O ARROZ TEM SAL?
O ARROZ TEM SAL?
De terno kaki, chapelão de feltro, camisa xadrez e botas de atanado, assim podia-se descrever aquele personagem que saído do passado e ainda pouco afeito ao presente se considerava um fazendeiro e boiadeiro; com um cinturão de couro cru ornado com enorme fivela de prata e no pescoço um lenço colorido, era considerado um homem acima de qualquer suspeita e quando passava pelas poucas ruas da vila de São João montado em seu belo cavalo baio, recebia respeitosos cumprimentos de todos os cidadãos.
Seu Odalicio Noronha era casado com dona Laurinda e viviam aparentemente em paz, não tinham filhos biológicos e supriam essa falta criando alguns sobrinhos com muito cuidado e carinho; ninguém tinha qualquer duvida sobre o caráter daquele homem e ele colaborava para esse bom conceito se mantendo fiel aos bons costumes, comparecia acompanhado da família em todos os eventos da igreja católica e exigia um comportamento irrepreensível da esposa e de seus filhos postiços.
E a vida corria modorrenta como sempre naquela vila esquecida no meio do mundo, o lugar era bem bonito com suas ruas de terra sempre bem varridas, floreiras cheias de gerânios nas janelas pintadas de azul colonial, com suas paredes pintadas de branco e seus telhados vermelhos a aparência era de um presépio de ano inteiro; a sonolência e a aparente paz daquele lugar era um total engano, o povo sabia ser violento se a ocasião merecesse, e o austero e respeitado Odalicio teve prova disso.
Aquele homem exigente em questões morais, escondia dentro de si um péssimo costume: adorava um rabo de saia e como dona Laurinda acreditava que os casais que não conseguiam ter filhos deviam se abster de qualquer intimidade, a situação era realmente muito complicada; Odalicio era dono de boas terras bem no alto da Serra do Vintém e alguns colonos moravam lá e o afogueado cidadão se aproveitava de suas prerrogativas de patrão e usava e abusava das mulheres deles, pelo emprego se calavam.
Mas nada como um dia atrás do outro e lá na Serra do Vintém não foi diferente; durante anos e anos aquela situação perdurou, os colonos calados e dona Laurinda se fazendo de morta e como ela morava na vila era fácil fechar os olhos para o que não lhe convinha, mas de repente apareceu um colono novo chamado Zé Queto acompanhado de Maria Januária sua mulher e para piorar as coisas ela era linda e o misto de fazendeiro e boiadeiro se assanhou todo e partiu para o ataque, mas a mulher disse não.
Recusado Odalicio passou a se aproximar da casinha do empregado todas as manhãs e perguntava á moça: me diga belezura o arroz tem sal? ela se calava e continuava a preparar o almoço do marido, os dias passavam e o aprumado cidadão continuava a se interessar pelo tempero das panelas de Maria Januária e a moça cada vez mais assustada contou ao Zé Queto o que estava se passando e no dia seguinte ao perguntar pelo sal do arroz da colona, ele deu de cara com o furioso marido que o atacou com uma vara .
Zé Queto era carreiro e a tal vara tinha uma ponta de ferro chamada ferrão para conduzir os bois do carro e com ela o colono matou sua raiva e quase matou o patrão de pancada, ele batia com o pé da vara e espetava com o ferrão, foi uma surra exemplar e Odalicio só escapou da morte porque outros colonos acudiram atendendo aos gritos da mulher e do espancado, mas ele estava em péssimas condições e foi conduzido para a vila dentro de um bangüê feito com um lençol preso a um pedaço de pau.
Depois de horas descendo a serra chegaram com o ferido e contaram o que havia acontecido, foi um escândalo e toda a comunidade queria ver o moralista estropiado, ele sangrando por todos os lados pedia a dona Laurinda para não deixar o povo entrar, mas ela respondia que era muito bem feito o ocorrido e que o povo da Vila do Vintém tinha o direito de assistir ao degradante espetáculo e de saber que o exigente e honesto cidadão não passava de um cachorro vira-latas sem pudor e sem caráter.
O único farmacêutico da vila se desdobrou para costurar todos os buracos feitos pela vara de ferrão e desinfetar os hematomas do corpo inteiro, assistido pela furiosa esposa ofendida que não perdia um oportunidade de aumentar as dores do ferido; depois de todo aquele vexame e sofrimento ele pensou que o assunto estava encerrado, mas se enganou porque o carreiro Zé Queto procurou as autoridades do lugar e exigiu uma reparação pela ofensa sofrida por ele e pela sua esposa.
Odalicio foi processado na comarca vizinha e só não foi preso porque estava em frangalhos depois da surra, mas passou pela humilhação de sentar no banco dos réus como um criminoso qualquer, o pior foi que para escapar da prisão se submeteu a um acordo arranjado pelos advogados e pagou uma boa quantia em dinheiro e deu cinco alqueires de suas terras lá no alto da serra para o ofendido colono, isso doeu porque ele era um pão duro de marca maior; ele e dona Laurinda se mudaram da vila e Zé Quéto vive em seu bem cuidado sitio, feliz com sua bela Maria Januária.
Maria Aparecida Felicori{Vó Fia}
Texto registrado no EDA