CONTO DA CAROCHINHA

Alceni engajou-se na luta armada. Deixou a escola técnica e sumiu. Nunca mais se ouviu falar dele. À família os amigos não informaram nada. Passou a ser procurado pelo exército e a viver uma vida desregrada, imaginaram. Foram-se passando os meses e posteriormente os anos. Nada do Alceni. A família o tratava como desaparecido nos porões do regime. O regime insistia em desconhecer seu paradeiro e fontes não confirmadas diziam que mudou de nome e foi morar no México.

Mas na verdade, Alceni sofrera um simples acidente de trânsito, a duas quadras da escola, posteriormente ao que, foi internado no Hospital das Clínicas em coma. Antes de tomar a atitude de abandonar a vida civil, Alceni queimou todos os documentos na lixeira do pátio da escola e foi internado como indigente. Ninguém o procurou por lá, ainda mais que todos suspeitavam que ele ia cair na clandestinidade, mais cedo ou mais tarde. Foi ficando nas clínicas e virou xodó das enfermeiras daquela ala. Poucos meses depois, dada a estabilidade do paciente e a aparente irreversibilidade de seu quadro clínico, foi transferido para uma destas casas de repouso que recebem verba do Estado exatamente para cuidar de casos assim.

Passaram-se os anos, passaram-se as décadas e tudo estava na mesma. O único familiar ainda vivo, um sobrinho distante, sequer lembrava do Tio Alceni e nos anais do exército constatou-se, após rigoroso exame de documentos e depoimentos, que Alceni jamais esteve em nenhuma unidade prisional, fosse ela regular ou clandestina, digamos assim.

Certo dia porém, e aqui cabe um parêntesis, vez que estes certos dias sempre ocorrem, senão não teríamos o que contar. Então, em determinado momento, com a queda de uma colher no piso frio do quarto em que Alceni estava e o conseqüente tilintar do som agudo em seu ouvido, o milagre do despertar se consumou. Alceni acordou assustado já se imaginando em um manicômio após lavagem cerebral perpetrada pelas forças da repressão. Aos poucos percebeu que não conseguia se mexer, que seus músculos doíam e que apenas os olhos obedeciam a seus comandos. Vasculhou o quanto pode do quarto e percebeu a chegada de uma pessoa que depois identificou como enfermeira. Esta, ao vê-lo de olho aberto, saiu correndo e gritando por ajuda. Rapidamente foi removido para o Hospital mais próximo a fim de passar por uma bateria de exames.

Com o passar dos dias, Alceni percebeu que estava mais velho, enrugado e com uma dificuldade imensa de executar as tarefas mais simples. Mesmo assim, forneceu seu codinome (André) e recusava-se a informar qualquer outra coisa, pricipalmente endereços. Alegava amnésia. Foi descobrindo, passados muitos meses, que não estavam enganando ele não. Ele estivera em coma profundo e perdera todos os espetáculos políticos, econômicos e esportivos dos últimos quarenta anos. Não sabia quem era Airton Senna, desconhecia o título corintiano de 1977, o confisco do Plano Collor, o pentacampeonato mundial, a hiperinflação, a estabilidade econômica e todas as alegrias e as tristezas experimentadas pelo povo brasileiro. Pediu jornais.

Passou por intensas fisioterapias e teve dolorosa etapa com uma fonoaudióloga. Reaprendeu a andar e a falar. Teve muita dificuldade em entender as coisas do Brasil, principalmente em acreditar que uma companheira de lutas estava na chefia da Casa Civil em Brasília e outro era um popular e querido Deputado Federal pelo Rio de Janeiro. O mais inusitado, porém, era o operário na Presidência. Deste sequer sabia, nunca tinha ouvido falar. E os fardados? Não mandam mais? perguntava aflito. Com o tempo aceitou dizer sua verdadeira identidade e aproveitou para fazer isso no programa da Ana Maria...

Ocirema Solrac
Enviado por Ocirema Solrac em 15/11/2008
Reeditado em 17/01/2010
Código do texto: T1285508
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