O Casamento do Padre Bartolomeu
Quando chegou na cidade de Poriã a notícia que o vigário Bartolomeu Dias ia se casar, foi o maior alvoroço na comunidade. Dna. Lurdes da igreja, como era conhecida a velha senhora que há cinqüenta anos cuidava do templo, da casa paroquial, e dos padres que nela morassem, (e que tinham sido cinco contando com o atual), estava naquele momento engomando as toalhas do altar. Sentiu as pernas tremerem e um amolecimento no corpo todo. Sentou-se em uma cadeira para não cair. Com o coração disparado, com as idéias embaralhadas e um olhar atônito, pediu ao seu interlocutor que repetisse a notícia.
-É isso mesmo dna. Lurdes – disse ele – É o que acabo de dizer. O vigário vai se casar! Quem trouxe a novidade foi o Basílio. Ele chegou de viagem agorinha mesmo, e eu vim correndo lhe contar. Leu nos jornais. Diz que lá na capital não se fala em outra coisa
-Não é possível, ...não é possível – dizia baixinho a dna Lurdes. – Esse homem é um santo. Sempre viveu para a igreja e para Deus. E, além disso, como é que um homem chega na idade que ele chegou e resolve se casar? – Perguntou entre incrédula e inconformada. E sabendo que não teria resposta completou. – mais de setenta anos. Se estivesse começando agora, fosse jovem, daria para entender. Mais de setenta anos! - Repetiu.
- É dna Lurdes, para cometer pecado basta estar vivo. Bom, acho que eu vou andando. Com a senhora está tudo bem? Não está? Perguntou o interlocutor.
- Sim, sim...comigo está tudo bem. -E indagou – Alguém mais sabe desta tragédia, além é claro, do senhor e do Basílio?
- Ah, deve saber sim! Eu acho que a estas horas a cidade inteira já sabe, disse o homem.
- Está bem, está bem. Em todo caso, obrigado por vir me avisar.
Assim que o homem saiu, ela ajoelhou-se e começou a rezar ao santo de sua devoção que, por ironia, era o santo Antonio. Queria não só rezar, como pedir orientação, mas não conseguia. A imagem do padre santo se casando não saía de sua cabeça. Ficava ali, martelando...martelando.
Como podia acontecer uma tragédia desta logo no dia em que o padre da paróquia sai em viagem de férias? – pensava – Se o padre Celso estivesse na cidade seria mais fácil. Ele saberia o que fazer para desmentir o boato, , ou então confirmar se fosse verdade. Certamente o padre Celso já estava sabendo. Dois dias antes ele havia ido até o Centro Telefônico, e lógico, telefonara para a Capital. Devia saber que era lá que o vigário Bartolomeu estava morando, desde que saíra da cidade praticamente seqüestrado. Além disso, há mais ou menos uns quinze dias, o padre Celso recebera uma carta do senhor Bispo. Pode ser que esta sua viagem de férias tenha muito a ver com a história toda. Não será ele, o padre Celso, o encarregado de oficiar o casamento? Arrependeu-se de tais pensamentos, e temerosa pediu perdão à Deus, pelo mau juízo que estava fazendo do pároco atual.
- Que fazer meu Deus do Céu? Que fazer? Logo o vigário. Um santo. Um mártir. Só pode ser coisa feita. Coisa do “tinhoso”. O diabo tomou conta dele – dizia em voz alta dana Lurdes da igreja, gesticulando com as mãos, e andando de um lado para outro. Mais uma vez pediu perdão à Deus pela blasfêmia.
Parou, de repente, e num impulso involuntário começou a revirar toda a casa. Abria e fechava gavetas e mais gavetas atrás da tal carta do Bispo. Não encontrava nada. Concluiu que o Padre Celso com certeza levara a carta consigo. Ou ateara fogo nela para não deixar nenhum vestígio.
- Não deve ter lhe passado pela cabeça, que mais cedo ou mais tarde os fieis descobririam. Mentira tem pernas curtas, já dizia minha avó – repetiu em voz alta. Assustada, levou a mão à boca, temendo que alguém pudesse escutá-la.
Recomeçou as buscas. Olhou atrás das prateleiras, foi para o quarto, revistou os bolsos das calças, revirou as batinas pelo avesso, olhou em baixo do colchão. Cansada e desanimada, sentou-se na cama. O contato com aquele mobiliário tão íntimo, lhe fez lembrar-se da série de sonhos nada santo que tivera, não só com o vigário em questão, mas também com outros padres que o antecederam. Novamente pediu perdão à Deus por pensamentos tão absurdos e pecaminosos.
Nesse momento chegaram dna. Dália, dna Argentina e a Menina Estrela, sua filha adotiva. Estavam sabendo de tudo e queriam a confirmação, ou não do boato que corria à solta na cidade.
- Confirmar o quê? Confirmar o quê? Eu sei o que vocês sabem. O Basílio chegou com a notícia que leu nos jornais. Um escândalo. Será que ele teria coragem de inventar uma história destas? – Perguntou dna. Lurdes.
- Alguma coisa tem de ser feita – disse dna Dália, que era presidenta da Irmandade Bom Jesus do Descanso Eterno. – Foi para isso que nós viemos falar com você.
- Mas vamos por parte – disse a dna. Argentina. – Primeiro não podemos fazer nada para impedir o casamento; segundo, precisamos formar uma comissão para falar com o senhor Bispo.
- Falar com o senhor Bispo para quê? – Perguntou a Menina Estrela.
- Por que o nosso bom padre Celso só volta daqui uma semana, respondeu dna. Dália, complementando: - Nós temos que resolver este assunto ainda hoje. Por telefone mesmo, se for necessário, é preciso que ele mande uma mensagem, ou mesmo que venha pessoalmente, para acalmar esse povo e...
- Já estão todos na igreja em vigília permanente, - sentenciou dna. Argentina, que nunca deixava dna Dália terminar um assunto, e completou: - Eles querem ter a certeza que os milagres que o vigário fez nessa cidade não vão ser tornados sem efeito, por causa desse mal passo que ele está por cometer.
- Quantos se curaram com seus milagres? E, se voltarem a sofrer dos mesmos males de então? –completou rapidamente dna.Dália.
- Vocês vão falar todas ao mesmo tempo, com o senhor Bispo, ou cada uma vai falar sobre um pedaço da história? Perguntou a Menina Estrela, que não conseguia entender por que uma comissão para falar por telefone.
- Ora, ora, não seja impertinente. – Ralhou dna. Dália
- A comissão é para decidir o que falar. Como falar e, principalmente quem vai falar com sua reverendíssima. - Atalhou dna. Argentina.
- O prefeito, acudiu a Menina Estrela. Mas ninguém lhe deu atenção. Da mesma forma que não ligaram quando ela perguntou-lhes se não estavam sendo precipitadas e aquele povo também.
Resolveram reunir a diretoria da Irmandade, convidaram o Didi da Farmácia, presidente da Congregação Mariana e responsável pela festa de São Pedro, e a presidenta das “Filhas de Maria”
A reunião que aconteceu, ali mesmo, na casa paroquial, demorou apenas dez minutos. Três pessoas ficaram encarregadas de ir à casa do prefeito pedir-lhe que telefonasse ao senhor Bispo, em nome da comunidade: Dna. Dália, dna. Lurdes da Igreja, e o farmacêutico.
O assunto, pela sua gravidade, era urgente. Ali, entre eles, ninguém conhecia um caso com tais precedentes. Padres que se casam, já haviam ouvido falar de muitos. Abandonam a vida eclesiástica por causa de um rabo-de-saia. Mas são padres comuns, sem vocação, que se formam induzidos pela família, sem saberem o que é a vida de um religioso. Sem a firme decisão de enfrentarem uma vida de sacrifícios e solidão. Mas, de padre milagreiro e velho, que abandona a batina para se casar, era o primeiro. O vigário Bartolomeu havia respondido por aquela igreja durante doze anos. Nos últimos meses que lá esteve, é que começaram os milagres. Quando veio a ordem de sua transferência, uma comissão de piedosos encaminhou ao senhor Bispo, um abaixo-assinado pedindo a revogação da medida. Não ficou uma só pessoa da cidade sem participar.
Pelas crianças menores, que não sabiam escrever, os pais escreviam o nome do filho e colocavam ao lado “a rogo”. O mesmo acontecia com os analfabetos. Até o doutor Mendes, ateu confesso, e os poucos que pertenciam às religiões não católica, fizeram questão de subscrever o documento, em respeito e reconhecimento à devoção do padre santo e milagreiro.
Houve apenas um caso polêmico na coleta de assinaturas: uma senhora, casada há mais de vinte anos, e grávida do primeiro filho, cuja barriga mostrava a todos, como prova de mais um milagre do padre Bartolomeu, queria deixar registrado no documento a participação do filho que estava por nascer. As opiniões se dividiam.
- Como uma criança que ainda não veio ao mundo pode protestar? Ou reivindicar? Ou homenagear? Uma criatura que ainda não tem nome. Diziam alguns.
- E as crianças de colo? Já foram registradas. Mas, sabem alguma coisa? São incapazes. No entanto seus nomes estão lá, retrucavam outros.
- Mas esses já foram batizados. Replicavam os primeiros.
Foi o diretor do Grupo Escolar quem veio com a solução. Os futuros pais deveriam decidir no momento o nome que dariam ao filho ou filha que estava para nascer. E assim constou da lista logo abaixo dos nomes dos orgulhosos pais: Sara ou Abraão.
De uma coisa, porém, sabiam: aquele homem não podia ser transferido de Poriã. Quantas pessoas ele havia curado? Colocava uma das mãos na cabeça do infeliz, fazia umas orações, aspergia um pouco de água benta, e pronto. Se o fiel, realmente tinha fé, ia embora livre do mal que o acometia.
Assim que o Bispo recebeu o abaixo assinado, resolveu adiar momentaneamente a transferência, mas proibiu o vigário de continuar com suas curas, com a maluquice de suas benzeduras. A história já estava indo longe demais. O Bispo achava que era uma manifestação exagerada de fé daquelas pessoas. Poderia surgir uma comoção geral. Perigosa, inclusive, tanto para o povo como para a igreja. Fenômenos desse tipo precisam ser estudados minuciosamente antes de serem tornados públicos. Analisadas suas possíveis conseqüências, para então ter ou não a autorização da igreja. O entusiasmo religioso excessivo poderia gerar resultados danosos e irreversíveis, era a sua opinião. Mas o povo não entendia a preocupação do senhor Bispo. Achavam que era falta de humildade, ou inveja. Quem Sabe?
- Ele, Bispo, não tem poderes para curar, e não aceita que um simples padre de uma cidadezinha o tenha – diziam os fanáticos, entre exaltados e ofendidos.
- Dna. Dália lembrou-se do dia em que o vigário voltou a fazer a fazer os seus milagres e, que foi também o último. Assim que terminou a missa do domingo, o povo se recusou a sair da igreja sem que aquele santo homem desse a benção especial. Ameaçaram, inclusive, incendiar a capela.
- Quem o senhor Bispo pensa que é para mandar nos milagres dos outros? Daqui nós não vamos sair – gritou alguém no meio do povo, no que foi aplaudido e obedecido pelos presentes.
O vigário Bartolomeu não teve outra saída, senão dar a benção curativa. E, aquele dia ficou conhecido na cidade como “o domingo da milagreira”. Mais de vinte pessoas foram curadas de uma só vez. De torcicolo a espinhela caída, seus males ficaram para traz.
Naquela mesma semana o “santo” Bartolomeu foi transferido. Chegou aos ouvidos do Bispo, não só a irreverente desobediência do religioso, como também a notícia que nas cidades vizinhas estavam sendo formadas caravanas, com destino à Poriã, para conhecer o “novo Messias” no domingo próximo. Vieram buscá-lo à noite e ninguém nunca ficou sabendo para onde o levaram. Agora vem esta notícia da capital. Não estava tão longe assim. – Antes estivesse. Esta notícia só chegaria aqui depois de minha morte – sentenciou dna. Dália.
A igreja ficou abandonada seguramente um ano. O padre Celso, que viera em substituição ao vigário, fazia de tudo para trazer os fiéis de volta para a igreja, mas poucas eram as pessoas que ele conseguia convencer. Foi nessa época que surgiu na cidade as igrejas evangélicas, fundadas pelos dissidentes católicos.
O grave da situação presente é que, assim que a notícia do casamento do padre Bartolomeu se espalhou pela cidade, com ela também espalhou-se o boato que, uma vez casado o padre, cessavam todos os atos por ele praticados, durante sua vida clerical, inclusive no caso em foco, os milagres alcançados pelos religiosos. O casado voltava a ser solteiro, o batizado pagão, as almas encomendadas iam para o limbo, junto com os que morreram sem conhecer a luz do batismo. Os pecados confessados perderiam o perdão, assim como o coxo voltaria a mancar.
Para evitar que isso acontecesse, era necessário que o senhor Bispo, por ser autoridade maior, convalidasse, com urgência, todos os feitos do padre, anteriores a condição de pecador maior. Ou seria o caos. Uma tragédia da qual a cidade não se recuperaria jamais.
Quando os três saíram em direção à casa do prefeito, de longe dava para se ouvir o vozerio daquela gente rezando diante do altar mor. Imploravam à Deus para que iluminasse o senhor Bispo, para que esse, atendesse o pedido e confirmasse os atos praticados pelo padre, anteriores ao pecado. Principalmente os milagres. Pelo vigário não pediam nada. Sua alma já estava condenada a arder no fogo do inferno.
O prefeito recebeu a comissão com certo ar de contrariedade. Às sextas-feiras à noite não gostava de assumir qualquer tipo de compromisso. Estas noites ele reservava para se reunir a um grupo de amigos em volta de uma mesa, para jogar baralho e beber cachaça.
Já estava sabendo do suposto casamento do vigário, desde a hora que a notícia chegou à cidade. Não dera maior importância ao caso nem pretendia telefonar ao senhor Bispo por dois motivos muito simples: primeiro, não podia fazer nada para impedir o casamento; segundo, era favorável ao casamento de padres.
Essa afirmação do alcaide caiu como uma heresia no meio do grupo.
Dna. Dália chegou a dar um grito de espanto e indignação. – Onde já se viu coisa semelhante? O prefeito da cidade, uma autoridade, dizer um impropério destes. E logo na frente dela, que havia votado nele?
Porém o alcaide mudou de opinião quando o Didi da Farmácia o colocou a par da preocupação que os levara a fazer tal pedido.
- Meu Deus – disse o prefeito mostrando se assustado. Lembrando-se que, quando sua mulher descobrira que ele tinha uma amante e, todas as suas falcatruas, passara a não lhe dar sossego. Vivia vigiando-o, seguia-o para cima e para baixo. Tinha crises de choro constante, além é obvio, das ameaças que passara a fazer. Mas, foi com os conselhos e as benzeduras do padre, que ela, não só parou com aquela histeria, como nunca mais se importou com suas aventuras extra-conjugais. Ele não pode se casar, não - pensou com seus botões. – Nem que para isso eu precise mandar matá-lo.
- Quem foi que apareceu com a notícia? – perguntou o prefeito.
- Foi o Basílio – responderam em coro
- Pois então vão buscar o homem. Nós precisamos falar com ele. Saber os detalhes para poder falar com o senhor Bispo. Mas corram que o tempo não tem paciência.
Quinze minutos depois, o imprudente fofoqueiro, acompanhado da comissão estava sentado na sala de visitas da casa do prefeito. Cabeça erguida, falou compassado e com segurança:
- Foi hoje logo cedinho. Eu estava na capital, na loja do Miguel José. Enquanto o caixeiro embrulhava as minhas compras, eu peguei um jornal para me distrair. Foi quando eu li com meus próprios olhos. Eu não queria acreditar, reli a notícia uma porção de vezes. Estava lá, escrito: “Edital de proclamas. Casamento do senhor Vigário Bartolomeu com a senhora...”