TREZE ANOS MAIS NOVO
Brasília, 29/09/2008 – Cem anos da morte do maior escritor brasileiro, Joaquim Maria Machado de Assis.
NOTA: Um conto baseado em “MISSA DO GALO”, obra do mestre Machado de Assis, publicado em 1893.
Nunca pude entender a conversação e o momento que tive com uma senhora, de nome Conceição, contava eu dezenove, ela trinta e dois. Foi numa noite de Natal. Eu tinha combinado com um amigo que iríamos à missa do galo na Catedral de Brasília, na esplanada dos ministérios. Lugar que eu conhecia apenas de fotografias. Como que a esperar, combinei com ele que quando fosse à hora ligaria para o seu celular.
Eu estava hospedado no apartamento de um Deputado Federal, que era amigo do meu primo, que dele era cabo eleitoral. A esposa do deputado, a dona Conceição, a que me referira, e sua mãe, dona Inácia, acolheram-me bem, desde quando cheguei do Pará, há duas semanas, para prestar o concurso público. A minha estada era tranqüila, naquela quadra da 307 norte, pois somente estudava e, de quando em vez, fazia algumas caminhadas no Parque da Cidade. A família era pequena, o deputado, a esposa, a sogra e duas empregadas. Eles costumavam dormir cedo, por volta das dez horas da noite todos estavam nos quartos; às dez e meia o apartamento silenciava nos sonos de seus moradores. A cidade estava vazia, pois era feriado, e em Brasília, nesses períodos, todos se ausentam.
Nunca tinha ido ao cinema, pois da cidade que eu vinha não havia sala. Um pouco mais cedo, por volta das dezenove horas, então ouvi o deputado dizer que iria ao Cine Brasília, e eu, atrevido, fui pedir-lhe que me levasse consigo. Escutando o meu pedido, a dona Inácia fez uma careta, e as empregadas riam à socapa; ele não respondeu, vestiu-se, saiu e só tornaria na manhã seguinte. Mais tarde é que eu soube que o “Cine Brasília” era um eufemismo em ação, pois na verdade, com aquela expressão que todos entendiam, menos eu, ele queria dizer outra coisa. O deputado tinha uma amante, separada do marido, e dormia fora de casa uma vez por semana. Conceição, embora sofresse com a situação, terminava por aceitá-la.
Ó Conceição! Chamavam-lhe “a Amélia”, e fazia jus ao título, pois a dedicar-se nos afazeres domésticos, tão facilmente suportava o desleixo do marido para com ela. Na verdade, ela tinha um temperamento moderado, uma vida sem muita emoção, nem oito nem oitenta. O próprio rosto era mediano, nem bonito nem feio. Nela se aplica, por certo, o que se diz de alguém que não tem um brilho estonteante: era no máximo uma pessoa simpática!
Naquela noite de Natal, então, foi o deputado ao “Cine Brasília”. Era dezembro de 2007. Eu já devia ter voltado a Parnaíba, pois o concurso foi no primeiro domingo do mês; mas fiquei até o Natal para ver “a missa do galo na catedral de Brasília”, pois soube que lá estaria presente toda a corte palaciana do Planalto, inclusive o presidente Lula. Eu queria conhecê-lo de perto. Por volta das vinte e duas horas a família recolheu-se, e eu fiquei sozinho esperando a hora chegar para ligar pro celular do meu amigo; então me arrumei e fiquei esperando na sacada do apartamento. Dali, quando chegasse a hora, passaria sorrateiramente pela sala e sairia sem acordar ninguém.
— Mas, Nogueira, que fará você todo esse tempo? — perguntou-me a mãe de Conceição.
— Ficarei lendo, D. Inácia, não se preocupe.
Tinha comigo um esboço do livro, recolhido da internet, “Capitu Mandou Flores - Contos para Machado de Assis nos cem anos de sua morte”, uma coletânea organizada e prefaciada pelo Escritor e Professor de Literatura Rinaldo de Fernandes. Sentei-me à rede, daquelas que são feitas no Ceará, que estava armada na sacada, à luz de uma fraca luminária fixada na parede. Enquanto a casa dormia, passei a ler os contos “Juca”, de Amador Ribeiro Neto e o texto de Lygia Fagundes Teles. Que delícias de aventuras. O tempo voava, e me deleitava quando cheguei ao texto de Moacyr Scliar, mostrando “Um outro enfoque”. Já eram quase onze horas, mas sem dar por elas, um acaso. De repente, ouço um pequeno barulho. Assustei e parei a leitura. Eram uns passos que vinham do corredor do apartamento, certamente de um dos quartos. Com certo medo, pois o apartamento era grande, e estava meio escuro, pensei que a minha leitura pudesse ter acordado alguém, e isso era constrangedor, para um hóspede. Levantei a cabeça e vi aparecer ao vidro da sacada o vulto de Conceição.
— Ainda não foi, menino? Perguntou ela.
— Não fui! Ainda são onze horas.
— Que paciência!
A mulher chegou à varanda, arrastando pantufas de coelhinhos. Vestia um pijama de algodão, duas peças, cor de rosa. A malha fina deixava mostrar os contornos daquele corpo escultural, que não se via nas roupas que comumente usava. Fechei o livro; ela foi sentar-se numa cadeira de vime que ficava bem em frente de onde eu estava, mais próxima do peitoril da sacada. Então eu lhe perguntei se o barulho do passar das páginas a havia acordado, ao que ela respondeu com presteza:
— Não! Absolutamente! Acordei por acordar, na verdade acho até que nem dormi.
Olhei nos seus olhos e realmente eles pareciam não ter ainda pegado no sono.
— Logo deverei ir, devo telefonar pro meu amigo.
— Que paciência a sua de esperar acordado, poderia ter cochilado um pouco enquanto esperasse seu amigo. Não tem medo de fantasmas? Eu cuidei para que pensasse que eu fosse uma alma penada quando vim.
— Na verdade eu me assustei; mas você apareceu logo.
— Que é que estava lendo? Não diga, já sei, é sobre Machado de Assis.
— Justamente: é uma coletânea de contos e alguns ensaios.
— Gosta de ler contos e crônicas?
— Gosto.
— Já leu Rubem Braga, Fernando Sabino e Luís Fernando Veríssimo?
—Na biblioteca pública de minha cidade há alguns livros deles. Apostei.
— Eu gosto muito de literatura, mas leio pouco, por falta de tempo. Que livros é que você tem lido?
Citei-lhe alguns. Conceição ouvia-me com a cabeça reclinada no espaldar daquela cadeira de balanço, com um olhar às vezes sonolento, sem os tirar de mim. De vez em quando passava a língua pelos beiços, para umedecê-los. Quando acabei de falar, ela ficou emudecida por alguns minutos. Em seguida, vi-a endireitar a cabeça, cruzar as pernas vestidas por aquele pijama curto, tudo sem desviar de mim os grandes olhos espertos.
Primeiro pensei: talvez esteja aborrecida.
Não me agüentando, então falei:
—Conceição, creio que já está na hora, e eu...
— Não, não, ainda é cedo. Vi agora mesmo o relógio, são onze e meia. Tem tempo. Você, perdendo a noite, é capaz de não dormir de dia?
— Tenho costume, pois é a melhor hora pra estudar.
— Eu, não; perdendo uma noite, no outro dia estou morta e não consigo fazer nada. Mas também estou ficando velha.
— Que velha o quê, Conceição?
Ela então sorriu com o que eu disse, e aquele semblante triste deu lugar a uma alegria contagiante. Ela tinha os movimentos lentos, então que agora, num gesto rápido, trouxe a cadeira mais pra perto de mim. Ela nunca me pareceu tão bela como naquela noite. Puxando assunto, voltou a espantar-se de me ver esperar acordado; eu tornava a dizer-lhe o que ela já sabia, pois queria aproveitar minha passagem por Brasília e contar no Pará que participei da Missa do Galo com o Presidente da República.
— É a mesma missa da roça; todas as missas se parecem. Disse ela.
— No conteúdo sim; mas não é sempre que se pode participar de uma missa na catedral de Brasília. Aqueles anjos pendurados na abóbada; poder sentir-se dentro de uma taça de vinho, deve ser fantástico. No norte, porém, nada se pode comparar às festas de boi bumbá...
Então ela curvou-se, agachando-se para coçar os pés. Pude nesse momento mágico ver uma das coisas mais lindas: os seios firmes e bicudos, pois estavam tesos, que quando ela voltou a sentar-se normalmente na cadeira, percebi os mamilos revelarem-se debaixo daquela malha fina cor de rosa. As veias em seus seios eram tão azuis, que apesar da pouca claridade, podia contá-las do meu lugar. A presença de Conceição espertara-me ainda mais que o livro. Para não demonstrar-me estupefato, continuei a falar abobrinhas e o que pensava das festas da roça e da cidade, e de outras coisas que me vinham à cabeça. Falava sem parar de coisas engraçadas, e rindo queria fazê-la sorrir e ver-lhe os dentes que luziam de brancos, todos iguaizinhos. Os olhos dela, negros, ficaram lindos naquelas pálpebras amendoadas; os contornos afilados do nariz, um tantinho curvo, bem como os lábios lembravam os dos anjos da catedral, que tinha visto somente por cartão postal. Quando eu falava um pouco mais alto, ela reprimia-me:
— Fale mais baixo! Mamãe pode acordar! Dizia baixinho.
Para não acordar ninguém, ela então se aproximou mais de mim, e não saía daquela posição, que me enchia de gosto, pois tão perto ficavam os nossos rostos. E eu, nervoso com aquela situação, falava mais que ela, pois que cansada ficava séria, muito séria, com a testa um pouco franzida. Afinal, cansou; trocou de atitude e de lugar. Levantou-se e veio sentar-se ao meu lado, na rede. Fiquei louco com o calor do corpo dela a se encostar junto ao meu, dentro daquela rede. Conceição disse baixinho:
— Mamãe está longe, mas tem o sono muito leve; se acordasse agora, coitada, tão cedo não pegava no sono.
— Eu também sou assim.
— O quê? Perguntou ela encostando os ouvidos para ouvir melhor.
Ela riu-se da coincidência; pois também ela tinha o sono leve; éramos três sonos leves.
— Eu sou assim, quando acordo no meio da noite custa-me dormir outra vez, rolo na cama, à toa, levanto-me, ligo a TV ou leio um livro, torno a deitar-me, e nada.
— Foi o que lhe aconteceu hoje.
— Não, não, atalhou ela.
A conversa continuou e os minutos passavam. De quando em vez, alertava-me:
— Fale mais baixo, mais baixo...
Há impressões dessa noite, que me aparecem truncadas ou confusas. Contradigo-me, atrapalho-me. Uma das que ainda me recorda é que antes dela sentar na varanda, ela que antes era apenas simpática, ficou linda. Ela estava de pé, quando eu quis levantar-me ela não consentiu, pôs uma das mãos no meu ombro, e obrigou-me a ficar sentado. Quando eu fui dizer alguma coisa, ela saiu, como se tivesse um arrepio de frio e deu às costas, sentando-se na cadeira, onde me achara lendo. Naquele terraço havia dois quadros que pendiam da parede. E disse:
— Não gosto destes quadros! Já pedi a Chiquinho para comprar outros, há uns lindos na feira da torre.
Chiquinho era como ela chamava o deputado. Um deles era de “Cleópatra”; não me recordo o assunto do outro, mas eram mulheres. Eram vulgares; naquela situação em que me encontrava, pra mim eram lindos. Então disse:
— São bonitos.
— Bonitos são; mas estão velhos. E depois francamente, eu preferia duas imagens de santas. Essas aí são mais apropriadas para borracharia.
— Borracharia? A senhora já foi a uma borracharia?
— Não, mas imagino que os fregueses, enquanto esperam o concerto de pneus, só falam de mulheres. O dono da borracharia, que não é bobo, para que não o apressem, alegra a vista deles com figuras de mulheres peladas. Em casa de família é que não acho certo. Na verdade, eu não gosto dos quadros. Eu tenho uma Nossa Senhora da Conceição, minha madrinha, muito bonita; mas é de escultura, não pode ser posta na parede, nem eu quero. Está no meu quarto.
Quando ela falou em Nossa Senhora da Conceição, lembrei-me da Catedral de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, padroeira de Brasília, onde deveria participar da Missa do Galo. Mas preferi ouvir o que ela contava, com doçura, com graça, sobre suas paixões de quando tinha a minha idade. Quando cansou do passado, falou tristemente do presente, da sua convivência com o deputado, a lida com a política, etc. Ela contou que se casara aos dezenove anos e que se arrependera. Então, num deslize, disse:
— Precisamos mudar a pintura desse apartamento!
Como falava comigo, concordei para dizer alguma coisa. Enquanto ela falava, eu não conseguia tirar os olhos dela. Na rua, não se ouvia nada e nenhum movimento na quadra.
Depois dessa conversa amena, eu tomei coragem e perguntei a ela porque não se separava do deputado, já que era tão infeliz. Ela sorriu. Depois chorou. E entre lágrimas, encostou seu peito junto ao meu, e naquele abraço quente, ficou calada sem dizer uma palavra, apenas soluçando.
Eu não resisti: carinhosa e cuidadosamente, puxei seu queixo suave, cuja pele era mais macia que a pétala de uma rosa. Fitando em seu olhar choroso, encostei meus lábios aos dela, que se misturando às suas lágrimas, sua língua embebia num gosto temperadamente quente de desejo e paixão. Não era pra menos que eu queria algo mais ali mesmo, e apalpando-a por todo aquele corpo macio e quente, pude me deliciar de um prazer adolescente e rápido, sem deixar de cuidar que ela também ficasse inteiramente satisfeita. E no final, com uma fala meiga, cujas palavras saiam de todo o seu corpo, dizia que até então nunca havia chegado ao orgasmo em sua vida.
Depois disso, chegamos a ficar por algum tempo — não posso dizer quanto — inteiramente calados, deitados nus naquela rede na sacada do último andar do prédio que só tinha seis. O amor silencioso praticado, não nos fez preocupar nenhum minuto com alguém que pudesse ser acordado. Conceição parecia estar sonhando.
Subitamente, meu celular alerta o vibracall, que atendi a contragosto. Era o meu amigo, perguntando se não íamos à Missa do Galo na Catedral. Então, ela ligeiramente levantou-se e arrumando-se disse:
— Vá, pois já está na hora.
— Que horas são? Perguntei a ela, mas foi meu amigo que respondeu:
— Já são meia noite e meia. A missa já começou.
— Vá, vá, não se faça esperar. A culpa foi minha. Até amanhã. Insiste ela novamente.
E com um lindo balanço do corpo, Conceição enfiou-se pelo corredor adentro, pisando mansinho. Saí à rua e achei o amigo que esperava. Guiamos dali para a Catedral. Durante a missa, eu não conseguia ver outra coisa em minha frente senão a figura de Conceição, e não era a santa Nossa Senhora. Ela, Conceição, infeliz mulher do deputado, interpôs sua imagem várias vezes, entre mim e o bispo; o Presidente da República então, esse é que nem prestei atenção se estava presente. Tentei algumas vezes voltar a prestar atenção na missa e me esquecer dela. Olhava pro lado, e não conseguia. Olhei então pra cima. Vi os anjos, como que voando, estavam pendurados no teto da Catedral, cujas feições de suas bocas me fizeram mais uma vez lembrar de Conceição.
No dia seguinte, durante o almoço, na mesa estavam presentes Conceição, o deputado, a dona Inácia, mãe dela, e as empregadas que serviam. Todos calados. Intrometido, como sempre, tentei puxar assunto e falei da missa do galo e das pessoas que lá estavam (inventei alguns nomes) sem, contudo, excitar a curiosidade de Conceição. Durante o dia, achei-a como sempre, natural, benigna, apática, com roupas feias, sem nada que fizesse lembrar da noite anterior.
No ano novo fui para o Pará. Quando voltei a Brasília, em março, para prestar outro concurso público, o deputado tinha morrido de apoplexia durante a sessão inaugural no plenário da Câmara dos Deputados, pois corria uma denúncia do Ministério Público de seu envolvimento numa quadrilha de corruptos (talvez por esses escusos afazeres, não se lembrava que em casa tinha o maior dos tesouros, sua esposa). Descobri que Conceição morava em Taguatinga, mas nem a visitei, nem a encontrei. Ouvi mais tarde que se casara com o ex-chefe de gabinete do marido, treze anos mais novo que ela.