Minha Coca e Eu

Minha Coca-cola me entende muito bem. Quando sentada à beira dos compromissos e da mesa aflita confessamos mudas os nossos pecados: eu por deixar de trabalhar para escrever, ela por me provocar uma dor de estômago da qual hoje sinto falta, por enriquecer poucos patrões as custas do suor e do vício incontido de tantos como eu, e outros tantos obesos.

Ela entende que olhar o pôr do sol da minha janela pode ser mais edificante que simplesmente calcular a poluição da cidade. A cidade já se extinguiu! Eis a cidade: um monte de merda com humanos estrelando papel de vermes em suas ruas sujas e sem sentimento - que eu não me contradiga! Mas a Coca nem se assusta e, mais um gole, é como se meus pensamentos se fundissem aos seus através do nosso contato paladar. Ela sabe os meus segredos: sabe que tenho um amor e que, no secreto dos meus pensamentos tenho casa e filhos com quem vivo os dias felizes na grama de um parque, só nós e o pic-nic improvisado na tarde de um sábado preguiçoso. Minha Coca adora a Sofia e elas conversam sobre os porquês da infância até a noite chegar e as pálpebras infantis de minha filha não agüentarem mais de tanto cansaço de um dia de brincadeiras e de alegria. Conta estórias para ela. Todas os mais belos contos de fadas.

“- Ei! Não fique assim tão triste!”Certo dia a ouvi, juro que a ouvi dizer com sua voz obscura. Fiquei mais tranqüila, afinal era certo que a lata velava por mim. Mas que terrível ter uma amiga de lata, logo pensei...., temos que conversar entre sussurros surdos no meio de tantas pessoas, tanta confusão...., minha lata e eu então fizemos um pacto de nos comunicarmos mais expressivamente e então ela me disse pra ter coragem....., coragem....

Não entendia o porque da lata falar para que eu tivesse coragem, não compreendia o pra que da coragem,... Aí foi que eu me dei conta que estava no lugar errado, pois não tinha como poder conversar com a minha amiga Coca. Como eu poderia estar num lugar onde as cocas não eram valorizadas, nem as amizades, por mais estranhas que fossem??? Como dançar com sapatos de chumbo no meio de nuvens e ir afundando em desapontamento, em constrangimento, em estrangulamento dos meus valores morais, do meu orgulho, da minha vontade de amar que estava sendo tolhida. Como poderia te tratar assim minha amiga Coca?

Estava sendo realmente covarde, e pra ser sincera nem sei se continuarei sendo assim, porque o que vale mesmo é o preço da coca e não o sabor que ela tem, assim como o preço da vida ao invés dela mesma como a diversão e o prazer que há, como meus amigos saindo todas as tardes, o culto de quarta-feira, como a falta que sinto dos meus pais e o beijo que poderia roubar de Josué.Tantas coisas que deixo por tardes incomunicáveis ao lado de uma amiga muda pela opressão de um ambiente de trabalho frio e tantas vezes (tantas mesmo!) calculista!!!! Me perdoe.

Sigo o caminho escuro na volta pra casa. Uma flor amarela tão comum me chama atenção para si e eu a recolho nos meus lábios e a beijo como se beijasse todos os que amo. Mais um dia. Mais uma agonia pra justificar a minha insônia. Mais uma vez eu chego em casa, entrego a mesma flor de sempre a minha mãe As músicas surradas por quatro anos de abuso ficaram no caminho do ponto de ônibus até a casa de meus pais e eu fiquei na Coca, diluída e ácida na minha cama. Mas Josué, pé ante pé sobe na nossa cama, tira minhas roupas e substitui por roupas de dormir. Solta meus cabelos e os penteia docemente; esqueço o dia. Mergulho no sonho de nós dois e, no seu peito quente me lanço como se o mundo fosse uma grande ciranda e todos nós ainda crianças.

Luciana Sá
Enviado por Luciana Sá em 26/10/2008
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