VÍRGULA 14 : VELHA MULAMBENTA (COR)

(corrigido)

VELHA MULAMBENTA

DONA AFONSINA SÓ SUJEIRA

VÍRGULA 14

Das Graças corre com um raio, atravessando a rua , adentra a casa de uma vizinha a velha Afonsina. Mulher cuja cara ninguém conhecia, é verdade, tinha duas filhas, mas muito raramente o seu marido era visto por aquelas paragens. As fofoqueiras e maledicensiosas até falavam, juravam pelo símbolo fincado no alto do morro do cruzeiro, que ela era viúva, outras diziam amigada, as mais afoitas afirmavam de pés juntos, descarregando sobre ela toda preconceituosidade da época, largada. Mas ela nem dava bola por tudo que diziam, deixava a sua vida correr frouxo, aguardando o somatório dos dias.

Fala-se a boca miúda, que ninguém mais além da Das Graças freqüentava aquela casa. A não ser, de vez em quando, alguma irmã dela que ia chamá-la nas horas em que dona Das Dores se apoquentava pela ausência da filha, gritando:

-Corre lá Gema, vai na casa da Dona Afonsina e chama a sua irmã.

Desta vez, ao entrar na casa observa-a bem, principalmente um quarto que estava com a porta entreaberta. Ela que arrumava tão bem a sua casa, conseguia destingir as coisa mal feitas dos outros. Olha bem, vê que as roupas estão sujas, as camas por arrumar, o orinó cheio debaixo da cama, vai até a cozinha onde se fazia um café, Vê que o coador de flanela de lã não havia sido lavado, pois era grande a quantidade de borra velha de café dentro dele, chama a Das Graças para irem embora, quando é interpelada pela dona da casa:

-Vem cá menina, toma com a gente um cafezinho.

-Sim aceito, mas bem pouquinho, porque não sou acostumada a fazer nada fora de hora.

- Ora bobinha café não tem hora, deu vontade tomou.

- Dona Afonsina, muito obrigada, mas me responde, a senhora não arruma as camas não?...

- Ah minha filha, já houve tempo que eu arrumava, mas hoje com minha idade...

- Mas Dona, porque as sua filhas não arrumam?...

- Eu acho que é por preguiça, sabe...

- Mas a senhora devia mandar elas arrumarem.

-Sabe duma coisa, é eu que não gosto que arruma, viu, pra que, se logo a noitinha vai tudo desarrumar de novo...

Nisso Gema observa ao lado da estante, em baixo de um surrado quadro de casamento, um oratório com uma garrafa pequena dentro, pergunta-lhe:

- Dona vizinha, o que é que tem dentro daquela garrafa?

- Nada não, mas tinha lá dentro um bichinho de estimação...

As meninas ficaram com a curiosidade super aguçada.

- Uaí, então ele morreu de fome? Perguntou uma delas.

- Não, não, ele passava muito tempo sem comer, só fazia-o quando fugia para o meio do mato, comia fumo, giló e jurubeba. Não gostava de me ver brigando com o Betão, pois ele era um presente que o pai ganhou do avô que havia trazido-o lá das Minas Gerais. Meu marido sumiu alguns dias depois, a minha filha Senhorinha, foi limpar a garrafa, abriu-a sem querer e ele sumiu.

- Ele quem, perguntam.

- O saci-pererê.

-As irmãs com os olhos arregalados, olham uma para outra admiradas.

-É sei... Vamos embora Das Graças, o pai está chamando.

Gema saiu com a Das Graças, pensativa, não entendendo como coisa tão simples como arrumar casa e lavar vasilhas não pudesse ser feitas, ainda mais com aquela estória do Saci, ai é que ela acha que a vizinha estranha é esquisita mesmo, sai perguntando para sua irmã:

- Das Graças, o coador de café estava com borra velha, ela não costuma lava-lo ? Você acreditou na estória dela?

- Não Gema, ela não gosta de lavar nada, nem o coador, nem os pratos e garfos, nem as roupas, nem as calcinhas, nem ela mesma...Agora estória é com ela mesma, a Das Maria só vem aqui para ouvir estórias de velório.

- Nossa, não sei como você tem coragem comer na casa dela?

- Sei lá, não tem importância não. Você que é muito chata.

Nisso, aproximando do alpendre daquela casa, elas ouvem a terceiro assobio do Sr. Onofre, então conhecendo que aquele toque é de pressa, aceleram o passo para atravessarem a rua barrenta, após uma torrencial chuva.

-Como é meninas, não ouviram o assobio?

- Sim pai e já estamos aqui. O que é que o Senhor quer?

- Das Graças, vá lá para dentro , a sua mãe está chamando-a, agora você Gema, leva para mim este embornal e entrega lá na farmácia para o Onofre Tintim, pode ficar um pouco brincando com a Eliana, mas não demore.

- Também posso ir à casa da Tia Ana ?

- Pode, mas escuta bem, não demore.

- Fala para o farmacêutico que o restante dos buziguins eu entrego no sábado, antes dele ir para a fazenda.

Enquanto as meninas brincavam e faziam as incumbências do dia a dia, o dono da casa, após o labor diário em sua pequena sapataria, adentra a cozinha afim de bater em suas mãos uma geléia de mocotó que esfriava no jirau próximo a entrada dos fundos. Batia tanto com as mãos, deixando a iguaria branca e saborosa, demorando um bom tempo nesta tarefa.

Ao dirigir-se para fazer a sua incumbência, levando os sapatos tão bem feitos por seu pai, ia pensando na conversa com a Dona Afonsina:

-"Pera ai, ela falou que o Betão, seu marido tinha sumido e que o saci-pererê também havia sumido? O Betão o que fez foi se morrer, lembro-me bem, a agonia que dava ver aquele homem moribundo, corroendo de dores após ter bebido soda caustica, o veneno lhe comia todo por dentro, levou um tempão para morrer, lembro-me bem, o Dr. Dione o visitava todos os dias. Dona Afonsina após a morte estrana, rezava todo dia, não sei se era de remorso, só sei que de tanto rezar, teve nos seus joelhos o aparecimento de dois calos enormes, um em cada joelho, como reza a coitada...”.

Pensando caminha célere, levantando atrás de si uma tênue nuvem de poeira nas ruas mal cuidadas do antigo Anicuns.

Goiânia, 12 de outubro de 2008.

jurinha caldas
Enviado por jurinha caldas em 14/10/2008
Reeditado em 17/10/2008
Código do texto: T1227288
Copyright © 2008. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.