Pandora
Para Robson
As mulheres e as crianças são as primeiras a desistirem de afundar navios.
(Ana Cristina César)
Tempestade.
Sozinha em sua nova casa, arrumava o restante da mudança com uma taça de vinho em mãos. Olhava para as caixas com um leve sorriso desapontado, de quem queria deixa-las de lado e correr pelo quintal, como fazia quando era criança, quando não havia grandes mudanças e caixas fechadas de lembranças.
Andava pela casa iluminada apenas por alguns abajoures, dançando uma música qualquer, no silêncio quebrado pelos trovões e pelos fortes ventos. Seus dedos corriam pelas janelas, desenhando na umidade dos vidros o nome dele. Se assustou com alguns raios e cobriu com lençoís os espelhos próximos. Voltou para a janela, observando a tempestade que só aumentava, e seus dedos novamente desenhavam aquele nome. Gritou para que eles parassem, deviam abrir caixas e não feridas.
Sentada no chão, foi abrindo as caixas com um certo ressentimento, como se fosse Pandora e sua caixa. Ao abrir, talvez revelasse maldições que carregava consigo, que a destruíriam. Deja-vu
Ali.
Roupas, livros, cartas e fotos.
Mordeu o lábio, respirou fundo e tomou de um só gole mais uma taça de vinho. Era hora de revirar no chão, como um lixo, todo o seu passado.
Suas roupas que ainda continham o cheiro dele, os livros que recomendavam e liam um para o outro e aquelas cartas de amor e ódio que eram e não eram remetidas. Fotos desde quando era uma criança até aquele momento, onde ostentava o peso de sua maturidade. E em todas aquelas fotos, era como se ele estivesse. Aquela presença só dele que estava em tudo, e dentro dela.
Mais uma taça de vinho, trovões, todas as caixas rasgadas como ela, espalhadas pelo chão, pedaços dela que completavam os espaços vazios dele.
O coração apertado, batidas fortes, suor frio. Seus dedos que tremiam, que faziam ela ir até o telefone, dedos com vida própria que discaram para aquele telefone que ela havia esquecido, eles não. Caiu de joelhos, pernas bambas a cada toque. Do telefone, dos lábios, da pele dele sobre a dela.
-Alô
-Sou eu, por favor, não desligue.Está chovendo
-É, eu sei, aqui também.Tudo bem?
-Está chovendo dentro de mim, entende?
-Chove dentro de você?
-Eu não sei. Só você sabe fazer isso parar, pode vir aqui? Eu te passo meu novo endereço
-Não posso...Meu filho está com pneumonia e com medo dessa chuva. Mas eu sei que você é mais forte que isso, saberá fazer isso parar.
Desligou em sua cara
Ela então vai se recolhendo pelo chão, recolhe a ele também. As caixas vão ganhando novamente um sentido, um peso. Talvez sua consciência.
Abre a porta, a tempestade continua implacável.
Arrasta as caixas até lá, revira-as sobre a lama, sobre todas as poças. Vai as vendo murchar, virar nada alem de caixas molhadas, papéis destruidos, roupas sujas. Ri. Começa a correr pelo quintal de braços abertos, girando , como fazia quando era uma criança. Sem nenhuma caixa aberta de lembranças a sua frente .Não era mais Pandora.
Volta correndo para dentro de sua casa.Não queria pegar uma pneumonia.