Lágrimas
A rua ainda trazia sinais da leve chuva que caiu durante a noite. A relva, úmida, brilhava aos primeiros raios de sol; o solo exalava o odor fresco do orvalho. Uma leve brisa corria pelo ar, causando-lhe calafrios. Como seria bom estar em casa, aquecendo seu corpo junto ao dela. Mas há meses não sabia a cor de seus olhos, o aroma de seus cabelos, o calor de sua tez, o suave toque de seus lábios.
Ele para em frente aquela que, um dia, fora sua casa. É cauteloso, não se deixa se ver. Observa fixamente uma das janelas. Percebe um vulto; sabe que é ela. Segue caminhando pela rua. Seus olhos passeiam pela paisagem que da sua frente foge. Um cão se esconde embaixo do banco; nem parece ver o gato que, cuidadosamente, por trás de si, caminha tranquilamente. Não se importa, só deseja não sentir todo esse frio. O garoto na esquina busca, atento, aos leitores que, mais por rotina que por interesse, correm os olhos sobre as manchetes. Aos poucos, os carros enchem as ruas, os pés atrasados somem pelas portas, os guarda-chuvas se atropelam nos ônibus.
É tudo como sempre será. O ciclo continua. Os homens, máquinas que fazem o mundo girar, nunca mudarão. Mas nem sempre foi assim. O mundo não era esse composto de engrenagens fixas, prontas para girar e cumprir sua simples função de não deixar parar o mundo.
Apesar de tudo, ele ainda vê que o sol continua a brilhar. O orvalho ainda reflete em seus olhos os pequenos e fugidios raios de sol. O calor ainda penetra pela sua pele, fazendo-o sentir a manhã. Ele ainda sente o suave cheiro da terra. Seus olhos, então, repousam sobre a triste figura daquele animal.
Seu olhar melancólico alcança aquela figura parada a olhar pra ele. Seus olhares se cruzam, como se partilhassem a mesma dor. Seus olhos acompanham os sofríveis passos, até que se percam na esquina. Antes de sumirem por completo, uma última olhada. Sim, é um olhar mais que de compaixão, de cumplicidade.
Seu pensamento, então, voa, não muito longe. O olhar daquele cão lhe devolveu o sentido. Ele, finalmente, pode compreender. Antes de virar a esquina, mais uma vez volta-se para o pobre animal. Não somente o cão, ele observa, também, o caminho percorrido daquele banco até aqui, nesta esquina. O mais longo caminho já percorrido.
Seu espírito, agora, mais vivo, mais alegre. Finalmente o sol lhe enche todo o corpo; na mais bela sinfonia o canto dos pássaros lhe envolve a alma; o cheiro da terra sobe por suas narinas como um inebriante perfume; em suas pupilas as cores do dia brincam; também o ar, agora ele pode sentir, tem o sabor do néctar.
Suas pernas o levam para casa; a sua casa. Ele ouve a campainha. Ouve passos. A porta se meche. Extasiado, não consegue dizer uma palavra. A porta ia se fechar, mas seu braço a impede. Ele olha, profundamente, para aquele brilho, bem conhecido, mas que agora brilha por outro motivo. Ainda as palavras não saem. Ele tenta, com o olhar, reacender a chama daquele coração que um dia fora seu. Ele percebe que o brilho muda; o olhar muda. A porta não mais quer fechar. Sente que a chama se reanima. Fria, uma lágrima rolava pelo seu rosto e caía pelo seu queixo. Outra lágrima, então, cai. Mas as lágrimas não são pela mesma chama.
A porta se fecha, fazendo o mundo cair em pedaços...