Meu yorkshire
Acordei-me e ainda iam dar cinco horas da manhã. O sol, desejoso de aparecer, emitia seus primeiros raios, inda frios, porém belos. Ouvi alguns sabiás cantando. Levantei-me para me espreguiçar e em seguida ir ao banheiro. Quando abri a cortina da janela do quarto e me deparei com o horizonte florido da garagem, viajei para dentro de mim. Vi mamãe de cabelos molhados a chamar-nos para o desjejum.
– Venham todos... o cuscuz cheira!
Uma brisa perfumada entrava pela janela. Ouvi o latido do Pepe; todas as vezes que eu me acordava, ele pressentia. Os primeiros afagos era eu quem os dava. Ele gostava de subir ligeiro as escadas do primeiro andar e se jogar sobre minhas pernas pedindo os braços. Falava-lhe algumas palavras e ele parecia entender meu discurso. Um Yorkshire entende muito do que seu dono diz.
– Meu lindinho, papai vai descer já, já!
Há idade na vida da gente que nem nos ensina nem nos retira nada; nessa idade a gente apenas se lembra do que nos foi bom e ruim e, depois dessa lembrança, é como se fosse necessário apagar algo da memória. Passei quase meia hora lembrando-me de tanta coisa!
Mas a primavera havia se acordado bem antes de mim, já me diziam as flores e o bailado das borboletas de Deus que eu via do lado de fora da janela. Viajar para dentro de nós é maravilhoso, mesmo que as feridas velhas se reacendam e uma dor diferente nos revisite. A alma do poeta é como manteiga... Precisei, para a tecitura deste conto, entrar em mim por quase uma hora. Molhei todo o papel, borrei palavras. Agora não, já o recomecei e me alegro com o que faço. Há primavera que arrancamos de dentro da gente, que parece passar muito mais espinhos do que mesmo flores. Fazer o quê? Sou um colhedor de flores; espinhos estão sempre em nossas circunvizinhanças. Os piores espinhos são os que conseguem furar nossas almas ou doer para sempre. Às vezes o poeta é o próprio espinho de si e, diferente de Fernando Pessoa, não finge nada, sente tudo diante da brancura da realidade. Não escolhemos a hora exata para sermos furados com os espinhos do passado, aqueles que guardamos dentro do fundo da alma e quase sadomasoquistamente.
Acariciei o Pepe fortemente, olhei no fundo de seus olhos e vi flores, tantas flores que consegui sorrir. Ele era a própria flor de todas as estações. Apertei-o nos braços e só nesse instante pude sentir que uma distinta divisão iria nos separar daqui a uns dias. Ele entendeu o meu sentimento, tanto que encostou sua cabecinha calmamente em meu peito. Adivinhou minha dor. Ela era também a sua.
Minha saudosa mãe..., meu prumo, minha luz! Eu já sobrevivia órfão, desaprumado e em incontida escuridão, como se continuar vivendo fosse o pior breu dos olhos. Afastei a poltrona, o pus no chão, levantei-me antes de apagar o computador e desci para o desjejum. A mesa estava cheia: apenas eu sentado e a olhar a primavera do meu jardim. Como as coisas mudam! Os rumos dependem de nossas vontades, assim como o barco, da força valente das águas. Havia em mim um náufrago em seco mar de pétalas murchas. Desprimaverizado, eu sentia inda mais as furadas dos espinhos. Olhar no olhar dos filhos e encontrar nossas lágrimas é o espinho que mais fura. Ela estava escondida e com os sentimentos escondidos às mãos. Eu tinha de entender que os dedos são desiguais e que cada coração permite-se encher com o amor que lhe for querido. Mas deixá-la de amar, pensei: nunca me seria verdadeiro. Eu precisava terminar o café matinal e ir-me sem o Pepe. Ele ficaria arranhando-se entre os espinhos malvados da separação, mas com a interminável tarefa de paquerar as cadelas no cio do condomínio. Pepe não era apenas um anjo; meu cãozinho era o símbolo de minha fidelidade para com o amor à vida. O tempo se encarregaria de acomodar minha ausência na casa. Era tarde, quase meio-dia e eu tive que ir. Quando liguei o carro, diferente dos outros dias, ele não me seguiu até a primeira esquina da praça. Ficou cabisbaixo por uns segundos e, sem me olhar, ele adentrou. Meu coração solução de dor. Era chegado o fim de tudo. Ele e eu moraríamos em casas distintas, longe uma da outra.
Todas as vezes que me lembro dele eu me pergunto: por quê? Como os humanos conseguem se separar com tanta facilidade? Se o mundo fosse habitado apenas por almas como a do Pepe, jamais encontraríamos assento para essas atitudes desprimaverizadas. Haveria mais amor entre os homens. Se eu pudesse escolher, juro que reencarnaria como um Yorkshire!