Travessia

Final de verão! Certas pequenas nuvens teimam em flutuar no horizonte que o calor tem endoidecido com seu bafo pegajoso e irritante. Nenhum vento aparecia para amenizar aquele estado de letargia do próprio mundo ante a inclemência do sol de verão.

Havia em sua mão uma rosa amarela! E o moço não sabia o código das cores. Para ele uma rosa era uma rosa... o presente fugaz que deixa marcas indeléveis na alma feminina que o recebe. Sabia disto, tanto quanto sabia de amor uma criança que na verdade era.

Carregava aquela rosa como quem carregava o mundo. Era um cuidado que o obrigava a manter os dedos delicadamente firmes... Por isto o suor a lhe empapar as axilas. _ Não dará certo! _Falta coragem! _Ela não entenderá nada de nada! _Afinal, quem sou eu pra me dar o direito de ao menos tentar algo assim!

Medo, Dúvidas, Rasgos na alma infante, Lanhos profundos castigavam-no por dentro e por fora. O mundo estava, ali, pronto para ridicularizá-lo ou julgá-lo como juiz irredutível e alheio às suas imensas vontades ante tão parcos recursos.

A rosa amarela e murcha sobre o banco ausente do jardim seria testemunha e cúmplice de mais um dos muitos amantes ocultos, de mais um desertor diante da primeira batalha a que o cortejar se assemelha.

Fora inútil o existir daquela rosa? Teria nascido apenas para perecer desidratada sobre o banco de cimento? Inutilizada pelo covarde algoz, estava fadada a ser esquecida sem que tivesse participação efetiva no que o ser humano, na sua infinita arrogância e megalomania, impusera a ela como projeto de vida.

. . .

Ela acabara de sair do banho e, no entanto, a transpiração se dera até mesmo sob a ducha fria escorrendo luzidia pelo corpo, em deslizar macio e silencioso, arrepiando-a pela sensação do prazer indescritível. A água descendo pelo seu corpo foi um alívio para um dia cansativo e extremamente causticante. Daí a sua vontade de eternizar o momento, enquanto percorrera suas mãos aveludadas e amadoras por toda a extensão do corpo esguio. Os bicos dos seios despertaram!

Seus dedos quase que poderiam contar cada ponto de sua pele, eriçado pelo dedilhar amedrontado e silencioso. Tivera consciência de que o pecado esterilizaria sua alma apinhada de tabus até então mantidos como palavra de ordem. Mas fora tudo tão bom que valera pelo gosto que lhe secara os lábios vermelhos e carnudos. Sua língua percorrera a fileira de dentes perfeitos que ora trincaram, ora pareceram querer devorar o mundo.

Por culpa ou pudor, sei lá, não emitira um gemido sequer. Contivera a voz, engolira qualquer sussurro que certamente lhe devolveria ao mundo real e cruel. Suas pernas se abriram involuntariamente, como se recebesse o amante sempre esperado para possuir a mulher, na ampla acepção da palavra. Trêmula, dirigira o jato da ducha contra o vértice das pernas e a sensação se tornou doridamente indescritível.

_ Aaaaaahhhhhh! Explodira, enfim!

Depois dos incertos e desconexos movimentos que promovera e não pudera mais controlar, uma letargia preguiçosa a possuíra, obrigando-a a permanecer prostrada dentro da banheira. Seus pensamentos flutuaram sem destino, revolvendo sua própria história de medos e ritos.

Pouco depois o secador lambia-lhe os cabelos castanhos, longos e cheirosos, abraçados à escova, supondo um contato de frescor remissível.

De frente para a porta espelhada do guarda-roupas, seus gestos evoluíam naquele trabalho de tentar aperfeiçoar o que já nascera único e intraduzível em palavras que referissem ao belo. A medida de seu esforço contribuíra para que o roupão branco se rebelasse e permitisse uma abertura frontal, permissiva e pecaminosa.

Eis a imagem perfeita: a languidez daquele pequeno seio se insinuando, meio encoberto pelo tecido, apontando para o alto, capturando sonhos de luxúria. Haveria algum poeta, ou pintor, ou escultor que se aventurasse a exprimir com absoluta fidelidade a ventura daquelas formas divinas e... demoníacas?

Finalmente, terminada a ocupação com os cabelos, levantou-se, deixando tudo espalhado sobre a cama. Encaminhou-se para o guarda-roupas e vasculhou os cabides com resoluta suavidade, analisando e desdenhando cada peça testada por cima do roupão.

_ Ufa! Até que enfim!

Um conjuntinho palha: blusa de alcinhas e saia justa que chegava quase aos joelhos se prestariam ao prazeroso trabalho de beijar -enquanto cobrisse- aquele corpo a emprestar silhueta perfeita a tudo que o veta para o mundo.

Com gestos naturalmente sensuais e falsamente descuidados deixou que o roupão deslizasse até o carpete, revelando todo o fascínio havido no corpo feminino.

Era uma verdadeira poesia, o seu corpo. Aquela poesia colorida e vibrante, terna e quente, simétrica e envolvente. Seu pescoço longo e nu, recoberto por penugem dourada, era a própria ventura encarnada. A languidez do pescoço terminava em ombros igualmente perfeitos e poéticos que pareciam querer suportar -e podiam!- toda a luxuria que exala de uma mulher.

Antes que vestisse a peça de roupa escolhida, seu corpo estivera livre de qualquer agasalho, aprisionado pelo véu do olhar de seu admirador secreto que transformara a frincha da porta em umbral para o paraíso. Por todo aquele tempo não estivera sozinha como supunha!

As mãos do admirador, do intruso, esgueiraram-se para o meio das próprias pernas quase sem pelos e instalou-se a guerra surda entre o frêmito voraz e a cumplicidade do pecado que lhe corrompera as entranhas.

A pele morena, os cabelos, os ombros, as costas, as coxas... tudo que via -mais o que não via, porém complementava com a imaginação- se encaixava perfeitamente bem naquele momentâneo silencioso de vigília a que se propusera voluntariamente.

O instante se valera pelo imaginário e pela presença viva e pulsante do membro que atraíra e capturara, rasgando... despedaçando a lógica da razão em favor de uma realidade antes inaceitável, porém freudianamente admissível e explicável.

Sua mão se traíra, buscando o aconchego macio do ventre liso. O arrepio, inevitável! A cada deslizar de dedos um novo prazer se enfeixara aos outros, avolumando a necessidade de explodir em gozo que -se mal direcionado- se lançara pela direção correta das mãos a acariciarem.

O sangue latejara-lhe nas veias, enquanto músculos, pouco a pouco, recompuseram-se ante seu olhar baço e pecador. Não tivera até então a noção exata de sua atitude. Tudo fora se avermelhando à sua volta em profusão de desejos. A carne adoçara sua saliva viscosa em lábios inocentes. A neblina libidinosa descerrara o véu da volúpia sobre seus olhos púberes que, inéditos percebedores das formas e da concepção de beleza feminina, ignoraram tudo o mais que não se referisse à sua musa e definira este tudo como veleidade a ser abandonada no lugar comum das coisas vãs e secundárias.

Toda a química e a transformação natural do corpo se revelaram naquela primeira ejaculação rala e amarela a escorrer pelos pequenos dedos ainda segurando o membro mal desenvolvido e alheio a toda complexidade do momento, aninhado na palma da mãozinha trêmula.

Sonhara tanto durante o seu enlevo! Sonhara até mesmo ser um poeta.

Encantamento

Cada pensamento meu,

Mesmo que pareça vão,

Dita-me o chorar ou o sorrir

Quando você ri ou chora,

Ou quando você não ou não.

Pensar em você torna-se crucial

Pelos intermináveis instantes

Em que não a tenho comigo,

Ninando-me, desenhando-me.

E por ser tão repetitivo de gestos

Perco-me pelas minhas mãos

Querendo moldá-la em mim.

Mas eis que inútil pretensão!

Você já é completa por si,

Repleta de si e de mim

E de meus sonhos

E de tantos outros sonhos

Que não são meus!

Querer estar com você

Não é penitência.

É sublimação!

É razão aliada à loucura

De querer ser santo,

Quando sou apenas homem...

De querer ser deus

Quando sou criatura!

Eclodira o ovo de sua puberdade! A partir de então passaria a negar toda forma de inocência. Brinquedos, antes cuidados com esmero incomum, perceber-se-iam desleixados e empoeirados na sua inutilidade. Os olhos passariam a ser furtivos, angulares e maliciosos, na plenitude viril da nova e excitante etapa de vida.

A vergonha e o medo do pecado repousariam à sombra envolvente do desejo recentemente descoberto. Mais detalhista, passaria a vislumbrar novas formas e cores por onde andasse. E todas elas se convergiriam para o instante primeiro do desejo suscitado, quando os estímulos dispararam o coração e enrijeceram músculos então com vida própria e extremamente dominadores.

O momento de voltar da escola seria único e aguardado com ansiedade. A escadaria, a portaria, o elevador, o quarto, a porta entreaberta, o barulho da ducha e do secador... puro erotismo e sedução com hora e lugar marcados, rotineiramente.

Transformar-se-ia em rito! Mesmo depois de muitos anos, com certeza, haveria de repetir, um por um, os passos e gestos executados no quarto de fêmea que a fresta revelara. O filme se passaria religiosamente igual, sempre compassado. E o arrependimento presumível não emergiria da calda leitosa do êxtase sufocante.

O instante valeria pela crua exposição e pouco se importaria se um dia tivesse de solicitar uma expurgação. Pouco lhe importaria as marcas indeléveis do pecado que ninguém haveria de aceitar ou permitir que dele se redimisse.

Um dia, quiçá, lá estaria ele, olhos e membros visitando o que poderia haver de mais íntimo. Pele e suor violando o sacrário feminino, golpeando a consciência, desmistificando leis celestiais em tépido leito terreno. Antropófago, se revolveria e se revigoraria nas vísceras do prazer que a carne da fêmea suscitasse.

Se tudo, um dia, fosse convertido em apenas lembranças de seu primeiro de tantos pecados, seria o sinal de que atravessara aquela fase do inconsciente revoltando-se contra os ritos e mitos e misticismos que serviam somente para evocar o arrependimento que não regara. Nem consciência ou sensatez cultivaria mais!

Seu mundo absorveria o mínimo que lhe sobrasse daquele culto silencioso à mulher amada na surdina. O cheiro, o tato, o gosto e o gozo, naqueles dias remotos, mesmo sendo frutos de sua imaginação, converter-se-iam em pitadas de sal para o batizado do homem remido de uma inocência hipócrita e inútil.

Paulo Pazz
Enviado por Paulo Pazz em 29/10/2008
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