O Cerro das Almas Perdidas

Há muitos anos atrás, numa pequena vila que o tempo esqueceu, perdida entre as coxilhas verdejantes do Rio Grande do Sul, aconteceu um fato que mudou o destino de toda uma família.

Contam os mais velhos, entre um mate e outro, quando o sol começa a declinar no horizonte, a bizarra história de uma bela mulher que ousou permanecer no cemitério da localidade vizinha, após o pôr-do-sol, coisa que nem o coveiro fazia, nem por todo dinheiro do mundo. O lugar tinha uma fama tão nefasta que todos na região o chamavam de Cerro das Almas Perdidas.

Entre mates e cigarros de palha, os idosos contam e recontam a história de Maria Isabel, filha mais moça de um viúvo, Antônio dos Anjos. Ele era um pequeno agricultor muito estimado na pequena localidade, que até hoje pranteava a morte de sua esposa, benzedeira e parteira, que trouxera ao mundo muitos habitantes dali.

Maria Isabel moça diferente, diziam todos. Não era propriamente bonita, mas tivera sua cota de admiradores, encantados com sua doçura, alegria e bondade. Uma moça prendada, que cantava na igreja – e cuja voz, diziam todos, lembrava o cantar de um anjo – e provinha de uma família humilde, mas de reputação irretocável, onde a palavra dada valia mais que um documento assinado. Bastava perguntar a qualquer um da região. Não havia ninguém mais honesto e leal que o velho Antônio dos Anjos e suas filhas.

A mais velha, também Maria, como a mãe e a irmã, casou-se bem, com um doutor da capital. Então, não foi surpresa, quando Carlos Eduardo, filho de um rico recém chegado, proprietário de terras da vila vizinha, caiu de amores por Maria Isabel. Por meses, ele adejou a volta dela como uma borboleta atrás de uma flor, cumulando-a de mimos, versos e juras de amor eterno. Mas o estranho é que, mesmo com toda pequena comunidade aprovando o moço, o velho Antônio não confiava nele, resmungando, toda vez que o via a fitar sua filha, com ar de enlevo:

- Não gosto desse guri – e quando lhe perguntavam o motivo, ele simplesmente dizia – Não gosto de gente que chega se arreganhando feito uma gaita velha, sem olhar nos olhos da pessoa com quem tá falando. – e cuspindo, acrescentava – Gente direita não faz isso. Não faz não.

Mas, com o tempo – e talvez, devido à insistência do pretendente – o pai da moça passou a atura-lo. Afinal, Carlos Eduardo não era de todo mau. Tinha uma conversa agradável, vinha de uma boa família e estudava na capital, além de ter dinheiro suficiente para dar a moça qualquer coisa que ela desejasse. Não que Maria Isabel fosse ambiciosa. Ela gostava de ler, cavalgar e cantar. Era modesta, mas gostava de pequenos luxos, como toda pessoa normal. E ela afeiçoara-se sinceramente ao rapaz. Portanto, mesmo a contra gosto, o velho Antônio deu a sua benção e os dois noivaram, ficando acertado que a data do casamento seria marcada assim que os estudos do moço fossem concluídos.

Quase quatro anos se passaram. E a cada primavera, as velhotas da cidade crocitavam pelos cantos, a procura de um deslize de um dos noivos. Mas, para desgosto delas, tudo era perfeito entre Maria Isabel e Carlos Eduardo. Pareciam almas gêmeas. Gostavam de livros, música, animais e sempre tinham o que conversar – sob o olhar atento da irmã do velho Antônio, famosa por seu decoro e comportamento impecável. Dona Lourdes vigiava a sobrinha com olhos de ave de rapina, sempre atenta, para evitar que acontecesse qualquer coisa que pudesse por sua protegida na boca do povo.

Enfim, no verão que marcava o início do quinto ano de noivado, a data do casamento foi marcada. E é neste ponto da história, que ninguém sabe o que é real e o que é fantasia. Só sabem que, em uma tarde quente, o carteiro levou uma missiva endereçada a Maria Isabel... E que, naquele mesmo dia, a moça – que já não era tão moça – adentrou a vila a cavalo, estranhamente perturbada e correu para igreja, pra falar com o padre. O que ela falou a ele, em segredo de confissão, não se sabe, mas deve ter sido algo bem escandaloso, pois o homem bradou tão alto que quem passava a porta do prédio ouviu:

- Não, não e não, minha filha! Não importa que tu destes a tua palavra! Não podes te casar com esse... Esse... Esse maldito! Não aqui! Não na minha igreja! Se ele aparecer aqui, esse desgraçado, eu o excomungo pessoalmente!

O resto da conversa, sussurrado, foi abafado pela pesada porta da sacristia. Após um quarto de hora, a curiosidade estava já mordendo os ouvidos de Carlota, a fofoqueira mor da vila, que se preparava para escutar atrás da porta. Sem pudores ou dor na consciência, ela já havia tirado um copo da bolsa e se preparava pra violar o segredo de confissão, quando a porta se abriu e ela deu de cara com o padre. Balançando a cabeça, entre o irritado e conformado, ele disse a mexeriqueira, impassível:

- Reze cem vezes a Ave Maria, cinqüenta vezes o Pai Nosso e, mais cinqüenta, o Credo, Dona Carlota. – a mulher, branca feito um papel, assentiu com a cabeça, pegou o rosário e correu para um banco, enquanto o padre, bondosamente, dirigia-se a Maria Isabel, que tinha os olhos vermelhos e inchados de tanto chorar – Vá pra casa, minha filha... Ainda hoje irei conversar com o teu pai, para que ele te livre deste compromisso sem macular o bom nome de vocês.

Mais tranqüila, Maria Isabel se foi, saindo da igreja e pegando o cavalo, para então, em um trote ligeiro, ir pra casa. Em seu bolso, amassada e manchada de lágrimas, estava a mal fadada carta que mostrara ao padre. Carta essa que destruíra seus sonhos de amor.

Na semana seguinte, a notícia se espalhou pela região como fogo em rastilho de pólvora. Maria Isabel, que nesta altura já tinha ficado pra titia, pelos padrões da sociedade, havia rompido o noivado, desmarcado o casamento e não queria ver o ex-noivo nem banhado a ouro. Para complicar ainda mais a opereta, o padre, muito amigo do velho Antônio dos Anjos, havia ido falar com os pais do moço, pra explicar o porque do fim do compromisso e devolver os presentes que a moça havia recebido do filho deles.

Dizem as más línguas que Dona Vera Lúcia, mãe de Carlos Eduardo, mandou que os peões corressem o padre à bala, enquanto berrava, furiosa:

- Quem aquela moleca sem eira nem beira pensa que é? Isso não vai ficar assim, ouviu? Eu amaldiçôo aquela mestiça nojenta! Ouviu bem, padre? Eu amaldiçôo aquela mestiça suja! Ela nunca mais vai ter paz na vida dela! Ouviu bem? Nunca!

Coincidência ou não, na mesma noite, a pobre Maria Isabel começou a ter terríveis pesadelos. Logo, a pobre criatura definhou a olhos vistos. Não sorria, não cantava, não comia, nem sequer dormia. Desesperado, o velho Antônio mandou um telegrama para filha que morava capital, pedindo que ela viesse o mais rápido possível. E depois, cansado e preocupado, foi ter com o padre e pediu que ele fosse ver sua menina. Talvez ele tivesse sucesso onde ele e Dona Lourdes haviam falhado, conseguindo que a moça comesse alguma coisa, ao menos.

Semanas depois, a pequena comunidade se pôs em polvorosa. Em roupas elegantes, com ar fagueiro em seu decidido semblante, voltava a vila Maria Rosa, com marido e filha tiracolo, em resposta ao telegrama aflito do pai. Mesmo cansada da longa viagem, ela foi ver a irmã, que de tão fraca, nem levantava mais da cama. Alarmada com o estado dela, Maria Rosa disse, em um tom resoluto que ninguém discutiu:

- Maria Isabel, você vai parar de bobagens e vai comer, ouviu bem? Vim de muito longe para cuidar de você e, por isso, trate de melhorar!

Um tanto por boa vontade e amor a irmã mais velha, outro tanto porque Maria Rosa a fazia comer nem que fosse a força, Maria Isabel voltou a se alimentar, mas dormir... Ah, dormir. Nem tomando remédios ou rezando uma novena ela conseguia fazer isso. Mal fechava os olhos, via-se morta, andando sem rumo em meio a uma vastidão quente e fétida que só podia ser o inferno. Noite após noite, ela acordava gritando, desesperada, para então se por a murmurar, abatida, tal qual uma louca:

- Eu não agüento mais... Deus, por favor, tenha piedade! Deixe-me morrer... Deixe-me morrer para que eu tenha paz...

Com o passar dos dias, conversando com o padre, o pai, a tia e seu marido, Maria Rosa chegava a conclusão que, se Maria Isabel não melhorasse, ela teria que ser internada em um manicômio. Estavam acabrunhados, sentados ao pé da lareira acesa, quando ouviram uma batida tímida na porta. Desconfiados, se entreolharam, se perguntando sem palavras quem poderia ser àquela hora da noite. Antes que alguém se levantasse, uma nova batida, agora forte, foi ouvida. Fazendo o sinal da cruz, Dona Lourdes levantou e foi atender a porta. Mal a abriu, um relâmpago cortou os céus, iluminando o rosto envelhecido de uma mulher, que tinha longos e desgrenhados cabelos brancos:

- É aqui que mora Maria Isabel dos Anjos?

O trovão que se seguiu ao relâmpago foi como um tapa na cara de Dona Lourdes, que de tão assustada com a figura sinistra, nem gritou. Em um fio de voz, ela perguntou:

- Quem quer saber?

- Alguém que sofreu e ainda sofre como ela – gemeu a mulher, infeliz – Alguém que pode salva-la do meu terrível destino.

Ao ouvir isso, o velho Antônio levantou-se e convidou a mulher para entrar. A pobre criatura, coberta por roupas sujas e esfarrapadas, adentrou a casa em passos lentos e pesados, como se tivesse mais de cem anos e carregasse o peso do mundo nas suas costas. Penalizado com o aspecto roto da mulher, Dona Lourdes lhe ofereceu um pouco de caldo quente, depois de acomoda-la junto ao fogo, para se aquecer e secar suas roupas. Ao ver o rosto dela mais corado, Maria Rosa perguntou:

- Quem é você e porque quer ajudar minha irmã?

Com uma expressão que era só desespero e infelicidade, a mulher estendeu as mãos próximas ao fogo, antes de esfrega-las, suspirar e falar, em voz cansada:

- Ah... A razão de minha vinda... – o sorriso dela lembrava uma careta de dor – Eu vim tentar salvar a alma dela... E, com sorte, a minha também.

- O que você quer dizer com isso, mulher? – resmungou o velho Antônio, enquanto enrolava um cigarro de palha com os dedos calejados pelo trabalho de sol a sol.

- A menina foi amaldiçoada, assim como eu, por uma criatura vil, uma meretriz das trevas. – ao ouvir isso, o padre se benzeu, enfaticamente e disse, irritado:

- Não fale bobagens, mulher. – ele remexeu-se na cadeira – Maria Isabel é batizada, crismada e comunga todos os domingos, sem falta. Isso...

- É a pura verdade. – disse a mulher, olhando para as próprias mãos – Assim como eu, Maria Isabel foi amaldiçoada por uma bruxa sem coração. Tentei avisa-la do que estava por vir, pra que ela fugisse daqui, para que fosse para longe e sumisse no mundo, antes que fosse mais uma vítima daquela... – sem se conter, o padre se levantou, muito pálido:

- Foi você que escreveu a carta?

- Que carta? – perguntaram os demais, ao mesmo tempo. Encurralado, o padre pôs a mão no bolso, retirando dele um papel sujo e amarfanhado, que estendeu a Maria Rosa. Mal leu as primeiras linhas, após desamassar um pouco a folha, ela levou a mão aos lábios, trêmula, de olhos arregalados.

- O que diz nesta carta é verdade?- perguntou Maria Rosa, angustiada – Dona Vera Lúcia é mesmo uma... – a mulher olhou-a, pelo rabo de olho, tremendo feito vara verde.

- Não sei se é ou se foi, mas a definição de bruxa é pouco para ela. – a mulher bebeu um gole do caldo quente, sem realmente sentir seu sabor – Só sei que, pelas minhas contas, ela tem mais de trezentos anos.

- Isso é impossível! – disse o marido de Maria Rosa, incrédulo.

- Eu sei, mas é verdade. – murmurou a mulher - Mas ainda nem contei o pior a vocês... – ela respirou fundo, juntou coragem e prosseguiu – Vocês conhecem as lendas dos índios sobre o que acontece àqueles que perturbam a ordem das coisas?

- Conheço todas elas. – falou o velho Antônio, entre tragadas - Sempre dizem que as pessoas devem ser boas... Ou vão ter que pagar um preço muito alto, quando o mundo chegar ao fim. - ele deu de ombros - Você acredita nisso?

- Hoje, eu acredito... – disse a mulher – Mas acho que dona Vera Lúcia, não. Acredito nem sonha quando dorme. – ela estremeceu, mais uma vez - Se acreditasse nas lendas, talvez tivesse percebido o que ela, o marido e o filho são... – todos se inclinaram na direção da mulher, pois sua voz era um sussurro quase inaudível – Eles são demônios. – e enfatizando aquelas palavras, um relâmpago cortou os céus, ao mesmo tempo em que uma rajada de vento escancarou a porta, com violência, apagando o fogo da lareira.

Apavorada, a mulher fez menção em erguer-se, mas o velho Antônio não deixou, assim como Maria Rosa. Se benzendo, Dona Lourdes foi até a porta e a fechou, enquanto o marido de Maria Rosa acendia a lareira novamente. Com muita calma e jeito, eles acalmaram sua estranha visitante, que ficara um bom tempo encolhida, rezando e arrancando os cabelos:

- Oh, meu Deus... Perdoe esta ovelha desgarrada! – ela soluçou – Estarei tão perdida que não posso ser salva? Estou tão perdida...?

- Acalme-se, minha filha! – disse o padre, confortando-a – Deus nunca abandona seus filhos, mesmo nas horas mais negras. – ele apoiou a mão no ombro dela – Agora, conte-nos o que sabe...

Longos minutos se passaram. Minutos de silêncio e incerteza, até que a mulher encontrasse em seu ser um resquício de coragem e começasse a falar, em voz muito baixa e trêmula, com o pavor estampado em seu rosto enrugado:

- Eu me chamo Clara. Morava em uma vila no norte do estado, e, há trinta anos atrás, na minha mocidade, eu fui noiva de um jovem chamado Carlos Eduardo. – Dona Lourdes, irritada, interrompeu-a.

- Isso é... – o velho Antônio calou-a com um gesto.

- Deixe que ela conte a história, Lourdes. – a contra gosto, Dona Lourdes calou-se e Clara pode prosseguir:

- Apaixonei-me perdidamente... E contra vontade de meu pai, fugi com ele pra me casar. Mas, mal sabia eu, o que me aguardava. – ela soluçou – Na primeira noite, após o casamento, eu me vi em meio uma orgia, presidida por minha sogra. Ela ria, desvairada, enquanto sacrificava galinhas e bodes e se lambuzava com sangue... E meu marido... Ah, o meu maldito marido... Ele fornicava com qualquer coisa que se movesse, fosse homem, mulher ou animal. O sodomita, o libertino, convidou-me pra me juntar a eles, mas eu fugi e tranquei-me no quarto. No dia seguinte, Dona Vera Lúcia, veio conversar comigo. – ela secou as lágrimas que caiam em cascata por seu rosto – Ela disse que queria me explicar o que eu havia presenciado e, para me acalmar, trouxe um chá. Mal tomei o primeiro gole, eu quase cuspi, pois tinha um gosto esquisito, mas estava tão apavorada que bebi. Esse foi mais um de meus erros... Acreditar que ela não me faria mal algum. Não sei o que aconteceu depois, pois perdi os sentidos. Quando acordei, estava caída no chão do quarto... E quando levantei e me olhei no espelho, meus cabelos estavam todos brancos e meu rosto, envelhecido. – Clara soluçou, mais uma vez – Sentados perto dali, a maldita bruxa, seu marido e seu filho estavam rindo, mais jovens que antes, planejando o que fariam em seguida. Ao ouvi-la dizendo que eles deveriam me degolar, para pegarem meu sangue, saí correndo. Corri tão rápido quanto pude, sentindo como se todos os cães do inferno me caçassem, e fui para uma igreja, mas eles me seguiram. – ela chorava copiosamente – Eles estão tão condenados que zombam da casa de Deus, dizendo que enquanto eu punha a minha fé em pedra e madeira, o senhor deles lhes concedia juventude eterna em troca de uma alma ou duas a cada trinta anos. – ela enxugou as lágrimas e prosseguiu – Eles estavam a dois passos de mim quando os sinos da igreja começaram a tocar, chamando os fiéis para missa. Eles hesitaram por um segundo, mas ao ouvirem os passos do gentio chegando, se foram. – ela limpou o nariz na manga esfarrapada - Até hoje não sei porque eles me deixaram partir, mas desde aquela noite maldita, eu nunca mais tive paz. Não consigo dormir direito, não consigo viver... E sei que não posso morrer, pois trago em meu peito a amarga certeza de que vou arder no inferno.

- Não acredito nisso. – disse Maria Rosa, irritada – Você não passa de uma mendiga louca e mentirosa.

- Calma, minha filha. – falou o velho Antônio, antes de voltar-se para Clara, desconfiado – Porque você veio até aqui, mulher? Essa história é pura fantasia...

- Não é, não! – ganiu Clara, caindo de joelhos aos pés do velho Antônio – É a mais pura verdade, senhor! Quero arder no inferno, sem chance alguma de redenção se estiver mentindo! – penalizado, o padre ajudou-a a levantar e perguntou:

- Qual seu objetivo vindo até aqui, minha filha?

- Eu sei como findar a maldição... Mas não posso chegar ao lugar onde isto deve ser feito. – ela soluçou, muito alto – Minha alma já foi maculada pelos pecados daqueles três, por isso, não posso sequer me aproximar do lugar que os ancora neste mundo...

- E o que podemos fazer? – perguntou o velho Antônio.

- Vocês não podem fazer nada. – disse Maria Isabel, surpreendendo a todos. Ninguém havia notado sua presença ali. Mesmo muito magra e com um ar frágil, seus olhos ardiam, cheios de esperança e coragem – Eu aceitei esta corte maldita... Portanto, sou eu que devo salvar-me das chamas do inferno... Sozinha.

O sol iria se por em menos de uma hora, quando enfim eles chegaram ao portão de um cemitério. Maria Isabel tremia devido ao vento frio que vinha de lá, mesmo trajando roupas pesadas. Esfregando as mãos, ela desceu da carroça com o auxílio do pai, enquanto o padre ajudava a velha Clara a descer. Maria Rosa ficara em casa, com o marido, a filha e Dona Lourdes, rezando uma novena para que tivessem sucesso na empreitada.

Em passos lentos, eles se aproximaram dos portões de ferro batido, carcomidos pelo tempo e pela ferrugem, sendo observados pelo coveiro, que trazia uma pá em seu ombro e tinha um quê de loucura em seu olhar.

- É lá no fundo, creio eu. – falou Clara, apavorada – Na parte antiga do cemitério. Eu nunca consegui ir além deste portão, por mais que tentasse.

- O que devo procurar? – perguntou Maria Isabel.

- O túmulo da família deles. É lá que está o que você procura. – mal Maria Isabel deu o primeiro passo, seu pai a segurou:

- Deixe-me ir com você. – pediu o velho Antônio, com os olhos rasos d’água – Não quero perde-la, filha... – com um sorriso meigo, Maria Isabel beijou a fronte do pai e disse:

- Você nunca irá me perder, meu pai...Acredite em mim. – mais uma vez, ela fez menção em se afastar, mas o velho Antônio tornou a impedi-la.

- Leve isto com você. – disse ele, entregando a ela um rosário muito antigo e um velho sabre – Este rosário era da sua bisavó... E o sabre, de seu avô. Se insiste nesta loucura de ir sozinha, ao menos leve-os consigo. – sem ter como negar aquele pedido, ela guardou os dois objetos consigo. Novamente, ela preparou-se para ir, quando o padre a impediu:

- Tem certeza de que não quer que eu vá com você, menina? – Maria Isabel sorriu tristemente e falou:

- Não tenho certeza de nada, padre, mas sei que devo ir sozinha.

Diante daquelas palavras, o padre se conformou e tirou um pequeno frasco com óleo do bolso. Rezando um Pai Nosso em latim, ele abençoou-a, antes de lhe entregar um frasco grande, fechado com uma rolha.

- É água benta. – falou o padre – Espero que tenha alguma utilidade para você.

- Sei que terá. – disse Maria Isabel, antes de respirar fundo e pegar o saco que seu pai lhe estendeu, junto com um ramalhete de flores brancas – Rezem por mim. – e sem olhar para trás, ela entrou no cemitério, caminhando a passos largos, sentindo seu coração rufando em seu peito como um tambor enlouquecido.

- Ei! – berrou o coveiro, ao ver Maria Isabel indo a direção à parte antiga do cemitério – Volta aqui, Dona! É perigoso ir nesse lugar há essa hora! – ele olhou para o velho Antônio e para o padre – Vocês vão ficar aí, só olhando? Essa mulher maluca vai morrer se não voltar antes que o sol se ponha! O coisa ruim mora lá fundo! – ao ouvir isso, o velho Antônio tentou ir atrás da filha, mas foi impedido pelo padre e por Clara.

- Não, Antônio! O fardo é dela! A decisão foi dela! – falou o padre, mal contendo Antônio, que se debatia, desesperado – Tenha um pouco de fé em sua filha, homem! Tenha fé de que Deus protegerá sua alma imortal!

- Que Deus fique com a alma, pouco me importa! – gemeu Antônio – Eu quero a minha menina viva!

- Então, deixe-a quebrar a maldição – implorou Clara – antes que eles venham atrás dela e a condenem a uma morte em vida, como me condenaram!

E diante daquelas palavras, Antônio caiu de joelhos, chorando e rezando. Com um suspiro, o padre ajoelhou-se ao lado dele e pôs-se a orar, com todo o fervor de seu coração, silenciosamente, enquanto Clara, pálida como se fosse esculpida em um osso descorado, olhava para o céu, acompanhando a marcha do sol. Se ela rezava ou não, ninguém poderia dizer. Mas era certa uma coisa. Ela estava à espera de um sinal. Para o bem ou para o mal.

O sol começava a desaparecer no horizonte quando Maria Isabel parou um pouco, não apenas pra recuperar o fôlego, mas para depositar as flores num túmulo qualquer e pegar um pequeno lampião que estava no saco. Depois de enche-lo com querosene que estava em uma garrafa, ela o acendeu e ajeitou a luva de vidro que protegia a chama, antes de prosseguir. A luz avermelhada do lampião era como um farol na escuridão que a envolvia rapidamente.

Conforme avançava pela parte antiga do cemitério, Maria Isabel sentia que o calor de seu corpo, pouco a pouco, era roubado. O frio cortante do vento chegava até seus ossos, dolorosamente, mas ela continuou em frente. Viera longe demais para desistir no primeiro obstáculo.

O tempo passava, lentamente, e logo os ruídos da noite que nascia chegaram aos ouvidos dela. O piar das corujas. O lamento do vento. O guinchar dos morcegos deixando as suas furnas. Os passinhos rápidos das pequenas criaturas da noite. Tudo a sobressaltava, assim como as sombras que o lampião criava. Ela já beirava o desespero quando viu algo que lhe chamou a atenção. Um túmulo enorme, negro e roído pelo tempo.

Em passos cautelosos, Maria Isabel se aproximou e leu o que estava ali entalhado, com alguma dificuldade, antes de recuar, apavorada. Ali, em letras desmerecidas, estavam os nomes dos falecidos. Os nomes de seus ex-sogros e de seu ex-noivo. Um grito se formava em sua garganta, quando uma voz zombeteira chegou ao ouvidos dela, deixando-a estática, de tanto pavor:

- Sabe, menina, eu cheguei a pensar que você tinha algum juízo – a figura de dona Vera Lúcia, toda vestida de preto, com seus lábios finos pintados de escarlate, surgiu do nada, ao lado dela – mas, como sempre, meu querido filho sabe como escolher uma idiota a ser sacrificada. – e sem aviso, Maria Isabel sentiu que alguma coisa, saída das entranhas da terra, agarrava seus tornozelos, impedindo-a de fugir dali – O que tem a dizer, mestiça suja? – sem pensar muito, Maria Isabel jogou o lampião no rosto de Vera Lúcia com todas as suas forças. A luva que protegia a chama partiu-se e a querosene escorreu por suas roupas, pegando fogo quase que imediatamente, enquanto a jovem gritava:

- Volte pra onde veio, desgraçada!

Pega de surpresa, Vera Lúcia uivou, antes de rolar no chão, como uma imensa tocha flamejante, enquanto Maria Isabel pegava a primeira coisa que lhe vinha à mão... O frasco de água benta, que o padre lhe dera. Jogando o conteúdo sobre os próprios tornozelos, ela sentiu-os aquecer antes que a soltassem, o que permitiu que ela corresse, cemitério afora, segurando o saco em uma mão e o vidro com o resto de água benta na outra.

Mal Maria Isabel se afastara, correndo, um homem de cabelos louros e frios olhos azuis, com as roupas sujas de terra, ajudava Vera Lúcia a se erguer, após extinguir as chamas alimentadas pelo querosene. Praguejando alto, ela se dirigiu a ele:

- Pegue aquela cadela mestiça, Carlos Eduardo! - ela levou a mão ao rosto queimado – Antes do sol nascer, nós beberemos o sangue dessa desgraçada e dançaremos sobre o seu cadáver! – próximo dali, o marido de Vera Lúcia, gemeu, enquanto fitava as bolhas que se formavam em sua pele, onde a água benta tocara:

- Deixe-a ir, Vera Lúcia! A garota já está amaldiçoada a vagar sem descanso, assim como nós! Deixe-a ir! – em resposta a isso, Vera Lúcia se aproximou e esbofeteou-o:

- Não! Desta vez, deixarei que a sua inconveniente piedade me prive da juventude eterna, José! Desta vez, eu beberei o sangue da jovem que escolhi como sacrifício!

Não muito longe dali, sob o testemunho da lua pálida, encolhida entre dois túmulos, Maria Isabel arquejava e rezava Um vento súbito arrepia-a por inteiro. O mal se arrasta nas sombras, a procura de uma vítima, sem saber que ela está prestes a alterar seus planos.

Apesar do silêncio, a adrenalina despertava os reflexos. Ao ouvir passos se aproximando, a lógica ficou para depois. Naquele momento, só o instinto a comandava. Lutar ou fugir eram suas únicas opções... E Maria Isabel fugiu, tentando ordenar seus pensamentos. O vento noturno sibilava na relva. Em sua mente, ela ouvia tambores distantes, antes de perceber que era seu próprio coração, batendo disparado em seu peito. De repente, em uma curva do cemitério, ela se viu encurralada.

Imóveis, pai e filho a contemplavam. O primeiro, com um ar infeliz em seu rosto descorado. O segundo, com uma expressão que mesclava desdém e deboche. Apavorada, Maria Isabel tentou retroceder, mas viu a expressão glacial e feroz de Vera Lúcia, aproximando-se. O olhar da bruxa, carregado de ira e maldade, fulminou-a e ela estremeceu sob o olhar dela. Por um instante, tudo parece ficar suspenso no tempo... Até que, sem aviso, ela viu seu ex-sogro segurar Carlos Eduardo, antes de gritar:

- CORRA! - aos trambolhões, da melhor maneira que podia, Maria Isabel saiu dali, sentindo os tambores rufarem em sua mente, cada vez mais alto, enquanto mãe e filho, após derrotarem o traidor, se moviam com a graça das sombras, sem pressa. Maria Isabel, porém, corria. Corria e rezava, com toda fé que havia em seu coração, pedindo um sinal, uma luz que a salvasse. Sua respiração era penosa. Seu coração, disparado. A perseguição parecia eterna e os perseguidores estavam sempre a um passo dela. Ele nem olhava para trás, até o momento que tropeçou e caiu no chão.

Quando se ergueu, tonta, Maria Isabel fitou os dois vultos parados a sua frente, os rostos semi-ocultos pelas sombras. Imóveis. Silenciosos. E silêncio era pior que qualquer outro som naquele instante. De repente, ambos começaram a rir. Julgaram-na derrotada. Enganaram-se redondamente.

Em meio a sua louca disparada, Maria Isabel tivera uma idéia. Em um dos momentos em que parara para recuperar o fôlego, despejara o resto da água benta na lâmina do sabre e no rosário, que pôs em seu pescoço. Carlos Eduardo foi agarra-la, ela atacou-o com a lâmina que purificara. Um borrifo de sangue preto e fétido escapou pelo ferimento lavando o rosto da jovem, que saiu correndo, mais uma vez, com o sabre em uma das mãos e saco na outra, agora em direção ao túmulo.

Quando o sangue negro tocou seus olhos, desfraldaram-se lembranças que não lhe pertenciam. Lembranças de uma vida de pura crueldade. Selvageria e perversão sem remorso. Amor pela brutalidade. O forte aterrorizando o fraco. Por prazer. Incontáveis vozes perguntando em uníssono: “Por que?” Maria Isabel não tinha uma resposta, mas sabia que o fim de tudo se encontrava no velho túmulo.

Lá chegando, ela deparou-se com o velho José, que tinha o pescoço quebrado, em um ângulo bizarro, sentado diante do túmulo.

- Imploro por seu perdão... – disse ele, em voz soturna - Do fundo do pouco que resta da minha alma. – ele abriu a camisa rota e murmurou – Eu fui fraco... Mas sei que, se ainda houver uma chance de redenção para mim, só ajudando você a se salvar, eu serei salvo... – ele apontou para o peito – Você só poderá derrotar Vera Lúcia se enfraquece-la... E para enfraquece-la, eu peço... Dê-me paz. – aproximando-se deles, rapidamente, Vera Lúcia gritou:

- Afaste-se dele, sua cadela! – berrou Vera Lúcia – Vou te mandar pro inferno! – Maria Isabel sorriu com tristeza, e, com toda coragem, apunhalou o homem no coração.

- Veremos! - e no segundo seguinte, Vera Lúcia e Carlos Eduardo gritaram, sentindo-se enfraquecer. Apavorado com o que poderia acontecer, o rapaz gemeu:

- Maria Isabel, por favor... – ele se arrastou na direção dela – Eu não queria que nada de mal acontecesse a você... Eu te amo. Foi ela que me obrigou a fazer o que fiz... – disse ele, apontando para mãe, cujo rosto queimado estava ainda mais distorcido, pela dor e pelo ódio.

- Mentiroso! – rosnou Vera Lúcia - Foi sua escolha! Você queria a juventude eterna, e agora me acusa de coagi-lo? – ela cuspiu no rosto dele – Covarde! – ela se aproximou de Maria Isabel, ameaçadora – Você pode ter nos enfraquecido, sua cadelinha, mas não pode nos vencer... Não sozinha!

- Não estou sozinha! – disse Maria Isabel, pegando um pacote com sal que havia no saco e fazendo com ele um círculo a sua volta – Eu nunca estou sozinha!

- Ah! A sua ridícula fé em Deus! – debochou Vera Lúcia, sem se impressionar – Se ele existe mesmo, porque você está aqui, sozinha, enfrentando o que não compreende, ao invés de ter diversos anjos protegendo-a, menina insolente?

- Eles estão aqui – falou Maria Isabel, serena – Você não os vê porque não pode, pois sua alma é podre... – sem pensar duas vezes, ela tirou o rosário de seu pescoço e lançou-o no ar, convicta de que ele alcançaria seu alvo. Milagrosamente, ele atingiu o lugar certo... O pescoço de Vera Lúcia, que sentiu seu corpo, subitamente paralisado, arder, antes de começar a queimar – Era da minha bisavó... A mulher com mais fé que conheci em minha vida... E ela me amava... E o meu Deus é amor... E contra ele, você nada pode!?!

Vera Lúcia tentou escarnecer da convicção de Maria Isabel, mas o uivo de dor que escapou de sua garganta a traiu. Um tipo desconhecido de horror invadiu sua mente. Com os sentidos aguçados, ela ouvia cada grito de um passado distante, gritos de mulheres inocentes que ela mandara matar. Almas perdidas, que clamavam desesperadas por salvação. Ensurdecedores tambores que explodiam na escuridão. A dor era tanta que ela sentia como se garras dilacerassem cada tecido de seu corpo. Como se presas chegassem a seus tendões, embora nada ou ninguém ou tocasse.

- Chega! – urrou Carlos Eduardo, enquanto saltava sobre Maria Isabel. – Por mais estranho que pareça, eu vou sentir saudades suas! – no instante seguinte, as palavras dele sumiram em meio a um grito de surpresa. Inexplicavelmente, ele havia errado o pulo e caíra sobre as grades de ferro pontiagudas, próximas a ela, contorcendo-se. Cada movimento dele enterrava ainda mais o ferro em seu peito – Não... Não pode ser... Eu não posso morrer.

- Você já morreu – murmurou Maria Isabel, infeliz – A muitos e muitos anos... Só não aceitou isso. – e com um movimento, ela enterrou o sabre nas costas dele, perfurando seu coração e encerrando, assim, sua existência maléfica – Mas eu estaria mentindo se dissesse que vou sentir saudades, depois de saber o que você realmente era...

- Sua cadela! – urrou Vera Lúcia – Mestiça desgraçada!

- Cale-se! – disse Maria Isabel, trêmula -Você agora tem consciência do horror que fez parte... Arrependa-se. Essa é a sua chance de fazer o que é certo. – Vera Lúcia cuspiu, quase acertando o rosto dela.

- Prefiro queimar no inferno! – antes que ela dissesse mais alguma coisa, Maria Isabel apunhalou o coração dela com o sabre, enquanto murmurava:

- Que assim seja!

Mal o corpo de Vera Lúcia tombou, inerte, sobre o chão frio do cemitério, Maria Isabel caiu de joelhos, em um pranto exausto, que mesclava alívio e cansaço. Os gritos em sua mente haviam silenciado. O vento cessou. E em silêncio ela rezou, até a aurora chegar. E quando o sol desfez as mortalhas terrenas que seus três inimigos haviam usado para deslocar-se pela terra, espalhando dor e horror, ela sentiu que poderia prosseguir sua vida sem medo.

Pouco se sabe o que aconteceu depois daquela noite. Os idosos da vila contavam apenas que Maria Isabel se fora, junto com toda a família, para capital, para morar perto de Maria Rosa e longe daquele lugar. O padre, dizem eles, não mente nem desmente a história, mas evita passar perto do cemitério onde se desenrolou tal batalha. A chácara de Antônio dos Anjos foi arrendada para uma mulher idosa e desconfiada, chamada Clara, que ia a missa todo santo dia, fizesse chuva ou sol, sem se importar com frio ou calor.

Ah, e antes que me esqueça, a casa onde Dona Vera Lúcia e sua família moravam foi consumida por um inexplicável incêndio, na mesma noite. Nunca acharam corpo algum. Se bem que, se a história do cemitério for verdadeira, não teriam nada pra encontrar mesmo. Mas, mesmo assim, até o hoje o coveiro do cemitério conhecido como Cerro das Almas Perdidas se recusa a perambular por ele após o pôr-do-sol. Sua justificativa? Ele tem fé em uma força maior, mas não tanta que o torne apto a enfrentar o que ainda pode se esconder naquele lugar abandonado...

Fim

Zannah
Enviado por Zannah em 04/10/2008
Código do texto: T1211436
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