A queda do Império
“ A realidade caiu sobre nós fúnebre, embora esta significasse o inicio do período mais belo das nossas vidas”
Estava um dia triste, invulgarmente triste, matizado pelas nuvens negras que teimavam em não abandonar toda aquela enorme e majestosa paisagem.
Perdido num canto, meio debruçado sobre uma cadeira e segurando uma taça de vinho semi-vazia, estava um homem com aspecto desolado, roupas de fino corte mas demasiado desalinhadas em si e nos seus antepassados.
Esse homem era o Imperador, o dono daquele que tinha sido o mais explenderoso dos impérios humanos.
Sentia os efeitos duma incomoda embriagues, o peso no cérebro que o impossibilitava de pensar, mas também o peso dos olhares desiludidos dos seus antepassados, mortos há demasiado tempo, homens e mulheres notáveis, artífices de proezas sem igual, mas agora perfeitamente inúteis por estarem mortos.
O imperador passou os olhos e o espírito tristes sobre o mar e a vasta paisagem que a localização do soberbo mas decadente palácio lhe permitia ter. Passeou mentalmente por cada recanto desses domínios que em breve deixariam de ser seus.
Por um breve instante apeteceu-lhe filosofar sobre a precariedade da vida, sobre a mutabilidade desta, o que não deixava de ser irónico a um homem que comandara um império que era suposto pertencer à eternidade.
Ironia sádica: um homem considerado desde o berço como um semideus podia hipoteticamente acabar como prisioneiro, cuja simples presença agrilhoado colocaria o seu captor a um nível anteriormente seu pela invulgar proeza de capturar e humilhar um Deus! Afinal o senhor do maior dos impérios sonhados era tão humano como os outros...
O império caíra...! Francamente, ele não sabia o que o perturbava mais: se ser obrigado a assistir ao desbaratar da herança dos seus antepassados, ou ser incapaz de o acrescentar, de contribuir para a sua glória, e de assim se ter transformado no mais incapaz de todos os imperadores.
Procurou a decadência elegante na bebida de maneira a poder suportar a dôr sem tamanho que o consumia, mas esta deu-lhe apenas vontade de vomitar e a lucidez intensa que o fim chegara.
Num dos quartos a mulher adormecia para sempre os filhos, de maneira a abreviar a vergonha do cativeiro, e preservar a honra que lhes restava. Em breve os seguiria, só estando à espera do marido. Este, num supremo ataque de ilusão mantinha-se vivo, pois julgava que enquanto respirasse a honra do império eterno se manteria. Estava, ou queria estar claramente louco, mas perante certo tipo de evidências, nem a loucura serve de fuga.
Olhou mais uma vez para o resto das ilusões, acabou a bebida e foi juntar-se à mulher que soluçava no quarto ao lado dos cadáveres dos imperadores que nunca o chegariam a ser.
O olhar do General era de puro desespero, genuína frustração perante uma situação que sabia irresolúvel. Por muitas vezes fora atacado em plena batalha por um desespero semelhante, mas saíra sempre dele, pois confiara a resolução das suas angústias à sua cabeça e aos braços dos homens que comandava e que concretizavam as tácticas que a arte da guerra fizera nascer do seu cérebro.
Mas naquele momento...É claro que as ideias e soluções para a crise apareceriam como sempre, faltando contudo homens e sobejando adversários para que a vitória sorrisse mais uma vez ao Império.
À sua frente contudo estava um exército, cheio de vontade e determinação de seguir as suas ordens e gestos, mas apenas um exército de andrajosos, com armas gastas herdadas aos pais e avós que o tinham servido em tempos, seres demasiado jovens, velhos ou de estropiados retirados à pressa de asilos ou hospitais de campanha, um exército de sombras...
Um... quando já comandara tantos que até havia alturas que quase perdida a conta...
A vista triste passou pelo sargento à sua frente, único camarada sobrevivente de inúmeras batalhas, e seu melhor camarada e amigo. Sorriu-lhe com amargura; depois, olhando com paixão perdida o horizonte e os inimigos invisíveis que o enchiam, colocou o capacete, preparou a arma, deu lustro às inúmeras condecorações, e preparou-se para a sua última e mais gloriosa batalha.
Os seus olhos estavam de tal forma a transbordar da água das emoções que mal o deixavam ver o terrível espectáculo onde se tinham incinerado os seus últimos sonhos, esperanças e ilusões. A apenas algumas dezenas de metros um belo edifício ardia, no meio de tantos outros, destinados à ruína desde que a ordem que os criara ruíra.
Mas aquele não era um edifício qualquer, nem ele era um homem comum-Aquele era o local onde se albergava a maior parte do conhecimento de incontáveis anos, e ele era um filósofo, o mais notável e também último dum império que tinha gerado milhares como ele.
Ao ver as cinzas que tinham resultado da exumação do notável conhecimento, lamentou as suas capacidades físicas que o tinham impossibilitado de ler todos os manuscritos, livros ou meras notas, as reter e mais tarde as reproduzir, pondo-os depois em bom recato, à espera que alguém deles merecedores os descobrisse e divulgasse par todo o sempre.
Mas porque raio é que são sempre os guerreiros a entrar nas cidades em primeiro lugar e não os homens do conhecimento?
Os lutadores são os senhores supremos dos prazeres imediatos, aves de rapina, predadores sem igual, que mal se esgotem as mulheres e o álcool, e também o combustível dos inúmeros incêndios com que gostam de comemorar a sua glória efémera, voltam à estrada, a caminho de mais pilhagens, ao passo que os homens do conhecimento não procuram apagar o adversário, mas sim aproveitar-se do conhecimento dos derrotados, preservando-o, adorando-o, procurando mantê-lo vivo, porque mais do que inimigos, eles são irmãos da mesma religião, do saber, e irmãos não se matam.
Sabendo tudo perdido, perdera também os motivos para si próprio, restando-lhe apenas uma alternativa: reunir-se ao objecto da sua paixão e com ele formar um só corpo etéreo.
Os passos hesitantes e incertos denunciavam imperceptivelmente o drama do seu proprietário.
Este vagueava à dias sem fim pelo outrora infindável território imperial, acompanhando a retirada dos exércitos, agoniando com cada passo recuado, cada milímetro de terra deixada para trás, perdida aos novos senhores, recuando inevitavelmente para aquela que restava.
Fizera-se como pessoa e como artista na imensidão do império; as suas ninfas tinham sido os feitos e conquistas dessa ordem agora a pouco tempo do pleno ocaso. Vira nela a sua paladina, a sua luz suprema que alimentava uma imaginação inquieta e que só a presença dum guia que a orientasse a fazia acalmar.
Amava-a dementemente, e como todos os amantes recusara-se a ver sinais de morte no seu amor, recusara-se a sentir o mal, a acreditar num fim. E até esse fim, ela deveria permanecer bela, imaculadamente bela, apesar da velhice e declínio perceptíveis a praticamente todos, menos a ela, ou se quiserem aos realistas. Mas ele não era um realista, era um poeta...
Mas agora, perante a evidência desse fim dado pelos seus passos, sentia a viagem como a morte evitada, cada pedaço de paisagem deixada para trás era como uma paragem do coração do seu amor, e também do seu, percurso que também lhe esgotava a sua outrora formosa voz, bem como a venerável imaginação, esgotava a sua razão, o seu ser.
Sabia pois que iria caminhar até ao fim, até ao último segundo de terra, esgotando-se quando ela se esgotasse.
O homem do campo olhou com quase indiferença os campos em revoltosa, cultivados por si mas nunca seus.
Olhou para eles e para os estandartes com novas cores que neles desfilavam, reparando que, quanto mais intenso era o vento mais orgulhosas ficavam as bandeiras, e melhor ardiam os campos reparou que tanto o orgulho como a destruição se alimentavam do mesmo vento.
Reparou e anteviu tempos de fome se avizinhavam, tempos difíceis iriam lavras a terra até aos senhores da guerra se acalmarem e perceberem que a dor nos campos lhes iria negar parte da riqueza que os levara até ali.
Mas a fome não era algo de novo para si, no tempo que agora estava a acabar, consoante os caprichos dos cobradores de impostos, ou a mania das grandezas (quase tão sazonais como as colheitas) do imperador. Por muito generosa que fosse a terra, as colheitas pecavam sempre por escassas, e por muito que doessem os estômagos famintos dos agricultores, o eco destes nunca chegavam ao centro das decisões, ao centro do Império.
Um dia, curioso, decidiu ir visitar uma das grandes cidades de que todos falavam. Lá tudo era demasiado belo, demasiado grandioso para ser verdade; viu coisas que nunca pensara existir, edifícios que pareciam riscar o céu, gentes de todos os cantos do mundo, e prazeres demasiado distantes da sua bolsa, apesar de sentir que eram as suas terras a possibilitar tanto fascínio.
Demasiado absurdo para ser verdade: um dos obreiros daquele paraíso estava demasiado longe dele para o desfrutar.
Chegou inclusivamente a ver o Imperador e a sua família, que teria confundido com Deuses (de tal forma lhe pareceram supremos!) se a multidão à sua volta não os tivesse aclamado aos berros, transbordantes de alegria pelo privilégio único do grande senhor os privilegiar com uma visão de si.
Depois, achando que aquele mundo não era seu, voltou para o conforto incerto (mas muito seu) das terras, onde a simplicidade dos campos e a calma destes lhe devolviam a condição de pessoa e de ser da natureza que julgava perdido nas grandes cidades do império.
Passaram-se alguns anos, os tempos pioraram, a fome aumentou, e a voracidade das aves de rapina também. Perdeu os filhos pela incapacidade de os alimentar, mantendo apenas a sua companheira, que envelhecia docemente e que também lhe parecia cada vez mais bela, apesar das provações, até que os viajantes das estradas lhe disseram que o império estava a morrer, perante a sua quase total indiferença. Até que finalmente vieram exércitos com cores diferentes, altura em que ele soube de facto estar tudo a terminar.
Apesar da sua indiferença, ele sentiu pena pelo fim, sentiu pena pela morte de um império, que apesar de quase só lhe ter dado dor, era o seu, tal como tinha sido dos seus antepassados. Sentiu pesar, apesar dos novos tempos significarem que finalmente ele seria e morreria livre.
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