Morrer é difícil
Voltava do mercado descendo a rua, quando vi a dona Juraci conversando com uma outra senhora, na esquina. Passei por ela, cumprimentando-a, perguntando como ia a sua banca de jornais. E já ia prosseguindo meu rumo para casa, quando ela me chamou. Voltei.
– Menino do céu, você já está sabendo do Rodrigo, aquele menino que veio do Pará estudar agronomia na faculdade? Aquele que vocês apelidaram de Pará?
– Ah, sim, o Pará. Sei, faz umas semanas que não vejo ele aqui no bairro – respondi.
– Então, menino! Ele se matou ontem à noite – contou, cobrindo a boca com a mão.
– O quê? Ele se matou? Como? – não acreditei.
– Ah, como eu não sei. Só sei que se matou ontem, lá na república dele. Os pais dele já estão sabendo e pediram para levarem o corpo lá para a cidade dele, onde será feito o enterro. Mas a família pediu para deixarem ele ser velado por uma hora aqui na cidade. Ele está lá naquela capela mortuária, perto do cemitério, sabe? O corpo vai ficar lá até as quatro horas. Só para você saber, caso queira ir lá, já que vocês já moraram juntos, não é?
Acenei que sim com meu semblante chocado. Tinha ficado chocado mesmo. O Pará era a última pessoa que eu pensaria que poderia acabar se matando durante a faculdade. Ele era tão legal, tão extrovertido, tão... Continuei: – Mas, obrigado, dona Juraci. Vou deixar essas compras em casa e vou ver se vou lá. A senhora já foi? – perguntei.
– Eu, não. Deus me livre. Eu não vou em velório de quem fez essas coisas. Eu acho que é uma morte maldita, não é? Quem se mata é muito covarde, deixa a família sofrendo para o resto da vida. Covarde. Eu não vou nisso, não, viu? – e tornou a prosear com a outra senhora.
Eu voltei pra casa meio fulo. Estava confuso, e agora, fulo. A dona Juraci às vezes age com muita grosseria. Não são bons modos vindos de uma senhora chamar uma morte de maldita ou um morto de covarde.
Cheguei em casa, deixei as compras na mesa da cozinha e fui para o meu quarto. Peguei meu violão. Recostei-me na parede, olhando a rua pela janela enquanto tirava uns acordes. Dó, Lá menor, Fá, depois Sol. Parei. Deslizei minha mão pelo braço do violão, relando a ponta dos dedos nas cordas, do corpo até a pestana, enquanto meus olhos vidravam para o branco da parede. Viajei por uns segundos na mente. Então descansei o violão no meu colchão, e saí para pegar um ônibus com destino à capela.
Para um domingo, até que o ônibus não demorou. Passei quase todo o trajeto olhando para o chão, pensando em muitas coisas. Para mim, quando alguém que eu conheço se vai, se vai de todo modo, eu passo o dia pensando nos amigos legais que conheci e que saíram da minha vida. Não gosto muito de lembrar do passado, e por isso quase desisti de ir ao velório, pensando em descer em qualquer um dos próximos pontos e voltar para casa a pé, mas decidi por continuar.
Também fiquei pensando no que a dona Juraci falou, sobre quem se mata ser um covarde. Eu não acho isso. Na verdade, acho até que é preciso uma boa dose de coragem para levar um suicídio até o fim, principalmente em uma morte que acarrete dor, mesmo que se tenha em mente que após a dor venha o fim, e o nada. Mas, acho também que nem é uma questão de covardia ou coragem quando alguém está tão desesperado a ponto de se matar ficar no entendimento de ser a única saída.
Finalmente cheguei à capela. Caminhei lentamente pelo hall de entrada, e fui lendo nas placas das entradas dos salões o nome de cada um dos corpos que estavam sendo velados naquele momento. Três corpos estavam sendo velados. O Pará se encontrava no salão mais próximo da entrada da capela. Era o salão com menos gente. Não reconheci ninguém. Entrei no salão e caminhei até o caixão. Lá estava ele. Estava meio diferente. Parecia estar dormindo. Mas ele não dormia assim, de barriga para cima, deitava sempre de bruços, todo espalhado no colchão. E também nunca usaria um terno, acho que nem no próprio casamento.
Suspirei, pensando comigo mesmo, enquanto fitava seu rosto nortista: – Ah, Pará, o que foi que você fez?!... Esta foi sua última travessura, hen. Aprontou a última bagunça, seu malandro...! Ó, Pará, se cuida. Fica com Deus, irmão. Ah, velho, o que você foi fazer?...
Cocei a nuca enquanto olhava para o seu corpo uma última vez, e saí do salão. Tinham-se passado nem dois minutos.
Perto da porta da entrada do salão tinha um livro de condolências, mas só algumas poucas pessoas haviam escrito nele, o que era um desmerecimento pelo tanto de amigos que ele teve em vida aqui na cidade. Resolvi escrever meus sentimentos no livro. Terminei de escrever e nem reparei que um jovem da minha idade havia acabado de se levantar de uma das cadeiras do salão e vindo me cumprimentar. Ele estava aguardando eu terminar de escrever para escrever também. Acho que ele não sabia que era para escrever e estava esperando alguém tomar uma iniciativa. Ele se apresentou como um amigo do Pará que havia morado com ele por um tempo na república dele. Fomos caminhando até a entrada da capela, onde ficamos conversando um pouco. Eu queria tomar um ar. Aquele cheiro de flores não me estava fazendo bem.
– Você conhece o Pará de onde? – perguntou o rapaz.
– Conheci ele em um pensionato, perto da faculdade, antes de eu ir morar em uma república. Mas ele ficou lá só por uns meses depois que eu cheguei. Ele saiu do pensionato com uns amigos justamente para formar essa república pela qual você passou – respondi.
– Eu não consigo entender como um cara tão bacana, com uma vida cheia de amigos, mulheres, festas, de tanta coisa boa pode acabar se matando.
– Você sabe como ele morreu? – lembrei de perguntar.
– Só se sabe o que os vizinhos contam. Sabe, na noite em que ele se matou, ele esperou todos da república saírem, e, quando estava sozinho, cheirou muito pó, além da conta, e acabou morrendo de overdose. A ambulância só foi chamada porque os vizinhos ouviram ele gritando umas coisas enquanto agonizava alucinado. Os vizinhos disseram que ele cantava uns hinos evangélicos e pedia para Deus perdoá-lo. Foi bem aterrorizante. Ele queria parar com as drogas e há um mês passou a frequentar aquela igreja batista lá da esquina com o mercado, sabe?
– Sei – eu já sabia que o Pará era chegado num pó. Na verdade, todo mundo que conhecia ele sabia. O rapaz continuou desabafando:
– Ele estava bem pra baixo, lá no fundo, bem dentro da alma, sabe. Sofria em silêncio, tão no silêncio que ninguém percebia, nem mesmo seus amigos mais próximos, nem seus pais, e, talvez, nem ele mesmo. Acho que nunca conhecemos o suficiente de uma pessoa, ou somos insensíveis o bastante para não percebermos se há algo de errado. Eu mesmo só acreditei que ele realmente tinha morrido quando eu vim vê-lo aqui. Só quando eu o vi, ali, no caixão, e fitei seu rosto, é que acreditei. Você me entende? Parece bobo, mas eu tive que ver para minha mente aceitar que era real.
– Sei como é. Realmente sei como é.
– É que é a primeira vez que venho a um velório. Você já foi a outros velórios antes?
– Na verdade, este é o segundo em que venho. O primeiro foi há uns dez anos. Foi de um amigo meu, eu tinha uns quinze anos e ele também. Morreu por causa de um tumor no cérebro. E eu também precisei vê-lo no caixão, para ter a certeza de sua morte. Acontece.
– Deve ter sido um momento difícil. Fico imaginando como deve ser para a família.
– Acho que só dá para saber passando por isso.
– É verdade. E para você foi marcante a morte desse seu amigo? – hesitou, – Er... Foi mal, não devia ter perguntado isso.
– Tudo bem. Mas a verdade é que foi marcante, sim. Até hoje lembro da data em que ele morreu, e até hoje, todos os anos, quando chega essa data, eu lembro dele, e do dia em que ele morreu, do velório, do enterro, e tudo o mais: de como estavam as nuvens no céu, dos nossos amigos que nunca havíamos visto chorar antes chorando, e das músicas que cantávamos. E aí eu tento pensar só nas lembranças legais que eu tenho dele, para me sentir um pouco melhor.
– E dá certo?
– Às vezes. Mas eu faço esse ritual assim mesmo. Mas é porque a morte desse meu amigo ninguém esperava, e nós éramos jovens, aquilo nos deixou confusos.
– Como a morte do Pará. Ninguém iria imaginar.
– É, como a morte do Pará. E acho que dele também podemos nos lembrar de muitas coisas loucas que ele fazia quando não quisermos só nos lembrar da morte dele.
– Isso é – fez uma pausa. Olhou para os lados como se estivesse se recordando de algo e prosseguiu: – Uma vez, a gente tinha feito uma festa lá na república e a rua estava cheia de gente. Ele já tinha tomado de tudo um pouco, e saiu pelado para a calçada, perguntando se tinha alguma garota que quisesse ficar com ele àquela noite. Na verdade, ele tinha apostado uma caixa de cerveja que conseguiria.
– E ele conseguiu?
– Acho que ia acabar conseguindo, mas alguém chamou a polícia, e quando ele viu a viatura entrando na rua, correu pra dentro de casa e tivemos que jogar uma conversa nos policiais de que devia ter sido um trote, e tal. A gente quase foi pra delegacia. Mas depois rimos pra burro. Foi um dos dias mais hilários que tive na minha vida.
– Você me fez lembrar agora que, lá no pensionato, tinha um cara muito mala que estava paquerando uma mulher do serviço, e toda vez que ele chegava ia para o telefone público que tinha na frente do pensionato para ligar para ela. Uma vez, o Pará socou pimenta com mostarda nos fones do orelhão, e, quando o mané chegou todo ansioso para falar com a mina, lambuzou toda a cara com o molho. A gente ficou na janela, espreitando, e morremos de rir com a cara dele. E, esse mesmo cara deixava sempre seu carro bem embaixo da sacada de onde era o quarto do Pará. Um dia, o Pará passou mal de tanto que ele bebeu, que vomitou da sacada bem em cima do carro do cara. No dia seguinte, quando o mané foi trabalhar se deparou com o para-brisa todo melecado de vômito. E era muito engraçado ver aquele cara irritado, e só o Pará sabia fazer isso com ele, e nós ríamos muito com ele.
– Sabe, demos boas risadas agora, e já me sinto bem melhor.
– É, mas acho que rimos um pouco alto demais para um velório, e algumas pessoas já estão olhando para nós com cara feia. Ainda bem que os pais dele não estão aqui.
– É verdade – consentiu.
– Bem, acho que já vou indo, eu só vim dar uma passada mesmo. Beleza te conhecer, irmão.
– Valeu por ter vindo. Qualquer dia a gente se esbarra. Vou ficar mais um pouco, esperar levarem o caixão, e ver se chega mais um conhecido. Ah! Só mais uma coisa. Eu não pude deixar de ler o que você escreveu lá no livro de condolências. Você escreveu: “O sistema é mal mas minha turma é legal”. É de uma música do Legião Urbana, não é? “Vamos fazer um filme”, não é? Por que você escolheu este verso?
– Eu estava saindo da oitava série quando esta música saiu no rádio. Às vezes, no recreio, ou na saída, eu e minha galera, que convivemos juntos deste a primeira série, nos reuníamos para cantar as músicas do Legião. Até comecei a aprender a tocar violão, por causa de um amigo meu, que era quem acompanhava com o violão dele a gente cantando. No final do ano, todos nos separamos e nunca mais nos vimos, cada um foi para o seu canto, e foi como se eles não existissem mais, como se tivessem morrido, ou eu tivesse morrido para eles. E então esta música me marcou muito, e sempre que alguém que eu conheço e com o qual já convivi se vai, se vai de qualquer modo, eu passo o dia pensando nessa música, como uma forma minha de manter na mente as lembranças boas daqueles tempos.- E cantarolei baixinho:- “O sistema é mal, mas minha turma é legal...”
– “... Viver é ‘fogo’,...” – continuou o rapaz, modificando o verso, talvez por respeito ao local.
– “... Morrer é difícil” – completei, sacudindo a cabeça, enquanto voltávamos nossos olhos para o caixão aberto, lá no fundo da capela. O rapaz também sacudiu a cabeça de leve, confirmando que então tinha entendido o porquê destes versos no livro de condolências.
– Acha que morrer foi difícil pro Pará?
– Acho que é difícil pra todo mundo. E acho que pra ele foi difícil a vida toda.
– E acho que hoje, pra mim, vai ser um pouco difícil pegar no sono.
– É, as primeiras noites são ruins mesmo. Bem, até mais. Eu vou nessa.
Despedi-me do cara, e peguei o ônibus de volta pro bairro. Voltei pensando nos amigos da escola, nas meninas que paquerei, nas meninas que me paqueraram, nos trabalhos de grupo. Lembrei, com um sorriso no canto da boca, de quando provei vodka pela primeira vez na casa de um colega. E pensei no meu amigo que morreu jovem, pensei no Pará, e voltei a pensar nos amigos da escola. Cheguei em casa, sentei-me na minha cama e voltei a tocar meu violão, cantando sozinho, para mim mesmo, as velhas músicas do Legião. Cantarolei “Vamos fazer um filme” mais de uma vez. Era quase um ritual. Sagrado. Minhas condolências pessoais, para o Pará, para os amigos que nunca mais vi. E para mim. Sempre quem fica precisa ser consolado, mesmo que seja por si mesmo.