O Cálice!

Tahlud Gimla caminhava pelas planícies de Ahleh-Rainin, sedento pois há muito nada bebia, porém com tão grande ímpeto de chegar à sua casa na cidade de Aimar onde encontraria sua linda esposa Sinara, que nem percebeu a mercadora de água que chorava a beira da estrada. Tahlud voltava de mais uma incursão pelo Deserto de Ishnir onde, mercador que era, vendera várias peças de marpha, um tecido feito com fibras das folhas de marip.

Thalud não era rico. Mas conseguia sustentar Sinara com facilidade uma vez que não eram um casal dado a vícios e perdularismos. Sinara sonhava dar a Thalud um filho. Varão como o pai e que fizesse com que o mercador se orgulhasse de ter uma esposa fiel e fértil.

Na noite em que chegou a casa o Sr. Gimla após encontrar Sinara e beijá-la fervorosamente, dirigiu-se à taberna local para algumas doses de xinti, bebida apreciada por aquelas bandas. Horas depois, voltando para casa, já embriagado foi convidado por alguns aldeões para uma rodada de moba, um tipo de jogo de cartas.

Triste noite em que Thalud Gimla perdeu tudo o que possuía! Seus estoques, sua mula, sua casa e seus pertences. Sinara, ao saber da desgraça acontecida, não utilizou a permissão que a lei Mefi dava a ela de abandonar o marido e voltar a casa paterna. Sinara voltou a casa paterna, sim, mas, levando Tahlud consigo.

O Pai de Sinara aceitou a chegada do casal e aceitou também os serviços de Tahlud, que, como nada tinha, passou a ser um serviçal do sogro. Este homem (o sogro) tinha muitas posses e Tahlud esperava que quando ele morresse, Sinara herdasse toda a fortuna. O que Tahlud não sabia é que seu sogro era um GROUD, um feiticeiro mefi.

Quando o pai de Sinara morreu, seu testamento deixava tudo para o orfanato da cidade. Nada foi deixado para Sinara. Para Tahlud, o velho groud deixou um cálice de ouro, com inscrições em mefi arcaico. Malgrado, ao ler o testamento, uma frase escrita pelo velho sogro chamou a atenção de todos: "A meu genro Tahlud Gimla deixo meu cálice de ouro, que está guardado à cabeceira de meu leito. Deverá possuí-lo apenas se ele tiver a hombridade de chorar dentro do cálice."

A raiva que tomava conta das entranhas de Tahlud era tamanha, que ele não teve a menor dificuldade para chorar. Chorou copiosamente sobre o cálice, a ponto de enchê-lo quase dois centímetros.

Na manhã seguinte, quando deveriam deixar a casa, Sinara foi buscar o cálice, presente derradeiro de seu finado pai. O objeto parecia mais pesado do que na noite anterior. Dentro dele estava uma pepita de ouro, de tamanho semelhante ao volume das lágrimas que seu esposo havia derramado na véspera.

Estava explicado o mistério do grande Groud. Enriquecera através do cálice. Para testar o objeto, Tahlud pensou em quando o exército tarq dizimou sua família na aldeia de Mahala. Chorou e as lágrimas se tornaram ouro.

Em pouco tempo, suas lembranças já não o faziam chorar. Estava tão rico e feliz que era um paradoxo ter de chorar para continuar rico e feliz.

Contudo, a fortuna de Talud não parava de crescer. Os muitos amigos que o cercavam passaram a escassear... Por mais de dois meses o novo rico não saiu de casa... Até aquele tenebroso dia!

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O Exército Mefi encontrou Thalud chorando sobre o cálice. Em suas mãos, uma fétida faca suja de sangue. Ao fundo, o corpo de Sinara jazia em adiantado estado de decomposição. A proeminência no ventre do cadáver indicava que a outrora linda mulher trazia o tão esperado filho do casal. Em volta do aposento, dezenas de milhares de pepitas douradas.

O infeliz Thalud Gimla confessou que, na ânsia por ficar mais triste e assim chorar mais, havia assassinado 6 de seus melhores amigos no último mês, e que, quando nem isso o fazia mais chorar, por medo de perder sua fortuna, atacou sua esposa, sabendo que desse ato decorreria uma eterna tristeza.

Foi condenado a morte por singh (afogamento em esterco e urina de gado). Na véspera da condenação, trancafiado na masmorra de Mahala, aldeia na qual viu sua família ser destruída, Tahlud teve sua última conversação com um outro Groud, amigo de seu falecido sogro. Após contar-lhe todo o ocorrido, ouviu do velho feiticeiro que muitos grouds, mesmo os mais experientes, caíram na maldição do cálice. "Apenas eu e seu falecido sogro descobrimos o segredo de chorar sempre, mesmo estando felizes..."

Tahlud lembrou que seu velho sogro, apesar de muito rico graças ao cálice, sempre fora um bom homem e sempre aparentou muita felicidade.

Thalud inquiriu: - Que segredo é este, bom mestre?

O Groud respondeu: - Você não quer saber... Agora é tarde demais... E além disso, um groud preso não deve ser chamado de mestre!

- Mas, mestre, eu preciso saber...

- Você não quer realmente saber...

- Quero sim... Qual era o segredo cujo desconhecimento desgraçou a minha vida?

- Bom... O segredo é que... para chorar sem estar tristes... nós... CORTÁVAMOS CEBOLAS...

E os dois gargalharam até estarem certos de que aquela derradeira gargalhada era a maior de suas vidas infelizes.

(Baseado em trecho do livro "O Caçador de Pipas",- de Khaled Housseini - esta teria sido a primeira história de Amir.)