Os olhos...
Marco Antonio voltava uma vez mais para casa... “Boca da noite” como se dizia no interior... Assim os sertanejos identificavam a hora entre o fim do dia e o começo da noite...
No ônibus olhava todos aqueles rostos dominados pela expressão de cansaço... Homens e mulheres sem distinção, unidos pelo cansaço e pela pobreza... Outra característica de todos eram os olhos... Sem brilho, sem alma... Bóias-frias...
Sacolejando imerso na estrada poeirenta o ônibus chegou até a vila...
- “Té” manhã, Antonho...
- “Té” manhã, Seo Diolino...
O barraco de Marco Antonio é perto e logo vê que está iluminado pelo lampião a querosene... Olha nos olhos de das Dores e constata... Sem brilho... O filho caçula chora sem roupa num cercadinho imitação de berço forrado com papelão. Os outros devem estar pra chegar depois de mais um dia catando lixo no Aterro...
Do fogão à lenha sobe uma fumaça, a única a ter cheiro de alguma coisa. Dentro do caldeirão um caldo onde bóiam uns pedaços de mandioca com feijão numa água turva e sem sal...
- Antonho, eu “vô” mais a Cida do Zé do Prego na Capela “reza” com o Pregador. “Ocê” se banhe e dê janta “prus” menino. Eu num vô cume, come tu que “trabaiô” nesse calor e deve de ta “cuma” fome de cão...
Marco Antonio sabia que ela não iria comer porque a comida não dava para todos e o bebê ganharia um prato de mingau da mulher que atendia a Capela e talvez até um resto da janta dela...
- “das Dor”, eu só “vô dexa ocê í pruquê” a “cumida” aqui ta rala, mas vê se “isquece” Deus... Ele num olha pra “nóis”, num sabe que “nóis” existe... Num demore... Se “incontrá” o Tico e o Durval diga que venham num pisco...
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Domingo, dia feito para o rico ter desculpa para fazer o bem, isso se não tiver que descansar...
Marco Antonio sentado no banco tosco vê das Dores voltando com Cida da reza... Ao lado delas caminha vergado sob o peso de um embrulho, um mulato forte, apoiado numa bengala, vestindo um terno que lhe deve ter sido dado, pois é um manequim maior e está surrado um bocado... Usa também óculos de lentes grossas e escuras...
- “Dia Seo Moço!”
- Antonho, esse é o Seo Joel, o Pregador. Ele “qué falá” com tu...”
- Seo Antonio, eu vim lhe cadastrar num projeto privado de distribuição de cestas básicas. Essa aqui é a primeira. Todo mês vem uma se os meninos, seus filhos, tiverem presença na escola.
- Num acredito! Assim sem nada de troca?
- É... Só preciso dos documentos do senhor e das crianças...
- “Vô” apanha, mas nunca “sube” que alguém sem barganha “óie” por “nóis” nesse fim de mundo...
O Pregador sorri, limpa o suor da testa com um lenço amarrotado e pega os documentos das mãos de Marco Antonio... Após anotar tudo lentamente numa ficha, se senta ao lado de Marco Antonio...
- Sabe Seo Antonio, eu era como o senhor... Não acreditava nos homens... Nem em Deus... Eu já fui muito mais miserável que o senhor... Não sei quem foram meus pais, minha cama sempre foi o chão e o teto não me lembro dele... Comi muito tempo na vida da bondade de uns poucos... Tudo nessa vida pra mim foi mais difícil e sabe por quê? Porque eu achava como o senhor que nem Deus olhava por mim, mas o senhor me viu chegando, caminhando com a ajuda de uma bengala, escrevi o nome do senhor e de seus filhos e só consigo isso porque Deus olha por mim...
E tirando os óculos diante de um Marco Antonio espantado diz:
- Eu sou só um pobre cego por quem Deus olha...