Sobrevivências

Ela tinha apenas 17 anos. Sentiu fortes dores nos ossos e uma febre alta. Após menos de uma semana estava diante do médico. Dias depois, recebeu o diagnóstico de que era portadora de um câncer raro e que deveria iniciar dois tratamentos severos: Quimioterapia e radioterapia.

Aos 23 anos Lucinda engravidou. Havia 5 anos que tinha recebido alta dos tratamentos. No quinto mês de gestação, após sentir forte dor de cabeça, soube que estava com uma metástase no cérebro e que só o aborto lhe daria mais chances de sobreviver. Optou pela vida da que viria a ser sua primogênita.

- Minha filha, doutor, é muito mais importante para mim que esta maldita doença. Que viva ela e eu continue a duelar com a morte.

- Se tirarmos esse tumor do seu cérebro, talvez você sobreviva e possa engravidar novamente.

- Esse seu talvez é desinteressante para mim. Deixe minha filhinha dormir para nascer depois. Eu já a amo demais para perdê-la.

A cirurgia aconteceu com êxito. Íris nasceu com oito meses, mas bem. A lesão encefálica fora retirada, e Lucinda outra vez houvera se beneficiado da terapêutica adotada. Fizera novamente a radioterapia e reengatilhou a vida como se dela houvesse recebido o passaporte da longevidade.

A festa de quinze anos de Íris foi linda. Lucinda fez questão de dividir com Arthur, seu esposo, os raros minutos da valsa dançada com a filha. Inovou. Sabia que aquele momento lhe seria mais importante do que os outros de espera constante pela sobrevivência.

- E então, doutor Ivan, voltou?

- Acho que sim.

- No mediastino, mesmo?

- É..., nele sim!

- Tratamento há?

- Faremos apenas quimioterapia.

- Vai começar tudo novamente: enjôos, vômitos, fraqueza, feridas na boca, choro, depressão...

- Você é forte, Lucinda, já sobreviveu a coisas muito piores. Vamos à luta!

Em dezenove de maio de 2004 encontrei-a na sala de espera do doutor Arthur. Tinha às mãos um pequenino livro de auto-ajuda. Olhou-me com carinho e disse:

- Que fazes por aqui?

- Vim ao teu encontro, amiga, dessa vez como paciente. Nós duas.

- Como vês, estou bem. Continuo lutando. Uns vivem para lutar, outros, como eu, lutam para viver. Mas estou bem. Espero vencer mais esta batalha. Você com..., câncer?

- É..., eu.

- Como vai tua mãe?

- Bem.

- E Íris?

- Maravilhosamente bem.

- O maridão?

- Deixou-me por outra menos complicada. Foi sabido. Não o considero, por isso, um mau sujeito.

- Ainda pude ouvir um diálogo dela, por telefone, com sua mãe. Estava eu à sua frente.

- Lucinda, minha filha, você está bem? Aí em Recife está muito quente? E as enchentes em sua rua?

- Mãe, não se preocupe com isso agora. Estou na recepção do Ivo Roesler. Daqui a pouco me chamarão para a radioterapia. Está tudo bem. Íris já foi para a escola?

- Já! Agora me diga, a sua amiga de Maceió, a que também está fazendo radioterapia, já está aí perto de você?

- Está, mãe. Ela entrou na sala do acelerador linear. Eu já conversei com ela.

- Não fique só, filhinha. Esteja sempre perto dela.

- Ela é um amor de pessoa, mãe. Estou coladinha nela. Não fico só.

Quando eu a via, escancarava um sorriso gracioso e sentava-me à seu lado. Entres nós havia batalhas de sobrevivência. Em situações díspares, mas bastante complicadas recebíamos o tratamento redentor. Eu outra, grata à vida por dela haver recebido o menor dos males. Praticamente já sabia que iria sobreviver ao meu mal. Para Lucinda, o pior dos males.

Em vinte e um de junho de 2004 recebi carta de sua mãe. Um pequeno retrato dela. Antes mesmo de ler a dedicatória detrás do papel, chorei. Ainda com vida ela lembrou-se de mim. “Resolvi desarmar-me, Adélia. As armas não mais se interessavam pela minha vida aqui entre vocês. Cansei de ter esperanças. Vivi o bastante para quem já nasceu nos limites dela. Essa foto é sua. Dar-lhe-á forças para continuar sua luta, enésimas vezes inferior às que tive. Receba meu beijo de saudade. Continue a dar forças a outras colegas nossas que tanto necessitam de nós, naquela recepção tão representativa do Instituto Ivo Roesler, quando se trata de esperança.”

Ainda me comuniquei com sua mãe por telefone. Ela parecia conformada. Acompanhando a filha por tantos anos, encaliçara-se com o sofrimento degustado.

Íris continuava inconsolável. Segurava sua mãe com medo de que a morte a levasse com todas as forças que conseguiu receber da vida. Permanecia a ver nas paredes do hospital o retrato do sofrimento de Lucinda. É difícil dar-se a tantos quando dentro de nós há um forte apelo de acolhida. Afinal, meu coração não é de papel, minhas dores não são ficção e minha esperança, um quadro pintado e posto na parede para que, apenas olhando-o, ponha-se o autor no colo. Entre mim e Íris há uma longa história de amor e dor e uma perda que machuca uma lembrança desvairada. A morte é e será a minha única grande inimiga de luta. Imploro a Deus pela glória de minhas batalhas.