O MARTELO DE PRATA
Visitei o doutor Postali em sua casa, na avenida Rio Branco, esquina Júlio de Castilhos, no cento do bairro São Pelgrino, em Caxias do Sul, há menos de cem metros da catedral de São Pelegrino. Era início da tarde de um dia quente do último trimestre do ano de 1991. Na sala, esperei até que sua filha o chamou, voltando com um senhor alto, bem idoso, com bem mais de oitenta anos, como ele mesmo disse depois, mas que andava com altivez, embora que com vagar. Feliz pela importância que lhe estava sendo dada, o doutor Postali me recebeu com grande simpatia enquanto para mim era um momento solene, pelo fato de poder ter esse contato direto e me tornas sujeito da história.
Depois de uma rápida conversa introdutória, onde contei-lhe meu propósito de publicar um caderno especial em nosso jornal de humor O Polenteiro contando a história do bairro São Pelegrino, no sótão da casa ele me mostrou equipamentos dentários muito antigos, os quais disse que iria doar ao museu. Tinham pertencido ao seu pai, no tempo em ele que era menino e o assistia curioso na prática do ofício de dentista. Nesse tempo ele colaborava com o pai no consultório apenas na hora de tocar o pedal que impulsionava a broca de obturação. Mas, à medida que foi crescendo, foi intensificando a assistência ao pai no consultório dentário, observando cada procedimento com grande atenção, aprendendo o ofício lentamente. Quando já era um jovem adulto, abriu seu próprio consultório anexo ao do pai, onde viveram muitas histórias, das quais ele me contou algumas.
Dentre as primeiras coisas que contou, disse que, em função de que muitas pessoas que vinham ao consultório não podiam pagar, resolveram construir um consultório anexo para seriam atendimento dos carentes sem nenhuma cobrança, revezando-se ele e o pai quanto ao atendimento nesse consultório. À pergunta de como faziam apara evitar que pessoas de dinheiro tomassem a vez dos carentes no consultório gratuito, ele respondeu que “o que o Diabo tira pela janela Deus põe pela porta”.
– Nunca nos faltou nada, acrescentou, sempre tivemos fartura, boas roupas e tudo o mais, sendo que pudemos inclusive construir esta casa, além de criar e educar os filhos. Nos finais de semana púnhamos uma cadeira de abrir no carro e íamos pelas estradas do interior extraindo dentes nas casas.
Houve um tempo em que virou moda obturar os dentes. As pessoas achavam bonito andar com os dentes furados cheios de chumbo. Alguns queriam furar os dentes e encher de chumbo só por vaidade. Tinha os que exigiam a obturação através de censura e pagamento de muito dinheiro. Um desses foi um homem que veio do interior. Insistiu que furássemos seus dentes sob ameaça e dinheiro. Argumentamos que eles estavam bons. Ele, porém, disse para pararmos de bobagens, pois ia nos pagar com dinheiro vivo. Então foram furados vários dos seus dentes, conforme sua exigência, e, satisfeito, ele se foi todo gabola. Dias depois retornou desesperado, com os dentes todos gangrenados e cheios de chumbinho que ele mesmo tinha posto para fazer de obturação.
Existiam umas mulheres tipo faca-na-bota, que nem os maridos podiam dominar, contou o doutor Postali. As desse tipo usavam umas saias longas e grossas, calçavam botas compridas e montavam a cavalo em cava, com as pernas abertas, em vez de lado, como faziam as outras mulheres. Certo dia uma desse tipo apareceu no consultório para extrair um dente. Quando chegou sua vez, dirigiu-se para a cadeira com pesadas passadas e sentou-se como um marmanjo. Quando fui aplicar a anestesia, ela interpelou, dizendo que em sua boca não entrariam aquelas porcarias. Então levantou a saia e tirou de uma espécie de coldre amarrado na berna uma garrafa de água ardente, da qual tomou um grande gole e mandou que procedesse a extração. Imaginando a dor da sujeita, receoso, comecei a torcer o molar das danada, enquanto olhava para os seus olhos que nem sequer piscava. Após a extração, com o argumento de que em sua boca não entravam porcarias, ela não deixou que passasse o iodo, que era usado como anticéptico. Pôs um pedaço de fumo na boca e saiu mascando como se nada tivesse acontecido. Fiquei estático, vendo-a sair toda altiva, mascando aquele fumo sobre a cirurgia ressente.
Tinha um primo seu que também era dentista, contou o doutor Postali Ao mesmo tempo também era açougueiro e dono de armazém. Seu consultório dentário funcionava em um anexo nos fundos do armazém, onde também era o depósito de batatas, cebolas e cereais em geral, por onde circulavam as baratas e os ratos. Ele era muito versátil e atendia simultaneamente no balcão e no consultório. Quando chegava um freguês para o açougue, ele deixava o paciente na cadeira, desenrolava o avental sujo de sangue e ia atender no balcão. Depois enrolava novamente o avental e voltava à boca do paciente, prosseguindo com o procedimento sem sequer lavar as mãos. Além do mais, não era adepto nem mesmo do iodo como anticéptico, despedindo os pacientes sem qualquer desinfecção.
Em certo tempo adquiriram uma cadeira de dentista flexível, contou o doutor Postali, que punham no carro juntamente com outros equipamentos, indo nos finais de semana pelo interior alojar-se em alguma sala emprestada e tratar dos dentes dos agricultores e seus filhos. Quando chegavam já haviam muitas pessoas esperando, tornando-se muito exíguo o tempo para tratar a todos.
Em certa época os cursos de odontologia tornaram-se mais acessíveis, surgindo então o credenciamento, que tornou-se obrigatório. Todavia, os dentistas práticos não foram obrigados a cursar a faculdade, tendo apenas que fazer um curso de um ano, o que ele e seu pai fizeram, recebendo o credenciamento depois. Cursos de atualização e aprimoramento normalmente eles faziam.
Dentre muitas outras coisas que contou, o doutor Postali falou dos costumes da juventude em seu tempo, gostando de se reunir em um salão de chão batido para dançar com as moças que vinham trazidas pelas mães. Lembrou que quando a dança estava animada quase sufocavam com a poeira do chão, pelo que tinham que espargir água no piso para continuar a dança. A bebida comum dos jovens era a gasosa, bebendo também a cerveja, que vinha de trem desde Porto Alegre em garrafas acomodadas em caixas cheias de palha. Se uma moça negava uma dança a um rapaz, ele pedia-lhe o estribo, chamando-a assim de égua.
Após umas boas horas contando suas histórias, o doutor Postali contou que foi convidado para padrinho de casamento dos amigos Luiz e Anayde Andreazza, que foram morar no então número treze da rua Pinheiro Machado, esquina com Moreira Cesar. No térreo dessa casa o senhor Luiz já tinha estabelecido uma loja tipo empório, onde se podia compra tecidos, ferramentas, alimentos, ração, sementes e tudo o mais.
No dia do casamento, durante a festa, o senhor Luiz inaugurou uma adega que ele tinha construído no subsolo da casa. A porta da adega não tinha maçaneta pelo lado de fora, apenas por dentro, tendo apenas um pequeno quadro fechado com vidro por onde poderia passar um braço. Na cerimônia da inauguração, o senhor Luiz entregou ao amigo doutor Postali um pequeno martelo de prata, o qual ele deveria guardar durante os próximos vinte e cinco anos, até as bodas de prata, quando então ele mesmo o usaria para quebra o vidro da porta da adega, meter o braço pelo vão e abrir a porta, dando acesso ao vinho das bodas, que ficaria guardado durante aqueles vinte e cinco anos.
Perguntei ao doutor Postali se ele mesmo abriu a adega vinte e cinco anos depois. Ele respondeu que guardou o pequeno martelo com muito cuidado, contando os dias para usá-lo, e no dia das bodas teve a satisfação de quebrar o vidro e abrir a porta, comemorando com o casal de amigos, seus filhos e os convidados a alegria dos seus vinte e cinco anos de amor e compromisso mútuo.
Redigi este texto da memória. Os assuntos aqui contidos estão mais exatos e melhor detalhados nas cópias originais do jornal O Polenteiro no Arquivo Municipal de Caxias do Sul.