FALA O DIABO - XIX
Obscurecendo tudo ao seu redor, o velho vagabundo sonha. Um sonho belo e temeroso. Seu rosto conturba-se em uma expressão horrenda. Você o observa atemorizado. Nunca antes aquele rosto impassível tinha se transfigurado daquela forma. Impaciente, você o interrompe, com voz baixa e imprecisa.
- Senhor? Se sente bem?
Imediatamente o rosto daquele homem sábio se transforma, voltando ao estado de lucidez habitual. Ele volta os olhos para você.
- Está tudo bem – ele responde, com sua voz grave e pesada, que transmite confiança e sensatez. – Eu estava apenas pensando.
- Em que, senhor?
- Devaneios, meu jovem. Apenas devaneios. Ainda aprenderá que os sentimentos profundos têm um pudor que não deve ser violado. Eu lhe digo somente o que posso: eu voei. Voei tão alto que pude ver onde o azul vira preto. De lá, dava para ver todas as coisas. E parecia que havia uma razão para tudo...
Ele se cala subitamente. Por um longo tempo, seu rosto volta a ficar cheio de aflição, seus olhos se perdem, como se o velho estivesse ao lado de si mesmo. Quando, enfim, ele interrompe a meditação, o olha com curiosidade. O homem que enfeia a paisagem, embriagado com a sabedoria que somente os desgraçados possuem, o interpela.
- Diga-me, garoto. Se veio até mim, deve ter uma boa razão. Qual é?
Você não ousa encará-lo. Seus olhos estão fixos no chão. Um respeito profundo o impede de se sentir confortável em sua presença. Você sorve o ar intensamente, pensando que isso lhe dará coragem. Finalmente murmura.
- Senhor... eu... sofro.
O velho ri. Suas gargalhas explosivas espantam os pássaros e quebram o silêncio até então reinante no vale.
- Sofre? Ora, meu jovem, diga apenas que ama uma mulher tão desesperadamente que não é capaz de raciocinar claramente quando está com ela.
- Sim, meu senhor – o conhecimento do ancião sobre você e sobre o mundo o deixa livre em sua presença. Você se sente impelido a falar. – Mas há algo mais. Ela está presente, e ao mesmo tempo remota. É uma visão vivente daquilo que já foi deixado há muito para trás pelas velozes correntezas do tempo. Eu me sinto como se estivesse sem peso, aturdido, mergulhando lentamente em um lago profundo, afogando-me em desespero. Não há nada em que me amparar, nenhum lugar para servir de refúgio. Tudo o que é fixo de repente torna-se instável. E não sei o que fazer.
Toda a ansiedade é despejada para fora de si quando você diz essas palavras em um ritmo frenético, como se os segundos pudessem apagá-las da memória e jogá-las ao esquecimento. O velho sorri, gentilmente.
- Você quer amar, meu jovem? Então também esteja pronto para morrer. Amar e desaparecer são coisas que andam juntas desde a eternidade. Quer trilhar esse caminho? Então saiba que ele é doloroso e sem volta, pois nele não há chão, nem sol. Se deseja isto, então esteja apto e renuncie agora e espontaneamente ao pensamento. Apenas sinta. Se quer amar, então não pense.
As palavras do velho o enchem de perturbação. Por muito tempo, todo o seu desejo, todos os seus passos o conduziam à verdade, à erudição. Acreditava mesmo que esta era a sua vocação. Mas o que este sábio agora lhe diz, é que este é para você um caminho impossível. A razão e o pensamento não têm lugar no amor. E você escolheu amar.
- Quer dizer que, para mim, a compreensão e a sabedoria estão perdidas? Devo renunciar ao caminho da razão e da verdade?
O velho te olha com ternura, o que nunca tinha feito até agora.
- Sim, meu filho. Mas não se preocupe. Afinal, a verdade é apenas o meio que escolhemos por quem queremos ser dominados. É apenas um discurso que diz o que somos e o que devemos ser. A única forma de alcançarmos o conhecimento puro é seguir a nós mesmos. O que você faz muito bem.
Ele coloca a mão direita em seu ombro. Você corresponde o carinho com os olhos, voltando-os para ele. Entende perfeitamente o que o sábio quer dizer. Mas lhe preocupa a penosa jornada que lhe espera. Sabe que terá que pular de cabeça no abismo, apenas para ver o que há depois da escuridão. Compreende que deverá nadar até o fundo do mar, somente para saber se realmente está se afogando. E isto lhe apavora.
- Não tema – diz o velho, perfeitamente consciencioso de seus pensamentos. – Você salvará o dia quando o dia chegar. Agora, precisa me deixar sozinho. Tenho muito no que ponderar.
Você consente com um gesto quase imperceptível com a cabeça. Sem se despedir, sem olhá-lo por uma última vez, você vai embora. O seu peito está confrangido. A angústia o dilacera como um violento animal carnívoro. As palavras do velho fedem em seu interior como ovo podre. Não é necessária uma causa. Você sofre. E isto não precisa de grandes explicações.