiu? Ora ainda bem. Ao menos a ver se esta noite me dá umas horas de tranquilidade. Que inferno! Soubesse eu quando casei com ele. Com tanto pretendente a esgatanhar-se por mim. Olhem o meu azar.
Nessa tarde, Rute, retirou-se mais apressadamente que o habitual. As palavras da velha haviam-lhe interferido com digestão da meia de leite do lanche. Passou pela avenida sem olhar para lugar nenhum e sem querer viu-se na sua antiga sala de aula. De cima do palco do anfiteatro de madeira mostrando um slide com dois acantocéfalos do intestino de lontras marinhas. O brilho nos olhos a descrever seres que lhe pareciam de um mundo fantástico desconhecido da maioria dos humanos. Como quem desvenda segredos preciosos contava a história dos seres. As fêmeas são geralmente maiores que os machos. Têm ganchos nas extremidades anteriores para se agarrarem ao intestino do hospedeiro. O nome quer dizer isso mesmo: tem espinhos na cabeça. E para eles o mundo é na verdade perfeito...
Começou por sentir uma náusea indefinida. Depois veio uma ânsia de vómito. Deu um arranco súbito e uma pasta semi-líquida esguichou-lhe pela boca para o empedrado do passeio. Era por isso que evitava a todo o custo pensamentos nostálgicos sobre o seu passado. O seu estômago ressentia-se e não se compatibilizava com tais sentimentalismos. Merda! Quando é que inventam pastilhas de amnésia?



AnaMarques
Enviado por AnaMarques em 18/11/2008
Reeditado em 18/12/2010
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