O beijo

Sentada no parapeito de uma janela, olhando o céu ainda negro e pontilhado de estrelas, que o rebentar da manhã coloria com matizes que iam do vermelho fogo ao laranja desmaiado, uma mulher estava a pensar. Não sentia frio, mas seu corpo estremecia ocasionalmente. Mas não era o vento fresco que entrava pela janela, nem sua evidente nudez diante da suave aragem que faziam isso. Era lembrança do momento partilhado a pouco com o homem adormecido na ampla cama, que ficava no lado oposto do quarto onde ela se encontrava.

Com um gesto irritado, correu a mão trêmula pelos longos cabelos, que caiam em desalinho sobre seus ombros. Ela se perguntava, incessantemente... Como deixara aquilo acontecer? Como não pensara nas conseqüências vindouras daquele ato? Por que não seguira seu plano inicial, dizendo a ele que jamais poderia entregar-se a homem algum mais uma vez, pois estava cansada de sofrer? Eram perguntas sem resposta, ela bem sabia, mas não fazia mais parte de sua natureza chorar pelos erros cometidos por um momento irrefletido. Suas lágrimas haviam secado há muito tempo, devido ao medo e o ódio que passara a sentir por outro homem, que destruíra seus sonhos, reduzindo seu coração a escombros e sombras cada vez mais densas.

Com um suspiro, infeliz e irritada consigo mesma, ela fitou o homem adormecido com uma inadequada ternura. Ele era diferente. Diferente do homem que a reduzira a cinzas. Diferente de todos os homens que havia conhecido, mas ao mesmo tempo em que confiava nele, ela o temia. Temia o ser indefeso, desprotegido no encanto de Morfeu, por saber que ele poderia faze-la desejar, mais uma vez, tudo aquilo que decidira abrir mão. Ele a seduzira, sem dúvida alguma, sem sequer ter noção de que o fizera. Afinal, ele jamais a condenara. Havia visto nela uma beleza que ela nem imaginava ainda possuir. Sem jamais dar para ela nem as mais vagas esperanças de um futuro em comum, a fizera dar-se conta de quão simples eram os seus sentimentos. Encontrara nele cumplicidade até mesmo em suas pequenas perversões pessoais, que tanto tempo havia negado a si mesma. Mas isso, ao invés de alegra-la, a enchia de temor.

“Devia ter-me mantido distante” – pensou ela, amarga – “Não se pode chegar tão perto do fogo sem esperar que seu corpo arda em chamas!” – com um novo suspiro, que mesclava tristeza e cansaço, ela fitou a alvorada que se desfraldava, lembrando-a que, em breve, ele despertaria.

Engolindo um soluço, ela deu-se conta de que uma lágrima rolara por sua face, por um caminho que ela julgava ter destruído para sempre. Amarga era a ternura que aquecia seu peito. Ela não podia se dar ao luxo de se apaixonar. Prometera a si mesma nunca mais deixar que alguém penetrasse no recesso mais privado da torre de marfim que havia construído em sua mente. Mas ele transpusera as muralhas que um dia ela julgara impossíveis de serem invadidas com facilidade. Escapara de suas armadilhas, de suas estratégias evasivas e pusera por terra suas defesas. E agora, ali estava ela frágil e nua, exposta ao mundo de um modo insuportável. Sem perceber ele a humanizara. A fizera sentir algo que ela jamais sentira antes. E ela o odiava na mesma medida que o adorava por isso. A amarga certeza de que ele jamais seria realmente seu enchia seu peito, assim de como a noite cederia lugar ao dia. Ele não poderia segui-la em sua jornada, pois não desejava faze-lo... E ela jamais poderia sequer cogitar a possibilidade de abrir mão de seus sonhos, tão arduamente conquistados, para segui-lo aonde quer que ele fosse. Eles eram de mundos diferentes. De esferas diversas. Mas, ainda assim, eram almas gêmeas. E isso enchia seu peito de uma mescla de horror e alegria, em partes iguais. Como poderia ser diferente? Ela se maldizia por não ter percebido isto antes... Agora, era tarde demais.

De repente, um breve suspiro atraiu a atenção dela, arrancando-a daqueles pensamentos sombrios. Olhando em direção a cama, deparou-se com os olhos daquele homem que tanto a perturbava, em diversos níveis, fitando-a em descarada atitude de adoração. Ele a amava, ela bem sabia, de uma maneira impossível de ser entendida. Não era por causa de suas qualidades... Nem devido a sua beleza, na qual ela não mais acreditava. Ele a queria inteira e sem reservas pelo simples fato dela existir. Algo tão simples de ver, mas tão complicado de entender.

Com um sorriso preguiçoso em seu rosto, ele levantou-se e foi até ela. Seus passos leves ecoavam no chão assoalhado. Cada movimento dele era espontâneo e lânguido, quase que uma poesia sem palavras ou som. Ela estremeceu mais uma vez e uma nova lágrima rolou por sua face, o que fez com que o sorriso dele se desvanecesse.

Pela primeira vez, desde que a vira, lia o medo e a incerteza em seu olhar, no lugar de compreensão e alegria. Ela era um pássaro ferido, agora percebia. Ganhar sua confiança seria muito mais complicado que envolve-la em uma teia de emoções e sensações ditadas pela carne. Mas não era algo impossível, mesmo pra ele, que não primava pelo romantismo. Terra a terra, simples e sincero, era o que era, sem meias palavras. Algo sussurrava em seus ouvidos, enchendo-o de uma coragem e uma certeza que jamais sentira antes. Ele não deveria temer o que sentia. Devia demonstra-lo, da forma que sabia. Bastava apenas ser ele mesmo, sem máscaras ou disfarces, e deixa-la voar quando e para onde bem entendesse. Se o fizesse, ela voltaria a seus braços, cedo ou tarde, como uma ave retornava para o ninho, ciente de que ali estaria segura. Mas um único erro de aproximação, uma única palavra descuidada, o erguer demasiado rápido de uma mão de modo que lembrasse vagamente alguma forma de violência... Qualquer atitude que a remetesse, nem que fosse por um breve instante ao seu passado de humilhação, a faria alçar vôo e escapar por entre seus dedos, e ele a perderia para sempre. Ela desapareceria no mundo, sem pensar duas vezes, deixando-o na sombra e na saudade, nos dias solitários de um futuro agreste que poderiam vir se a deixasse escapar.

Sem saber o que fazer exatamente, ele simplesmente deixou a carne guiar a mente e estendeu a mão, devagar, roçando com leveza a ponta de seus dedos no rosto que agora conhecia tão bem. Ela não era mais sonho, nem miragem, nem palavras soltas em linhas mal traçadas na calada da noite. Não era uma fotografia a ser estudada, nem uma simples voz que um dia ronronara em seus ouvidos, sem malícia. Ela era real. Carne, sangue e pele, que ele beijara e acariciara, com uma fome reverente por horas a fio. Seu pássaro ferido, que ele gostaria de ver novamente são, voando livre nos céus, cantando uma doce melodia que pertenceria apenas a ele, mesmo que ela negasse tal fato.

Nas pontas dos dedos dele, a lágrima se diluiu em um breve sorriso, mas ela ainda tremia. Medo e ternura. Afeição e necessidade de fuga. E algo que ele não entendia muito bem, pois nunca soubera exatamente como interpretar. Seria amor o que ele via por trás de tamanho medo, naqueles olhos adoráveis, que tinham um quê de ouro? Embora não percebesse, ele também tremia. Em sua vida, tão acomodada e tranqüila, jamais tivera que lidar com os sentimentos que aquela mulher a sua frente despertavam. Inconstante e mutável, ela também o seduzira sem desejar faze-lo. Sempre igual, mas nunca a mesma, ela o confundia, o instigava, o fazia desejar estar em sua companhia, mesmo que a razão gritasse não ou a realidade lhe dissesse que aquele sentimento era impossível. Mas, mesmo apavorado em dar aquele salto no escuro, ele se aproximou, substituindo o toque suave de seus dedos por um terno beijo, colhendo assim cada lágrima salgada que vertia dos olhos dela em seus lábios quentes.

Um suspiro escapou dos lábios rubros da mulher, um misto de alívio e temor, tudo junto ao mesmo tempo, quando ele se aproximou mais e mais de sua boca. Ele era a força irresistível. Ela, o objeto irremovível. Sua união, desde o primeiro momento que suas peles haviam se encostado, seria capaz de incendiar os céus. Embora negasse com veemência, ela tinha uma certeza inabalável de que seu passado havia destroçado sua alma em minúsculos fragmentos, espalhando-a por galáxias sem fim. Ele desejava arrancar tal dor dela, de maneira irreversível, libertando-a de tamanho fardo, mas percebia que o coração daquela mulher tão especial era como um campo minado. Um único erro, por mais inocente que lhe parecesse, um passo em falso ou uma palavra mal colocada seriam suficientes para que a maior de todas as armadilhas fosse detonada. E se isso acontecesse, toda a luta, todo esforço em galgar as muralhas de marfim e escapar dos obstáculos mortais que ela criara pra proteger-se... Toda a jornada que o levara até ela, que o conduzira até aquele momento... Tudo seria em vão.

Mas ele decidiu que era o momento de arriscar. De colocar as cartas na mesa, de esquecer blefes e jogos, de depor as máscaras. Afinal, ela não estava ali, vulnerável e nua a sua frente? Tão indefesa que ele poderia parti-la ao meio com um simples sopro... Justo ela, em quem ele vira uma fortaleza eterna, mostrava-se mais delicada que o cristal mais fino que o ser humano já moldara. Aquela mulher era uma contradição e, ao mesmo tempo, a criatura mais fascinante que ele já havia visto desde que percebera o movimento suave da caminhada do sol no firmamento. Ela era noite, ele o dia. Iguais, mas diferentes. Mas não pólos opostos, como muitos poderiam imaginar. Eles se complementavam em suas semelhanças e diferenças. Eram homem e mulher. Sol e Lua. Mar manso e Oceano revolto. Vento brando e Tempestade de proporções cataclísmicas. Diferentes, mas, ainda assim, iguais. Fugia totalmente de sua compreensão como aquela verdade equivocada se tornara uma certeza absoluta, mas ele sabia. Sentia em seu ser, em sua alma, em cada centímetro de sua pele, em seu coração que batia acelerado em seu peito. A simples idéia de perde-la o enchia de profunda agonia, ao ponto que um ser humano normal não agüentaria. Preferia perder uma perna ou um braço, morrer ali mesmo, se fosse possível, a perde-la por toda eternidade. E com resolução, decidiu ser sincero em suas palavras vindouras e ações, ciente de que aquela seria sua única chance de transformar sedução momentânea em conquista permanente. Afinal, sem uma entrega sincera, de corpo e alma, tudo não passaria de um jogo. E ele estava cansado de jogos, de manter as aparências para um mundo que não o compreendia... Era chegada a hora de amadurecer, de se arriscar a viver algo que os poetas cantavam em prosa e verso há séculos e séculos. Era hora de amar, sem reservas e demonstrar o que sentia, sem temer ser rejeitado ou se esconder sob uma capa de indiferença porque assim ditavam os usos e costumes de uma sociedade decadente.

Quando seus lábios se tocaram, em um mudo diálogo, cheio de dúvidas e indagações inquietantes, ela estremeceu, mais uma vez. Ele oferecia libertação... E, por um único momento, ela desfrutou disso. O nós se tornou eu. O sentimento a sufocava, pois a necessidade era avassaladora. E ela saltou rumo ao abismo negro do futuro, sem temer quão alta poderia ser a queda, esquecendo-se de tudo que não fosse o ali, o agora, o momento que vivenciava plenamente. Lábios se uniam como um lacre, em um impulso inexplicável. Os corpos de ambos estremeceram, novamente ardendo em um fogo que não queimava, mas não deixaria jamais de ser abrasador. Em um frenesi irresistível, pele colou-se a pele. As mãos dele, sobre o corpo dela, as mãos dela sobre o corpo dele. Ele incendiava, ela ardia. Tudo parecia girar quando seus mundos colidiram em um átimo, num momento suspenso no tempo, em um simples beijo. Era isso, ela bem sabia. O que enchia seu peito, naquele momento mágico, não era uma ilusão, mas algo que ela apenas tivera, um dia, um rápido vislumbre, nas páginas de um livro de poesias. E pelo tremor que percorria o corpo viril que se colava ao seu, ela soube que não era a única a sentir-se assim. Ele também se afogava naquelas sensações embriagadoras sem sequer tentar resistir a correnteza que o arrastava para o fundo. Não era paixão, pois tal emoção passageira não aquecia a alma com aquela doçura sem fim. Apesar de arder, tal chama era suave, confortante, convidando-os a permanecer ali, em pé, apenas a beijarem-se. Apenas a usufruírem o prazer de estarem nos braços um do outro, respirando serenamente, enquanto o sol invadia o recinto e banhava seus corpos com seus raios luminosos, como que abençoando aquela descoberta que os surpreendia. Algo tão simples, mas que os seres humanos complicavam tanto ao confundirem a necessidade da carne com a necessidade do espírito. E a sedução tornou-se enfim conquista, quando os lábios enfim se separaram e os olhares se encontraram, transmitindo sem palavras o que os dominava naquele momento. Amor.

Uma palavra tão simples, um sentimento tão belo, que jamais poderá ser descrito em sua plenitude nem que os todos poetas escrevessem até que seus dedos sangrassem sobre o papel. Nem uma música, nem um poema, nem livro escrito ou frase imaginada por ser algum poderia descrever a beleza da descoberta que eles haviam feito. Embora não pudessem ver, eles sabiam que no infinito alguém sorria e os abençoara com tal presente, com tamanho milagre. Um amor verdadeiro, que muitos procuram a vida inteira, mas poucos encontram sem querer, como com eles acontecera. O bem mais precioso. O sonho mais alucinante. Estava li, diante deles, em carne, sangue e alma. O sentimento se desnudara diante dos dois, com a pureza da água e a beleza indefinível de uma oração, que há muito fora feita com fé, mas pensavam que jamais teria sido ouvida. Mas, em algum lugar do infinito, Ele sorria satisfeito por ver que os tortuosos caminhos que traçara para aquelas duas almas se encontrarem haviam levado os dois a um momento único e inesquecível. Afinal, Ele havia criado o homem e a mulher para se amarem, para serem um só, não apenas em um fugaz momento, onde a carne encontrava a carne, mas quando suas almas vibravam juntas, na mesma intensidade, na mesma prece silenciosa feita de uma fé inquestionável, que os humanos, em sua tola mania de nomear algo que não conseguem entender, chamam simplesmente de amor...

O princípio...

Zannah
Enviado por Zannah em 10/10/2008
Reeditado em 10/10/2008
Código do texto: T1221937
Copyright © 2008. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.