A NOITE DE BACO
 
                                                   Brasília, 25/10/2008 

Até que ele vinha tentando melhorar. Na conversa com os amigos de boteco ele comentava que queria mudar de vida. Na verdade já estava cansado dessa vida de só ter tempo pra bebericar umas e outras, disputar sua sinuca e atentar ao futebol. Aliás, já fazia tempo que seu time, o Madureira, não ganhava e o sonho de subir pra segunda divisão estava mais perto do país das quimeras do que dessa real existência. Na sinuca, entretanto, não tinha campeonato que não ganhasse. E o prêmio, tirando um trofeuzinho de taco e uma sinuquinha desenhada na medalha, não variava: caixa de cerveja. E bebia todas, com uns poucos amigos, ali mesmo no bar. Quando voltava pra casa, lá pelas duas da manhã, já de domingo, a mulher avisava, incontinenti, que não dormisse na cama, pois aquele bafo e ronco, ninguém merecia. 

A reclamação de todos sobre o estilo de vida de Zeca era geral. De Pedrinho, seu filho, vinha a cobrança de quando que ele o levaria ao parque, pois já fazia três temporadas na praça, e à criança só ficava a promessa do pai de um dia levá-lo. Da mãe, a velha admoestação “meu filho, não beba, isso pode te deixar doente, que nem seu pai, que morreu de cirrose!”. Da sogra, só ouvia os resmungos, pelo canto, às escondidas, “não sei por que tu não largas esse bebum”. E a sogra, ainda alfinetava a paciência da filha insistindo: “Pedrinho se acostuma, minha filha, melhor seria que a criança crescesse num ambiente sadio”. Amélia nem dava ouvidos, e continuava seus afazeres. 

Amélia, mulher que sem pensar em ser igual a da música, não só não aceitava dormir com ele, depois de uma noitada de cachaça, mas ficava a questionar consigo mesmo sobre os ditames do destino: “Meu Deus, como pude gostar de Zeca? Gostaria tanto de mudar de vida!”. 

Na verdade, Zeca já vivia aquele estilo de vida quando ela o conheceu há vinte anos atrás. Ela se enfeitiçou por aquele que era considerado o “cara”. Jogava bola na praia de São Conrado, batia umas partidas de sinuca nos botecos, ganhava algumas cervejas, que ali mesmo as consumia, depois caía naquele mar revolto de surfistas. Embora pobre, sem nem um tostão no bolso, vivia e esbanjava da aparência. Zeca tinha um corpo escultural. Cabeludo, estilo black power, barriga de tanquinho e 1,90m de uma negritude de dar inveja. Ele sabia que era um negão bonito. Amélia, que não ficava pra trás, era o que havia de melhor da mulherada que desfilava na Rocinha. Era uma senhora mulata. Diziam até que, se Sargentelli fosse vivo, ela tocaria um instrumento de solo naquela orquestra de mulatas gostosas. Ela colocava a tanga fio-dental, com aquele par de pernas e bustos exuberantes a desfilar na praia, num requebrado caliente que chamava a atenção geral, inclusive de Zeca, que não era bobo e que ficava ligado, de olho bem aberto e, então, como a cantar de galo, gritava de onde estivesse: “Essa aí ninguém tasca que é minha. Quem tiver juízo que fique longe, pois essa nega eu vi primeiro!”. 

Foi com o desemprego de Zeca que a bebedeira pegou. Não conseguia trabalhar, porque profissão mesmo ele não tinha. Só sabia ser funcionário público, e ainda de emprego arranjado pelo vereador eleito, representante das favelas. Quando o governo tirou todo mundo, porque o Tribunal de Contas pegou no pé da exigência do concurso público, o Zeca foi o primeiro a dançar. E olha que ele era um pé-de-samba. Contam até que ele fora um dia convidado pros ensaios da escola de samba da Mangueira. Quem sabe seria um mestre salas?! Duvidou, nunca tentou. Dizem que teve medo de subir aquele morro, pois lá morava um desafeto das sinucadas da vida, onde ganhara uma aposta e este nunca quis pagar. O problema é que Zeca um dia foi cobrar e quase perdeu a vida. O cara era protegido do traficante da região.
 
Desde que Zeca perdeu o emprego de fiscal de garis, só vivia de biscates. Vendia um carro aqui, ganhava uma comissão ali, virava corretor da noite pro dia. Viajava, de vez em quando, no caminhão do seu João do armazém, pra ajudar na estiva. Tirava uns trocados.

Enfim, a vida do Zeca não era mole não. A renda era escassa, e não fosse sua habilidade na sinuca, faltava até o da cervejinha. E assim Zeca foi levando a vida, meio que acreditando que um dia aconteceria a grande sorte. Quando conseguia uns trocados jogava na megasena, e não deixava de dar uma arriscada no jogo-do-bicho. 

E esse dia chegou. 

Depois de muito ser humilhado por todos, quando viu que ganhou o prêmio do jogo-do-bicho, que não era muito, mas dava pra acertar as contas e ainda tentar um negócio, saiu gritando na rua e mandando todos os desafetos àquele lugar. Não teve piedade e pagou até um menino pra defecar no carro do seu Aristides, que há muito o ameaçava de despejo por falta do aluguel do barraco em que morava. Depois da cagada, o Zeca foi lá e pagou, tim-tim por tim-tim, tudo o que devia ao seu Aristides, e saiu, altaneiro, sem que antes alfinetasse em bom carioquês: 

- E aí seu Aristides, maneiro? eu soube que jogaram merda no seu carro! Cuidado com esse povo! Aqui se faz, aqui se paga! Aliás, estou lhe avisando que estou me mudando, viu? 

Zeca era um daqueles bonvivans, que apesar das lamúrias, nunca desistira de ser feliz. Ao ouvir os reclamos da Amélia, que segurava as pontas com a renda de pedicure, ele nunca a contestava, e sempre concordava com tudo que ela dizia. Talvez fosse por isso que ela nunca aceitara os conselhos da mãe. E, apesar de todas as mazelas, compreendia que o Zeca era um bom homem. Só lhes faltava o dinheiro pra serem felizes e sustentar o Pedrinho com dignidade. Mas sempre dizia, com altivez, que se algum dia ganhasse muito dinheiro jamais sairia do morro da Rocinha. Aquilo é que era lugar pra viver. De lá se avistava a melhor paisagem do Rio de Janeiro. De um lado, a maravilhosa paisagem da baía de Copacabana; de outro, a praia e o elegante bairro de São Conrado. Dali, de fato, se avistava o melhor da beleza natural que Deus proporcionou ao Rio de Janeiro. 

Com a grana do jogo-do-bicho, Zeca comprou um barraco que tinha terraço - a tão desejada laje. Não era distante de onde morava. Há muito sonhava com aquela casa. Logo na entrada da varanda, que se chegava à laje, ele pôs uma sinuca e convidava os amigos pra jogar, apostado, é claro, sempre, uma caixa de cerveja. Como todos sabiam que ele ganhava sempre, os amigos já levavam, cada um, a sua cota pro Zeca beber, era o costume. Com o dinheiro da sorte Zeca também comprou um fusquinha azul metálico 73 – o carro estava inteiro, conservadíssimo. Até o banco era de couro, uma raridade. Tirou um dia pro Pedrinho e o levou ao parque que tanto queria. Naquele dia o Zeca não bebeu. A família radiava de tanta felicidade. As coisas estavam em ordem. 

Zeca tinha conseguido montar um negócio: comprar uma pequena confecção e como a sogra era costureira, colocou-a pra tocar o negócio, desde que ela fosse morar no ateliê de costura. A velha se arrumou, arranjou um pretendente e nunca mais falou mal de Zeca. 

Como não se conhece as tramas do destino, parece que a vida é assim mesmo, pensa-se, nunca a felicidade é completa. 

As coisas iam caminhando até que na rua onde moravam apareceram os novos inquilinos da casa do seu Aristides, que há meses não conseguia alugar a casa. Era um casal de catarinenses, descendentes de alemães com italianos, que vinham tentar a vida no Rio de Janeiro. Depois se soube que eles eram fugitivos da justiça, na realidade só ele. O loirão, Luis Hansvögen, havia matado um vizinho que tomara gosto com sua esposa. Ela, Virgínia Hansvögen, um belo exemplar da raça, pele alvíssima, pernas torneadas, rosto vermelho de maçã e olhos azuis que nem o mar, cuja cor se comparava ao que se via lá do alto da laje, no encontro do mar com o céu. Era linda a alemoa. O Luís, embora sofrido pela lida com a agricultura nas parreiras e exposição ao sol forte da zona rural de Rio do Sul, também era um belo rapagão branco. Na verdade, esse casal desentoava nas cores predominantemente negras da comunidade. E todos os olhavam, com certa desconfiança. Pensavam até que fossem de alguma ONG para serviços humanitários. Eram chamados de "os gringos da casa do seu Aristides". 

Não tardou pra que Zeca buscasse aproximação com aquele casal. Encontrando-se com Luís na padaria, chamou-o para que fosse à sua casa jogar uma partida de sinuca. Luís, embora de tradição européia, um tanto quanto fechada, não hesitou em aceitar o convite, pois para ele, em vez de continuar com aqueles olhares desconfiados, melhor seria fizesse logo amizade naquela comunidade. Ademais, não era demais fazer isso, vez que podia alguém desconfiar daquele estranho casal de "gringos", calados e trancafiados em casa, a comentar ou talvez até atrair os olhares da polícia. Desta feita, melhor, portanto, seria aproximarem-se das pessoas e tentar passar despercebido. Afinal, o que perderia aquele casal, um tanto quanto diferente, na intenção de se esconderem na Rocinha, em misturar-se e tentar tornar-se “igual” de alguma forma? Concluíram, assim, que deveriam relacionar-se de forma amigável com as pessoas, e decidiram começar com Zeca e Amélia. 

Aceitando o convite, Luís comunicou a Virgínia que deveriam ir à noite à casa do Zeca e Amélia, os primeiros vizinhos a se apresentarem hospitaleiramente aos recém-chegados. Virgínia, bonita, mas sisuda, não gostou da idéia, pois de certo trazia consigo certo preconceito contra os negros. Não obstante, houve de contentar-se, pois diferentemente, a situação poderia se complicar pro lado deles. 

Por volta das oito horas da noite, ao chegarem à casa dos vizinhos, Luis e Virgínia ficaram no terraço da laje, onde já se encontravam alguns dos parceiros de sinuca e copo do Zeca, que, à socapa, balbuciavam sobre a aparência do casal de branquelos. Amélia que lavava as louças na cozinha num grito pediu que Zeca os recebesse. Pedrinho brincava na sala onde assistia o pica-pau. 

Quando Zeca chega ao terraço para recebê-los, desbancou um sorriso branco, cujos dentes cintilavam pela alegria de trazer aquele casal ao convívio da comunidade. Zeca estava sem camisa, chinelo nos pés e bermudão. Com uma simpatia carioca, já os recebeu com um copo americano de cerveja pra cada um. Luís e Virgínia, cuja descendência não negava, também gostavam visceralmente de cerveja, pois Rio do Sul é cidade vizinha da famosa Blumenau, onde se realiza anualmente a Octoberfest, festa anual da cerveja. Luís, pegando o copo e acenando um movimento de levá-lo à boca, foi interrompido por Zeca que bradou: 

- Vamos todos fazer um brinde aos novos vizinhos! A vocês, "gringos" sejam bem vindos à nossa comunidade. Tenham certeza de que serão felizes como nunca em suas vidas

Zeca estava certo, pois nem imaginava o que iria acontecer a partir daquela noite. 

Nesse encontro, uma química rolou diferente no corpo daqueles dois casais. Luís, quando viu Amélia pela primeira vez, sentiu uma contração tão grande no peito, cujo olhar da emoção em cima daquele escultural corpo mulato não pode controlar, mas tergiversou tossindo uma tosse seca, alegando não estar acostumado com aquela cerveja. Por outro lado, Amélia, que nunca tinha visto olhos claros tão bonitos quanto os de Luís, encantou-se abobadamente com o jeito dele. E olharam-se, olharam-se, sempre disfarçadamente, com sorridos escamoteados. Ao jogar sinuca com Zeca, Luís não conseguia bater o taco na bola sem antes dar uma olhadinha, curvando o corpo sobre a mesa, com muito cuidado, pras pernas torneadas e a bunda avantajada da mulata. Só ela percebia aquele quase assédio. 

A loiraça alemoa, por sua vez, resistiu ao preconceito e também se deixou levar pelos encantos do Zeca Negão, que embora percebesse as investidas dos olhares pedintes de Virgínia, não podia acreditar no que estava acontecendo. Aquela loira desbancava o negão e fez-lhe trêmulo pelos seus lindos olhos azuis. Como bom carioca, Zeca não deixava de prestar-lhe os devidos gracejos, seja no oferecimento de cerveja, aceitas, por vezes, seja convidando-a para jogar uma partida de sinuca, ao que ela sempre, com ar dulcíssimo, recusava. 

Amélia, que dividia seu tempo nos afazeres de anfitriã cortês, no preparo dos tira-gostos, colocando Pedrinho pra dormir e organização do espaço, tratava-os com educação e fino trato, sem descuidar-se, no entanto, de bandear os ares de suas curvas para a aprimorada atenção de Luís. 

E a noite terminava daquela sexta-feira. Já eram quase três horas da manhã, onde os quatro, depois de expulsar os outros bebuns, amigos de Zeca, ficaram, enfim, a sós. Melhor dizendo, sozinhos não ficaram, pois que lhes fizeram companhia as suas fantasias que, embora se entregassem em pequenos gestos, estavam aprisionadas em suas mentes encantadas e desejosas de novas emoções. 

E elas vieram. 

Naquela noite, parecem que todos os diabinhos se libertaram das garras do inferno e escolheram aqueles quatro para deliciarem o feitiço do palco empíreo do deus Baco, que resolvera enamorar-se com Afrodite. Nessa festança, não faltaram como convidados ilustres outros deuses olímpicos: O deus Eolo cuidou que os ventos, em brisas, fossem favoráveis àquela madrugada quente, a acariciar as peles negras, mulatas, vermelhas e brancas, cujos corpos já estavam embebidos pelos vinhos balçâmicos oferecidos pelo dono da festa, Baco. Afrodite cuidara que os olhares entre eles fossem envenenados a esquecer-se de qualquer compromisso e preconceito. Netuno, da sua parte, providenciara que a baía de Copacabana, que podia ser vista da laje da casa, permanecesse linda, serena e convidativa a refletir o luar em suas águas, para convidá-los ao clima romântico que se estabelecera. Naquele meio de madrugada, depois de tantas partidas de sinucas e latinhas vazias de cerveja, como que aproveitando o cenário preparado pelos outros deuses, eis que surge implacável, como sempre, o deus Cupido e suas flechinhas inexoravelmente certeiras. 

Naquela madrugada dos deuses, os pobres humanos casais não lembraram um tiquinho sequer dos problemas e dificuldades porque vinham passando há tempos. Já não era importante o desemprego sofrido por Zeca e Amélia e a humilhação neles despejada há tanto tempo. Para Luís e Virgínia, não importava o desespero e desconforto por que passaram nos últimos tempos, obrigando-os ao intempestivo desterro de seu torrão e vida. O dinheirinho ganhado por Zeca no jogo-do-bicho, que lhe dera alguma dignidade, por certo, também fora uma artimanha da sorte preparada e investida pelos deuses, pois só assim conseguiriam tirá-los da casa do seu Aristides, possibilitando que ela fosse alugada por Luís e Virgínia, aproximando, assim, os casais do palco das marionetes do teatro preparado pelos deuses. A sogra de Zeca obrigou-se a sair de casa do genro e filha e virar gerente da confecção, livrando-os da presença constante, intrometida e inoportuna. A nova casa, comprada por Zeca, com laje de varanda e quarto individual do Pedrinho, ensejou melhor conforto ao cenário criado pelos deuses para aquela festa. O fusquinha, no final, direi pra que serviu. 

O desfecho dessa história, não menos pelo quadro de aparente e possível suruba, mas muito pela insinuação que as entrelinhas impõem, não foi, por conseguinte, tanto simplesmente uma noitada de troca de casais. Foi mais que isso, pois os deuses foram generosos com eles, dando-lhes algo inusitado. 

Zeca, livrando-se das cobranças de Amélia, do filho, da mãe e da sogra, decidiu efetivar o seu intento de mudar de vida, como no início ele se propusera. Ficou para sempre com a alemoa Virgínia, pois entendeu que ela era sua alma gêmea. Seguiu com ela pra Rio do Sul. Casou-se um tempo depois em cerimônia católica e tudo – exigência da família dela. Tornou-se, pouco tempo depois, um próspero proprietário de uma cervejaria caseira alemã, vindo a fazer parte, como presidente, da comissão organizadora da tradicional festa da cerveja, na famosa e bela Blumenau, cidade vizinha à não menos bela Rio do Sul. Eles viveram felizes para sempre. 

Amélia, que era mulher de verdade, levando Pedrinho consigo, ficou com o apaixonado Luís Hansvögen, que venderam a casa na Rocinha e fugiram no fusquinha, no fim de semana seguinte, para Jijoca de Jericoacoara, no interior do Ceará. Lá eles fixaram moradia, ela mostrando-se esculturalmente nas praias da região, ele escondendo-se da polícia, pelo que fizera em Santa Catarina. Venderam o fusquinha 73 e compraram um jipão Toyota, fazendo frete aos turistas pelas dunas até Jericoacoara, em cuja praia eles abriram a famosa “Pizzaria da Mulata Hansvögen”. 

Eles viveram, também, felizes para sempre, cujas posturas, embora aparentemente dúbias, guardaram eterna fidelidade um ao outro, apesar dos constantes assédios dos gaviões, com olhares esguios, em cima da vultosa Amélia. Mas desta vez, Luís estava mais prudente e não queria espantar a freguesia. Preferia, à noite, deliciar-se de um prazer sem igual, naquela exuberante natureza, na companhia e carícias de sua formosa e não menos exuberante Amélia.
Roberto Dourado
Enviado por Roberto Dourado em 25/10/2008
Reeditado em 26/10/2008
Código do texto: T1248265
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