Anedonia
Há uma mulher que me odeia povoando o espelho do banheiro. Observa-me com olhos tão vazios e cansados que por vezes chego a confundir-la comigo. Esses olhos parecem covas profundas, abissais, escuras. Lábios ressequidos que perderam a capacidade de sorrir. A pele tem um aspecto de doença, amarelado. Cabelos desgrenhados, desprovidos de escovações. Tento sorrir para a mulher, mas ela responde com um esgar de dentes escuros. Tento tocar-la, mas ela se afasta da ponta dos meus dedos. Decido então mandar-la embora, abrindo o armário embutido ao espelho. Dezenas de frascos de anti-depressivos e calmantes dão boas vindas. Perdi o interesse neles e eles em mim.
Minha vida despovoou-se de todos aqueles a quem eu amava e o intemperismo desses anos terríveis de solidão transformaram-na num deserto estéril onde nem eu estou. Nunca estive tão ausente de mim como atualmente. Sinto que cada centímetro da minha vitalidade é roubada, saqueada, usurpada por mãos invisíveis. A sensação que tenho é a de caminhar num pântano traiçoeiro. Centímetro por centímetro sou sugada para o interior escuro da terra, mas sem morrer como desejaria. A dádiva da morte não é concedida a quem deseja, mas a quem menos espera. Terrível lei celestial.
Observo minhas mãos e vejo o tempo roendo-as, travando-as, secando-as. Tento espantar-lo, mas nem janelas abertas são capazes de expulsar esse odor de tempo que não quer passar. Quando aliso minha face sinto como se tateasse areia noturna de praia; um contato áspero, flácido, úmido, herança justa aos anos de ortodoxia ao tabaco. Meus olhos perderam o brilho; iris, outrora azuis, bóiam desconsoladas em escleróticas amarelas maculadas de laivos sanguíneos.
Emagreci quase vinte quilos desde que afundei nesse mundo escuro e sem janelas. Alimento-me cada vez menos e não tenho apetite. Não mais bebo, pois a paz e a tranqüilidade que a embriagues me presenteava não presenteia mais. A depressão matou minhas forças.
Tenho tanto vazio em mim que nem as lágrimas surgem mais como antes. Minha fonte parece ter secado. Sinto-me como uma boneca sem forro, esquecida num canto escuro, após ser usada por uma criança má. Meus pés querem dar lugar aos joelhos, mas não quero ajoelhar-me. Não mais. Ajoelhei-me em solos duros por toda uma vida e esse foi meu fim. Esqueci as orações, esqueci as preces, esqueci Deus.
Esqueci...
Decido não tomar os remédios. Não sinto mais o efeito. Como num sonho desagradável, caminho pela casa até a cozinha. É dia, mas tudo parece tão escuro. Foi roubada a minha capacidade de enxergar a luz.
Louça de uma semana amontoa-se na pia. Moscas sondam com interesse os restos frios de refeições pretéritas. Há um odor vicioso de abandono, gordura e carne estragada. Enjoada daquilo, volto para a sala decidida a sentar e esperar.
Esperar...
Olhos estáticos em retratos antigos acompanham meus passos. Por vezes flagro-me observando-os, tateando-os como se isso fizesse aquela paisagem e pessoas voltarem. “Ficamos com o tempo feliz e você com essa vida desmaiada.” as pessoas no retrato parecem pensar com suas consciências congeladas. A poltrona parece ter o formato do meu corpo, pois passo todas as tardes ali, pensando em nada, fitando o nada, esperando nada. Com mãos trêmulas, derrubo um retrato na mesinha ao lado. Não posso suportar mais aquela família antiga, estagnada num tempo que morreu e foi sepultado há tantos anos.
Enterro a face nas mãos esperando lágrimas. Anseio-as. Mas não há lágrimas. Estou estéril de tudo. Vazia de tudo. O silêncio daquela cova profunda sussurra incongruências em meus ouvidos. Tenho vontade de gritar, mas não há forças para tal. Quero odiar, mas ninguém é culpado pela minha situação. Somente eu mesma. Nem a mim consigo odiar. Só sinto repugno, asco, fobia de mim. Há muito não durmo, a insônia é mais um abutre oportunista a pilhar minha vitalidade.
Ao lado do retrato descansa uma bandeja com dois copos de leite morno. Levei para as crianças no segundo andar uma hora atrás. Fito-os e minha mente volta-se para minhas filhas.
Abruptamente as lágrimas, ausentes por tanto tempo, voltam como um acúmulo de nuvens sondando o horizonte de minha alma. A tempestade faz meu corpo inclinar-se para frente, como numa repentina ânsia de vômito. Sons estrangulados emergem da garganta. Afogo o rosto novamente nas mãos, abafando os soluços esganiçados. Permaneço assim por quase meia hora, aguardando a tempestade dissipar. Mas cada vez que meus pensamentos voltavam para Carol e Raquel, a tempestade recomeça, com vigor.
Quando finalmente consegui algum controle sobre mim, agarrei o copo com metade do leite e bebi-o completamente. Estava gelado, amargo, mas bebi-o com sofreguidão.
Carol... Raquel... não tinham culpa de nada...
Meia hora depois estou sentada na cama de casal, findando essas anotações. Já sinto dores terríveis no tórax. O coração bate acelerado como um animal aprisionado, e o ar se recusa a entrar em meu organismo. Quero gritar, mas não consigo. Vomitei sangue em demasia. Estou morrendo como um rato no bueiro.
Estou morrendo como um rato envenenado.