Coisito, o Piolhito
Vinde ouvir a minha história meus senhores, que eu sou Coisito o piolho matreiro de rara estirpe. Vivo numa cabeça asseada e cheirosa. Sim, meus amigos, não vos surpreendeis. Piolho moderno não aprecia imundice. Isso é história do passado dos pobrezitos de nossos avós. Nós, os ganaus do século XXI vivemos nas cabeças dos colégios particulares onde aprendemos a ler, a escrever, a contar e alguns, os mais dotados, até a desenhar.
No dia em que minha mãe depositou a meia dúzia de ovos na qual eu me encontrava, exclamou para meu pai:
“ Chiça, acabei de cagar o último coisito do dia”. O meu pai sorriu achando graça à expressão da sua dedicada esposa. Quando saí da casca disse ela: “ Olha, Jaquim, nasceu-nos mais um coisito!” E foi assim que fui baptizado. Logo que deixei a minha lêndea oca esfreguei-me todo no escalpe que era o meu belo lar. Macio, luzidio e apetitoso. Cabelos castanhos-claros de reflexos quase louros, densamente implantados num couro cabeludo tenrinho. Um luxo. A minha infância de dois dias foi uma delícia. Era só injectar o analgésico na pele e sugar o sangue. A minha saliva ficava na pele mas era tão inóqua que não causava alergia. Em seguida defecava um montinho da refeição anterior digerida. O meu hospedeiro não se coçava e assim podia assistir calmamente ao BÊ-Á-BÁ entre as refeições, ou seja, de hora a hora. Passados mais três dias éramos uma densa população e já começávamos a sentir uma certa irritação por andarmos aos encontrões com os nossos familiares. Alguns já nem sequer nos lembrávamos deles. Mas a maioria sabíamos bem quem era e não gostávamos nada deles. O espaço era escasso para tanto irmão, irmã, primo, cunhado, sobrinho e filho do enteado. Andávamos de mau humor. O puto, para complicar, começou a coçar-se. Primeiro era só de dia. Depois nem de noite parava. Porra, nem dormir era possível. Já não nos conseguíamos concentrar durante as aulas nas contas de somar. E logo na altura que começara a tomar o gosto pela matemática.
Um dia meu pai, que era agora um venerável ancião de trinta dias, reuniu a malta toda numa clareira e disse:
“ Gasitos do meu coração. Por mais que me doa a alma ao pensar que me separo de vós, tendes de ponderar a busca de novas cabeças para habitar. Cada adulto macho tem a responsabilidade de criar a sua própria prole. A continuação da espécie é responsabilidade de cada um de nós. Não deixaremos de honrar os genes dos nossos antepassados.”
Foi largamente aplaudido por todos. Eu com lágrimas nos olhos decidi que daquela noite não passaria. O puto brincava com o pai e no primeiro encosto eu passei sorrateiro de um lado para o outro com a minha Carla Vanessa. No segundo dia já tínhamos doze rebentos ladinos, todos irrequietos aos pulos de um lado para o outro. Uma cabeça lavada, desembaraçada para a expansão da minha família adorada. Parecia um sonho. Até que começaram as viagens de automóvel. Não é que enjoássemos, não. Piolho que se preze está apto a movimentos bruscos. Mas o que não podíamos suportar era a música de concertina que o homem não se cansava de ouvir sem parar. Sempre a mesma cassete de um tal Trio Cova da Beira protagonizado por um tal de Alziro Galante que se fazia acompanhar por um filho e um parente obscuro. Um dia nisto e perdemos a alegria de viver. Nem o sangue nos sabia bem. Resolvemos tentar a fuga, de noite, para a cabeça da esposa. Lá passámos pé ante pé sem grandes sobressaltos. A madame era fina de dia mas de noite ressonava que nem uma bácora. Amanhecemos em festança. Sugámos até mais não podermos. Regalámo-nos em sangue novo e fresco. Que bom perfume tinha a cabeleira daquela beldade madura. Mas em breve seríamos de novo surpreendidos pelas agruras do destino. A senhora vestiu-se com toda a displicência e quando demos por nós estávamos na calha do cabeleireiro. A sermos besuntados de tinta tóxica letal. Foi um holocausto. Só sobrei eu e a minha mais nova, a Antónia Marisa. Que nos pusemos a andar outra vez para a cabeça do puto. Ainda por lá andavam a vaguear uns piolhitos raquíticos que tinham sobrevivido aos repetidos tratamentos com champô insecticida anti-piolhite aguda. Sabíamos bem que aqueles produtos, embora pouco eficazes acabam por moer a queratina de um gajo. Os pobres amigos estavam metade do nosso tamanho. Em poucos dias nos habituámos uns aos outros e agora somos todos irmãos. A vida moderna não permite que a guerra seja contra nós vencida. Por cada um que matam nascem mais seis por dia. E eles têm tanta compra para fazer, tanta novela para ver que a tarefa árdua de nos dar caça acaba por ficar relegada para segundo plano. Ou quantas vezes para terceiro ou quarto. Graças a Deus!
Vinde ouvir a minha história meus senhores, que eu sou Coisito o piolho matreiro de rara estirpe. Vivo numa cabeça asseada e cheirosa. Sim, meus amigos, não vos surpreendeis. Piolho moderno não aprecia imundice. Isso é história do passado dos pobrezitos de nossos avós. Nós, os ganaus do século XXI vivemos nas cabeças dos colégios particulares onde aprendemos a ler, a escrever, a contar e alguns, os mais dotados, até a desenhar.
No dia em que minha mãe depositou a meia dúzia de ovos na qual eu me encontrava, exclamou para meu pai:
“ Chiça, acabei de cagar o último coisito do dia”. O meu pai sorriu achando graça à expressão da sua dedicada esposa. Quando saí da casca disse ela: “ Olha, Jaquim, nasceu-nos mais um coisito!” E foi assim que fui baptizado. Logo que deixei a minha lêndea oca esfreguei-me todo no escalpe que era o meu belo lar. Macio, luzidio e apetitoso. Cabelos castanhos-claros de reflexos quase louros, densamente implantados num couro cabeludo tenrinho. Um luxo. A minha infância de dois dias foi uma delícia. Era só injectar o analgésico na pele e sugar o sangue. A minha saliva ficava na pele mas era tão inóqua que não causava alergia. Em seguida defecava um montinho da refeição anterior digerida. O meu hospedeiro não se coçava e assim podia assistir calmamente ao BÊ-Á-BÁ entre as refeições, ou seja, de hora a hora. Passados mais três dias éramos uma densa população e já começávamos a sentir uma certa irritação por andarmos aos encontrões com os nossos familiares. Alguns já nem sequer nos lembrávamos deles. Mas a maioria sabíamos bem quem era e não gostávamos nada deles. O espaço era escasso para tanto irmão, irmã, primo, cunhado, sobrinho e filho do enteado. Andávamos de mau humor. O puto, para complicar, começou a coçar-se. Primeiro era só de dia. Depois nem de noite parava. Porra, nem dormir era possível. Já não nos conseguíamos concentrar durante as aulas nas contas de somar. E logo na altura que começara a tomar o gosto pela matemática.
Um dia meu pai, que era agora um venerável ancião de trinta dias, reuniu a malta toda numa clareira e disse:
“ Gasitos do meu coração. Por mais que me doa a alma ao pensar que me separo de vós, tendes de ponderar a busca de novas cabeças para habitar. Cada adulto macho tem a responsabilidade de criar a sua própria prole. A continuação da espécie é responsabilidade de cada um de nós. Não deixaremos de honrar os genes dos nossos antepassados.”
Foi largamente aplaudido por todos. Eu com lágrimas nos olhos decidi que daquela noite não passaria. O puto brincava com o pai e no primeiro encosto eu passei sorrateiro de um lado para o outro com a minha Carla Vanessa. No segundo dia já tínhamos doze rebentos ladinos, todos irrequietos aos pulos de um lado para o outro. Uma cabeça lavada, desembaraçada para a expansão da minha família adorada. Parecia um sonho. Até que começaram as viagens de automóvel. Não é que enjoássemos, não. Piolho que se preze está apto a movimentos bruscos. Mas o que não podíamos suportar era a música de concertina que o homem não se cansava de ouvir sem parar. Sempre a mesma cassete de um tal Trio Cova da Beira protagonizado por um tal de Alziro Galante que se fazia acompanhar por um filho e um parente obscuro. Um dia nisto e perdemos a alegria de viver. Nem o sangue nos sabia bem. Resolvemos tentar a fuga, de noite, para a cabeça da esposa. Lá passámos pé ante pé sem grandes sobressaltos. A madame era fina de dia mas de noite ressonava que nem uma bácora. Amanhecemos em festança. Sugámos até mais não podermos. Regalámo-nos em sangue novo e fresco. Que bom perfume tinha a cabeleira daquela beldade madura. Mas em breve seríamos de novo surpreendidos pelas agruras do destino. A senhora vestiu-se com toda a displicência e quando demos por nós estávamos na calha do cabeleireiro. A sermos besuntados de tinta tóxica letal. Foi um holocausto. Só sobrei eu e a minha mais nova, a Antónia Marisa. Que nos pusemos a andar outra vez para a cabeça do puto. Ainda por lá andavam a vaguear uns piolhitos raquíticos que tinham sobrevivido aos repetidos tratamentos com champô insecticida anti-piolhite aguda. Sabíamos bem que aqueles produtos, embora pouco eficazes acabam por moer a queratina de um gajo. Os pobres amigos estavam metade do nosso tamanho. Em poucos dias nos habituámos uns aos outros e agora somos todos irmãos. A vida moderna não permite que a guerra seja contra nós vencida. Por cada um que matam nascem mais seis por dia. E eles têm tanta compra para fazer, tanta novela para ver que a tarefa árdua de nos dar caça acaba por ficar relegada para segundo plano. Ou quantas vezes para terceiro ou quarto. Graças a Deus!