A Montanha e a Clausura

Eram irmãos: Lucas e João. Quando a mãe escolheu os nomes dos santos evangelistas para dar aos gêmeos, certamente não imaginava o quanto fora coerente. Afinal, Lucas foi aquele que escreveu para os gentios. Já João, escreveu o Evangelho mais espiritual dentre os todos.

Em infantes, os gêmeos vestiam-se da mesma forma, brincavam com os mesmos brinquedos e choravam as mesmas dores. Os temperamentos já se mostravam diversos: se Lucas era valente e destemido, João era sério e introspectivo. Não que Lucas não fosse sério ou que João não fosse valente, mas assim eram os dois.

Na adolescência, estudaram juntos, e namoraram muito. Eram belos e inteligentes. Figuras encantadoras que apenas com o olhar seduziam as meninas da escola, as vizinhas e mesmo as colegas da Igreja. Como é natural entre gêmeos idênticos, não raro um se fez passar pelo outro para experimentar beijos e carícias das meninas ou para escapar de problemas na escola.

Ao contrário da maioria de seus colegas, aos 16 anos ambos sabiam que futuro buscariam. João, o sério, queria fazer-se sacerdote. Desde que recebera o sacramento da confirmação a vocação apresentara-se a ele de maneira irrevogável. Conversou com seu pároco, o Pe. Jurandir que, conhecendo a índole e o caráter do rapaz, e acreditando em sua vocação, redigiu-lhe uma carta de apresentação para que levasse ao seminário de sua cidade.

Lucas, o aventureiro, à mesma época descobrira uma grande paixão: O alpinismo! Uniu-se a um grupo de jovens do bairro que costumava caminhar por trilhas em bosques, e neste grupo conheceu Nestor, que seria seu grande amigo de aventuras. Nestor, havia anos, começara a escalar os morros da cidade e possuía algum traquejo com o equipamento básico de alpinismo. Estas instruções e o amor pelos perigos da montanha foram transmitidos a Lucas, que revelou-se um excelente aprendiz. Em pouco tempo os amigos escalavam paredões, montanhas e mesmo os pequenos picos que existiam naquele estado. Lucas buscava patrocínio com alguns empresários da região para financiar suas viagens e escaladas, mas, nem sempre o dinheiro era suficiente. Com 18 anos, ele começou a trabalhar como auxiliar de carpinteiro. Trabalhava até juntar dinheiro para a próxima expedição. Quando voltava, sempre havia alguém que ainda precisasse de seus serviços.

Aos 20 anos João formou-se em filosofia no Seminário Maior de sua diocese e passou a debruçar-se sobre a sagrada Teologia. Cada dia no seminário abrasava seu coração missionário e ele sentia-se gratificado por isso. Era respeitado entre os colegas e admirado pelos professores. Suas notas eram as melhores e muitos dos colegas o buscavam para aconselhamento sobre vocação, já que a de João parecia firme como uma rocha, e, dizia ele, esta rocha era o Cristo.

O primeiro dia do mês de Janeiro do ano 2000 foi marcante para toda a família. Os gêmeos completavam 24 anos, João recebeu as Sagradas Ordens do Diaconato e Lucas fez sua primeira grande escalada em alta montanha.

A cerimônia de ordenação foi de uma beleza sem igual. A liturgia foi dignamente celebrada, os cantos mais belos foram entoados por um coral extremamente bem ensaiado. O momento da imposição das mãos por D. Alfredo emocionou a todos os presentes. Neste dia João sentiu o chamado para uma vida ainda mais austera e pediu ao bispo autorização para ingressar na Ordem de São Bento, cujos votos de castidade, obediência, pobreza e estabilidade sempre encantaram o jovem religioso.

No seu aniversário de 24 anos, Lucas concluiu a escalada do ponto mais alto da América do Sul, chegando no início da tarde ao cume do monte Aconcágua, na Argentina. Na descida da montanha, Lucas desenhou o projeto de escalar os pontos mais altos de cada um continentes, culminando com a escalada do monte Everest, o ponto mais alto da terra. Foi ao Alasca escalar o monte McKinley, à Tanzânia para subir o Kilimanjaro, depois o Elbrus, na Russia, a Pirâmide Carstensz, na Nova Guiné e o Maciço Vinson, na Antartida. Tudo estava pronto, na próxima temporada de monções ele escalaria o Everest.

Em maio de 2001 João foi ordenado sacerdote e, mantendo seu nome de batismo, mas homenageando seu irmão alpinista, passou a chamar-se D. João Lucas, OSB. Era um confessor fervoroso e um pregador inflamado, culto e inteligente. Lucas não soube da homenagem... Estava no acampamento base do Monte Everest.

A subida de Lucas não foi fácil. O mau tempo atrapalhou muito, mas, com diligência, o gêmeo aventureiro avançou a cada acampamento, fazendo a necessária aclimatação à altitude, buscando não sofrer com a pressão atmosférica. Na manhã de 10 de maio de 2001, enquanto D. João Lucas, OSB celebrava sua primeira missa, do outro lado do mundo seu irmão avançava rumo ao cume do Everest.

Naquele mesmo dia, ao meio dia no Nepal e às duas e meia da manhã no Brasil, o telefone celular vibrou na cela de D. João Lucas. Ele não poderia ter aquele aparelho em seus aposentos, mas, mesmo sendo muito “caxias”, sabia que o Todo Poderoso não se importaria que ele atendesse a um pedido tão importante de seu irmão. Durante a missa que celebrara e durante todo o dia, não parara de rezar um momento sequer pelo êxito da expedição de Lucas, e, antes de ir embora a mãe disse, enquanto entregava o aparelho móvel:

- João, Lucas não pode falar com você agora, mas ele pediu que você ficasse com este telefone. Ele vai ligar quando estiver no cume da montanha.

Era o que acontecia naquele momento. Se o telefone tocava, seu irmão estava vivo e bem!

Ele esperou um pouco e em seguida atendeu o telefone:

- Mano – Disse uma voz ofegante, como que sem fôlego, do outro lado da linha. Do outro lado do mundo! – Mano, eu consegui. Estou com um pé no Tibete e o outro no Nepal.

- Graças a Deus, Mano. Eu orei por você todo o tempo. Hoje também é uma vitória minha!

- Eu sei! Agora você é o Padre João.

- Não, agora sou D. João Lucas, da Ordem de São Bento.

- João Lucas, não acredito!

- Acredite sim. Agora desça daí e volte em segurança.

- Mano! Não desliga, eu quero falar uma coisa...

- Fala rapaz.

- Mano, agora eu sei. Ele existe! Tudo o que estou olhando agora – Uma pausa sem ar – Tudo isso... Alguém tem de ter feito tudo isto.

- Eu sei Lucas... Eu sei que ele existe...

A ligação caiu, mas, o monge que nunca saiu de sua cidade e o explorador que conquistou os picos mais altos de cada continente estavam tão conectados naquele momento quanto quando ainda estavam no ventre materno.

E o que os unia era muito mais do que um aparelho telefônico GPS via satélite...