O DESTINO

O DESTINO

Flavio MPinto

- Mamãe, mamãe, vem cá!

- O que é , François?

- Mamãe, aquele tio veio de novo aqui.

- Fazer o quê, filho?

- Perguntar a que horas chega o pai.

- E o que dissestes?

- Que não demoraria, pois ia me levar no parquinho tão logo chegasse e que ele sempre passa na igreja antes.

- Primeiro, meu filho, ele não é teu tio. Segundo, não devias falar nada sobre teu pai.

"Aquele tio" passara diversas vezes defronte a casa e o menino jamais esqueceria o seu rosto.

Dias depois, passava pouco das seis da tarde. François e Élise se divertiam na frente da casa.

A brincadeira das crianças no jardim é interrompida por barulho ensurdecedor. Tiros, gritos, carros saindo em disparada, tudo bem distante, mas fazendo a mulher entrar rapidamente em casa arrastando os filhos.

- Vamos entrar logo, filhos. Algo grave está acontecendo lá na igreja.

Sempre lembrava o marido do cuidado que devia ter ao deixar a escola e passar pela Igreja . Não gostava das companhias daquele padre, mas o marido adorava ouvir sua palavra. Assim era sua atitude desde a sua cidade natal, pois eram de famílias muito católicas. E deixava de lado suas preocupações ao lembrar que o curso de Estado Maior estava próximo de findar e voltariam ao seu país. Faltava pouco.

Junot, major do Exército francês em missão de estudos no Brasil, adorava o país e já sentia falta da praia, principalmente, quando se avizinhava o regresso á Alsace. Em 1968 o Rio de Janeiro era perigoso, mas nada que assustasse o oficial com muitas missões internacionais "nas costas" Algumas em combate, outras humanitárias, sempre dizia.

A explosão mudou tudo.

Rosine estranhou quando o adido militar veio ao seu encontro, pois seu marido, já tarde da noite, ainda não regressara da Escola de Comando. Talvez tenha ficado com algum grupo estudando, ás vezes acontecia e ele não telefonara como de costume. Conversaram sobre amenidades, colégio, crianças, passeios, os amigos, a cidade, a vida, mas a mulher começou a estranhar que algo estava no ar e a desconfiar do adido.

- Madame Rosine, tenho algo a lhe confessar, muito sério. Junot sofreu um acidente e está hospitalizado. É muito grave seu estado. Ele sofreu um atentado.

O barulho, ouvido no fim da tarde, fora um atentado terrorista na rua Tomis perto da igreja contra a vida do seu marido, que regressava da escola passando pela igreja. Um dos que colocavam a bomba feriu-se gravemente também e foi deixado no local por seus quatro comparsas, e a polícia o levou para um hospital. Os quatro se evadiram deixando no local panfletos com o seguinte texto -"Como ele, existem muitos outros e sabemos quem são. Todos terão o mesmo fim, não importa quanto tempo demore; o que importa é que todos eles sentirão o peso da justiça revolucionária.Olho por olho, dente por dente". Dias depois, em um jornal, Rosine o identifica como o homem que passava rondando sua casa. François também o reconhecera.

O retorno á França é antecipado. Mesmo com forte apoio da embaixada a família é acometida por sérios problemas, ainda mais quando, passado o perigo maior, o pai fica tetraplégico. Na França os cuidados são redobrados. Só a crença em Deus os fazia se sentirem confortados. Junot é reformado.

François cresce assim como Élise.

Trabalhando numa indústria química multinacional, surge a ida a um congresso no Brasil. Ele não deseja, no entanto, como chefe de setor importante , sua presença é quase obrigatória. Foi a contragosto. Não queria ir ao país onde lhe causaram tanto infortúnio. A si, a sua mãe e irmã, a família. Não queria nem lembrar, mas...

Em Porto Alegre, hospeda-se num hotel bem próximo de uma grande feira ao ar livre, a tradicional Feira do Livro da cidade. Vai até lá conhecê-la acompanhado de Desirée, sua funcionária e já acostumada com a língua portuguesa.

Olham aqui, ali e param na praça de autógrafos. François leva um susto: quem estava lá naquele momento era "aquele tio" rosto que jamais saíra de sua memória. Autografava um livro no qual contava sua vida como guerrilheiro, dando ênfase aos atentados, pois fora ferido em combate na rua Tomis, e se orgulhava, dizia. Era identificado como o executor de inúmeros "justiçamentos" e responsável pela explosão de um soldado num quartel do Exército. Num dos relatos, detalha como foi a ação contra um suposto boliviano a ser "justiçado" que mais tarde descobriram ser um oficial francês, julgado num tribunal revolucionário de sua célula revolucionária. Recebera reconhecimento e uma indenização vitalícia do governo por tal atividade.

François teve ímpeto de interpelá-lo, e, como disse mais tarde a Desirée, deixaria tudo nas mãos de Deus. Afinal, o algoz de seu pai era uma pessoa digna de piedade e, como católico, assim deveria proceder. Na realidade um facínora que logo irá acertar sua conta com o Supremo Criador.

Apenas observou a quantidade de jovens que afluíam para "ganhar" o autógrafo no livro do ex-guerrilheiro.

-"Que Deus na Sua infinita bondade tenha piedade desse país", falou para sua colega antes de sair da feira e retornar ao hotel.