O que fizeste na Bósnia, Papá?

Baseado, vagamente, em factos reais

“Ernest Hemingway disse um dia que “ O mundo é um belo local para se viver e merece que lutemos por ele”

Cá por mim, concordo com a segunda parte”

in Sete pecados mortais

Deixa-me amar-te ó caos

penetrar no teu seio de ódio

abraçar a negritude

completar a minha paixão

enterrando a felicidade

saboreando o sangue da efémera vitória

completar o meu ego de falsa virtude

Sejam bem-vindos às trevas

O QUE FIZESTE NA BÓSNIA, PAPÁ ?

Ele passa por nós, inexorável, purificado, purificador, mensageiro de Letis, que apaga de nós o pecado. O tempo é uma bênção.

O que interessam pois as emboscadas em campos onde brinquei aos soldados, onde matava virtualmente há mais de vinte anos, sem julgar que no futuro seria a sério?

As expulsões de famílias inteiras, ao meio da noite, das suas casas e terras centenárias por onde passei e parei tantas e tantas vezes para entregar encomendas; mãos que acenavam e que agora se fecham, bem como os sorrisos transformados em cerrar de dentes?

O que interessa a partilha da carne fresca de jovens “inimigas”, o comungar egoísta do seu corpo, do seu calor, enquanto elas, vergadas pelo nosso peso, nossas mãos e joelhos, ora gritavam, ora choravam, ora se calavam. Corpos e almas filhas de amigos de infância, rostos brancos perdidos nos tempos de paz acariciados em visitas de cortesia aos pais, colegas de emprego e amigos de longa data, pelas mesmas mãos dos mesmos homens que agora violam a calma da velha Jugoslávia ?

As ordens dadas a prisioneiros, militares ou não, preferencialmente homens em idade de combater (isto é, dos quinze aos sessenta), para cavarem valas, sabendo nós e eles a função delas; ouvir uma vez por outra o nosso nome, pronunciado por um antigo companheiro de carteira que daí a pouco sentiria encostado à nuca o cano da nossa arma e que por última visão teria a parede da escola onde ambos aprendemos as primeiras letras?

O que interessa a eloquência calada das paisagens belas da nossa pátria comum, dos vales luxuriantes, das colinas de onde se avistavam cidades, algumas delas património mundial, que visitáramos há demasiado tempo e que agora destruímos para as gerações vindouras?

O gesto cego de carregar um canhão e de o disparar, por ordem telefónica anónima, em direcção a um desses lugares idílicos tão comuns por estes lados, mas tornados tão raros por nós; entrecortado por pausas onde nos encharcávamos de aguardente e fumávamos cigarros sem conta, para depois voltar à rotina mortal, porque nada havia a fazer, porque o nosso dia-a-dia nos foi usurpado, porque as nossas vidas e profissões desapareceram no turbilhão, porquê?

O que interessa se bombardeámos e matámos capacetes azuis com repetida sobranceria, sabendo de antemão que a sua reacção estava presa pelos políticos do mundo, os quais desafiamos, vituperando o seu rosnar de galinhas e prosseguindo a tarefa milenar de unir e purificar um país com poucos anos?

Se nos éramos os mais poderosos, desafiando os grandes da terra, por sermos os menores e termos nascido num dos vulcões da Europa. Toda a gente sabia disso, os olhos fechavam-se aos massacres e as consciências toldavam-se resignadas, porque a causa era maior, porque haveria e haverá sempre uma Líbia ou um Iraque que se possam bombardear para gáudio das massas comunicacionais circenses, prenhes de sangue, longínquo, cujos borrifos jamais salpicarão as cidades e economias dos centros do universo?

O que interessa se as multidões famintas de refugidos e os massacrados da bósnia não tiveram essa sorte, se os seus queixumes e lágrimas estavam demasiado perto, se o melhor era ignorá-los, nomear alguns maus da fita e bombardeá-los à americana, cirurgicamente...

A sobranceria dos falcões da NATO só encontrava paralelo na hipocrisia da O.N.U...

O que interessa se a Comunidade Europeia ficava amnésica em parte das suas responsabilidades quando a sua união de Pirro era posta em causa?

Os deuses abençoam os superiores desígnios da humanidade, pois nós, reles mortais não os ousamos compreender...

O que interessa que tenhamos sido condenados à morte, não pelos tribunais do homem, mas pelas nossas recordações, que se destilarão em pesadelos, aperitivo de um ódio que irá tornar esta guerra eterna quando passarmos as nossas recordações para os filhos, legado a transmitir muito depois do último combatente ter tombado de velho, até a vontade de mais um messias louco, alquimista de reminiscências as transformar em guerra, pura, rija, civil, a mais letal?

Acreditar na tão estafada consciência humana, quando vemos um camarada nosso a torturar um simples soldado inimigo, até à morte e participar nisso apenas porque estamos aborrecidos por uma pausa nos combates?

O que interessa a vida quando olhamos para o rosto de um miúdo e nele vemos os olhos de um velho, onde uma centelha indica a vontade de nos matar, olhos que violaram o tempo quando os horrores os envelheceram prematuramente?

A vida perde significado quando a morte é o bem de valor mais acrescentado.

O que interessa que as democracias nos queiram unir, coagindo-nos até, se por outro lado, baseados numa falsa paz nos enchem os paióis para delimitar as suas áreas de influência, se os ódios de quatro anos de combates são o tónico para desavenças sem fim, conflito eterno na irrisão de uma nação, eterno nos ecos de chacinas, na saudade dos dias calmos, nas campas agora subliminarmente quentes?

Que te tenha deixado com meses e agora volte e te encontre com anos, por uma causa que nunca foi verdadeiramente importante (pelo menos para a maioria de nós) tornando-se de súbito vital a potências estrangeiras e aos seus Senhores de guerra, caciques cómicos na paz, verdugos terríveis na guerra?

O que interessa a infância, a tua, quando a viverás entre destroços, onde ao invés de evitar com que vás para a estrada onde poderás ser atropelada, te proibiremos de passear pelas bermas, onde jazem escondidas algumas minas destinadas a perpetuar o luto mais algumas dezenas de anos?

Inventar mil e uma histórias, ou estórias, como lhe quiserem chamar, de forma a não te contar a verdade crua e desumana à pergunta inocente “ o que fizeste na guerra, papá?”

Hoje acredito apenas que o ódio pode ser eterno, apesar de não o sentir.

Os números dos mortos são e serão sempre oportunamente reduzidos a cifras “politicamente correctas”, isto é, suficientemente chocantes para levar a uma intervenção mundial no terreno, mas incapazes de solucionar as questões de fundo que se prendem com aquela que deveria ser a coexistência pacífica entre três povos que obstinadamente se massacram.

Nunca ninguém saberá o que se passou aqui.

Por tudo quanto vi e vivi, "não acredito em deus, mas aprendi a ter medo dele".

As convulsões africanas são apenas mais um intervalo antes do regresso da grande chacina europeia. Uma espécie de “intervalo para a publicidade” tipo “United Colours Of Benetton”, em versão light, porque o sangue negro vertido é infinitamente menos chocante do que o branco, logo passível de ser mais mediático...

Mas não se deixem iludir pelo silêncio dos Balcãs “Nada é mais silencioso do que um canhão carregado” já o afirmava Heirich Heine no século passado. A guerra voltará, é apenas uma questão de tempo...

O que interessa afinal essa paz de que falo tanto?

A guerra da qual fujo, mas que me tornei tão viciado?

Esse maniqueísmo louco no qual estamos todos perdidos e misturados?

O que interessa a filosofia da total negação?

Um dia, houve alguém que disse, que o pior dos cépticos é aquele que já foi um idealista puro.

Eu sou um deles e sinto-me um monstro.

Interessa pois estar junto de ti para te proteger de homens como eu.

Conto escrito durante a guerra da Bósnia a meio da década de 90, baseado em histórias que li durante a guerra e no relato que ouvi de pessoas que de alguma forma viveram essa horrível tragédia dos Balcãs. Mesmo os não religiosos...Rezemos para que a guerra não volte, rezemos pela paz, lutemos em paz com todas as nossas forças pela paz

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