O trem partiu!
Estava tudo pronto para a nossa viagem. Mamãe e eu iríamos até União dos Palmares visitar Hidrina que havia acabado de parir – que filha linda –; eu já havia tido com ela no domingo passado.
– Vamos, mamãe?
Um sono estranho. Vi-a bocejando exageradamente. Não conseguiu levantar-se da espreguiçadeira. Fui até ela e ouvi o que jamais pensara antes:
– Quem é você menina?
E eu, do salto alto dos meus cinqüenta e seis anos, suspirei e cacei entendimento para aquela indagação. Mamãe não estava ali, não era a mesma, havia sumido do real. Apanhei uma de suas mãos e a beijei. Perguntei-lhe se queria zombar de mim; nunca se sabe a força do discurso alheio, o que é feito para desdizer e ferir e romper. Ela gargalhou numa zombaria incomum, coisa que não lhe era peculiar diante de sua densa lucidez cotidiana. Senti um nó na garganta, mas me controlei. Eu estava agora diante de uma outra viagem, uma triste viagem!
Todas as manhãs eu ia à estação do quarto dela, abria a porta e tocava no sino. Éramos as duas únicas passageiras. Havia uma locomotiva louca cortando o tempo e destruindo a estrada para não se ter mais qualquer volta. A viagem era mesmo estranha e rude. Nessa primeira estação eu conseguia entender como seria o resto do dia.
– Mamãezinha!
– Eu sou lá tua mãe, nojenta!
Suas palavras me chegavam aos ouvidos como bólides ingratas. Eu sentia o coração descompassar e os olhos se encharcarem. Fazer o quê? Tirava-a da cama, dava-lhe o banho matinal e a levava até a mesa da cozinha, sua segunda estação-nossa, melhor dizendo, pois eu também embarcava na locomotiva da destruição. Ela se alimentava bem, mas escolhia o que queria comer entre os alimentos que eu lhe oferecia fartamente. Domingo passado ela me jogou nas costas uma laranja-baía grande. A dor foi tanta que, ao olhá-la por sobrolho e vê-la sorrindo, resolvi fazer o mesmo. Minha resposta vinha do coração do meu olhar de filha. E eu a abracei demoradamente. Ela olhando as minhas retinas disse-me:
– Doida! Eu queria que essa laranja tivesse-lhe matado.
E eu, filha única, absolutamente voltada à sua amizade, ouvia de minha mãe, em sua segunda estação, palavras pontiagudas, ferinas; nunca pensei que de sua alma, outrora tão bela e mansa, eu pudesse ouvir tudo isso; mas o sol se esconde das noites mais estreladas e a lua é inimiga do céu do meio-dia. Eu tinha que me adaptar à nova viagem de mamãe. Não sei de onde retiraria o combustível necessário, mas tiraria certamente.
Quando chegamos à terceira estação, ia dar meio-dia. Ela passava as páginas da revista e não queria ir à mesa almoçar.
– Vamos Dona Zilda!
– Zilda? Quem é essa? Doida...
Mas cedia e ia. Uma mesa imensa, uma sala ainda maior. Um casarão silenciosamente triste. Na rua, de vez em quando ouvíamos um carro passar sem pressa. Cidadela dorminhoca de interior cheio de pobreza.
Na quarta estação, ela não me dava qualquer trabalho. Todas as tardes, lá pelas cinco horas, íamos à igreja que ficava ao lado de nossa casa. A matriz era linda. A grande cheia lavou-a, mas não a destruiu; o lagense é um forte por razão da própria natureza. Eu me divertia com a repetitividade das orações de mamãe; ela mudava as características do terço. Dizia que havia recebido ordem do céu.
A doença de Alzeheimer é a indecência que a perversidade faz com a razão. Hoje, quando mamãe acabou de rezar e eu me distraí por um minuto, ela já havia retirado a blusa e mostrava as mamas cheias da destruição do tempo. Olhei e gritei, quase:
– Mãe, estás louca?
Ela apenas sorriu, limitou sua emoção a esse sorriso e nada mais. Eu fingi compreendê-la e respondi com outro sorriso, ao que ela sussurrou:
– Safada... zombando da mãe.
Chorei muito porque ela havia tido um gomo de lucidez, tanto que me chamou de filha, quando disse que era minha mãe.
A quinta estação acontecia quase sempre quando o sabiá derretia-se em seu melódico canto. Eu e ela e o sabiá na sala a assistirmos às novelas das seis, das sete, das oito. Divertia-me muito com suas conclusões a respeito das três. Nem sei se ela entendia o que via ou como entendia. Sorria quando era para chorar e vice-versa. E antes de chegarmos à última estação da viagem do dia, ela já bocejava vencida pelas horas passadas por sua desmemória.
Na última estação nós ficávamos lado a lado no quarto de dormir, rezávamos o terço, eu acariciava seus cabelos brancos.
– Bênção, mãe...
– Doida... e eu lá te conheço?
Minha mãe não estava ali mais; quando se ama muito alguém, a gente acha sua alma no vento, no raio de sol, nas lembranças saudáveis. Eu a via feliz mesmo quando estava a variar ao meu lado. Redobrava minha lucidez de filha e fazia questão de viajar por outras estradas, mesmo quando estava embarcada na dela, guiando seus desatinos desmemoriados, chocos da vida, desiguais a tudo o que era natural e manso.
O papel em que escrevi esse texto quem me deu foi Lila, minha prima. A caneta foi o motorista do doutor Neemias, enquanto as abelhas humanas zoavam no velório de mamãe e eu, cabisbaixa, escrevia tudo com uma voracidade incomum. Fiz outra viagem paralela. Arrependo-me de tê-la internado em sua última semana de vida – ou de morte. Bem que podia ter ficado com ela em casa. Adoraria ter agora o dom de discursar, para mostrar a toda essa platéia ingênua o que é essa doença e até onde ela pode levar suas vítimas diretas e as indiretas, como eu. Mas não tenho. Resigno-me e alimento o luto cheio de memória, absolutamente desigual à doença cega de Deus e do mundo.
Dona Júlia da farmácia não me reconheceu quando lhe dirigi a palavra.
– Tudo bem com a senhora?
– E você, quem é?
Neguei a mim mesma fazer viagem alheia; outra dor ser-me-ia crudelíssima a essas horas. Nem sequer sorri. Fui ter comigo mesma no silêncio enlutado do quarto, onde minha memória deveria retirar-me a maior parte do sono. O velório é-nos outra doença socialmente necessária.
E depois de tudo ainda ouvi o grito da locomotiva passando. Em seguida nada mais vi além do sono maculado pelo peso do cansaço; guardei os escritos, lembro-me de que rezei e mais nada.