ANASTÁCIA DOS ANJOS

Seu nome de batismo, Anastácia dos anjos. Quase ninguém o sabia. Muitos o esqueceram, pois a chamavam, Naná.

Em tempos idos, talvez fosse mesmo angelical, pelo menos, podia-se deduzir através dos antigos traços, entrecortados hoje pelas rugas. A boca bem formada; os olhos, embora caídos, revelavam ter sido o ornato do rosto. Os cabelos mal arranjados, quando presos; se soltos, denotavam uma expressão assustadora.

Naná era uma pessoa popular. Perambulava pelas ruas, a todos conhecia e havia uma particularidade: não suportava os moleques na rua. Eles a importunavam e ela, por sua vez, sempre descobria um jeito de atazaná-los, estragando-lhes as brincadeiras. Ora desmanchava com os pés a fileira de bolas de gude que iria “matar”, ora chutava o pião multicolorido que voava pelos ares. Ninguém entendia o porquê desse procedimento, pois amava criança de colo. Sempre que podia, acalentava, ninava, sem que a mãe ficasse preocupada.

Sua popularidade garantia-lhe o sustento e, de vez em quando, lanchava aqui, jantava acolá, e sempre levava bons trocados.

A implicância com os meninos nas esquinas teve o seu troco: apelidaram - na pelanca. E a alcunha pegou. Mal apontava na rua e a gurizada gritava em coro: pelanca, pelanca!

Transfigurava-se, possessa, chutava os meninos, perseguia-os rua abaixo, empunhando uma vara que, preventivamente levava. Era um inferno!

Diariamente, ouvia-se na rua a garotada, em conjunto, gritando pelo apelido, pelanca, pelanca! Alguns chegavam bem perto de seu ouvido e soletrava pe-lan-ca, pe-lan-ca! Nunca lhe davam sossego.

Alguns adultos que presenciavam aquela cena, com pena, tentavam intervir, lembravam-lhes que deveriam respeitar os mais velhos, fosse quem fosse, principalmente a uma pessoa tão carente e problemática. Mas, quem pode com bando de moleques? Mal apontava na rua e eles se organizavam para aquela nefasta tarefa.

Um dia, Naná sumiu. Todos deram pela sua falta. Pessoas foram até o seu humilde casebre em busca de noticia. O que sucedera a Naná?

Encontraram-na doente. A partir de então, as senhoras se revezavam, para cuidar dela. No leito, não era nem a sombra daquela que provocava e agitava as crianças, que as deixava enlouquecidas. Assistência à pobre senhora foi total.

Para a surpresa geral, a gurizada também apareceu. Alguns lhe levaram comida, outros, flores, que colocavam num vidro velho,ao lado de seu catre. Alguns deles ficavam em pé, na porta de seu quarto, olhando-a silenciosos.

Naquela cidade, a voz corrente era de que, dessa vez, Naná, (ninguém ousava mencionar o apelido), passaria dessa para melhor. A tristeza abateu-se sobre todos.

Contra todas as expectativas, porém, ela recobrou as forças, foi como se ressuscitasse. A primeira vez que ela saiu às ruas, depois de longo tempo, foi uma alegria coletiva. Certa feita, a garotada que brincava distraidamente na calçada não deu pela presença de Naná. Ao perceberem, estupefatos a olharam, como se vissem assombração, sem ousar chamar-lhe pelo apelido, respeitando sua situação.

Naná andou com dificuldade até a turma, olhou para um, para outro, como que a catalogá-los na mente. Sentiu uma coisa estranha no ar. Em fração de segundos, o silêncio era total, parecia uma eternidade. Naná foi a primeira em rompê-lo, indagando com um fiapo de voz:

- ué, ocês não vão me chamar de pelanca, não?

Foi uma algazarra! Os meninos animados começaram a pular, gritando pelo apelido, puxando-lhe as pontas dos cabelos. Ela agia como se quisesse acertar um deles com a vara e depois se afastou com os olhos brilhantes de alegria.

Essa era, realmente, a sua exclusiva maneira de ser feliz. Hoje ela é, ainda, Anastácia dos Anjos e, em nossa memória, sobrevive.

fim