A VELHA ESCOLA - PARTE 4

PARTE IV - 2007

Era o primeiro dia de aula, no colégio. Pelo menos de Marcelo como professor. Era professor do primeiro e segundo ano do Ensino Médio. Três horas com o primeiro na quinta, e três horas com o segundo na sexta.

Qual não foi sua surpresa ao constatar que a sala do primeiro ano ainda era exatamente onde era na sua época de estudante.

Ao entrar na sala, Marcelo teve vontade de se sentar em uma das várias cadeiras distribuidas pela sala e esperar pelo professor.

Então sobreveio um turbilhão de memórias. Marcelo se lembrou de entrar naquela sala, sentar-se na última carteira para poder conversar com Clara. Se lembrou de como ansiava terminar a escola, para ser justamente professor.

Uma lágrima escorreu pelo rosto de Marcelo.

Ele sentou-se em sua cadeira, à frenta da sala. Entou alguém bateu à sua porta. Ainda não era nenhum aluno. Era o professor Lúcio. Ele era um dos poucos que ainda trabalhavam na escola, mesmo tendo se queimado severamente no incêndio. Marcelo ainda não o contara que era um antigo aluno, nem ele o reconhecera. Queria esse informação só pra si, na primeira semana, pelo menos.

Ao extender o braço para lhe entregar um papel Lúcio deixou exposta uma das inúmeras cicatrizes do incêndio.

Marcelo sentiu uma enorme compaixão por aquele homem, mesmo sabendo que era o mesmo que tantas vezes o prejudicara.

O papel nada mais era do que a chamada e a lista de faltas.

Assim que o professor Lúcio se retirou, sem reconhecer Marcelo, os alunos entraram, um por um.

Era dos mais variados tipos, alguns mais atrasados que outros. Levaram quase quinze minutos para a turma se acertar em seus lugares, ainda conversando e no clima de férias.

Quando finalmente todos estavam sentados, Marcelo iniciou sua aula.

***

Fernando corria. A sirene do carro de polícia fazia um barulho que, em seus ouvidos, parecia ensurdecedor. Se escondeu em um beco. Se alguém o achasse ali, era seu fim. O carro passou direto. Finalmente, Fernando respirou com mais tranquilidade.

Olhou, o alívio estampado em sua face, para a mochila onde se escondia sua mercadoria. Aquilo era muito dinheiro. Começou a contar.

Dez mil. De uma tacada só. Em notas de cinquenta.

Olhou para o outro lado. Uma senhora, bem idosa, capengava pelo chão;

- Uma moedinha, pelo amor de Deus.

Pediu a senhora.

Fernando se sentiu enojado quando a mulher pegou na sua mão.

Era só mais uma, pensava Fernando. Mas essa mulher conseguira, de alguma forma, ao tocar a mão de fernando, tocar seu coração.

Fernando puxou uma nota de cinquenta dentre as muitas da mochila. Entregou nas mãos da mulher.

- Use bem.

Disse ele.

- Obrigada, meu filho, ainda existe bondade em você.

Respondeu a mulher.

Então as feições da mulher começaram a mudar. E, como mágica, sua mãe o olhava, com a nota de cinquenta nas bem presa nas mãos.

Fernando acordou. Fora um pesadelo. Ele se sentou em sua cama. Olhou o relógio. Três e meia da manhã. Naquele momento, o telefone tocou. Fernando atendeu. Era seu pai. Ele não sabia como seu pai conseguira aquele número, mas conseguira. Provavelmente pedira para o velho empregador de Fernando, com que ele ainda mantinha contato.

- Filho - disse o pai, com a voz extremamente baixa - vem aqui em casa, por favor.

As horas que se seguiram foram as piores da vida de Fernando. Ele chegou à casa de seu pai, que estava com os olhos vermelhos. Logo notou que as coisas não iam bem.

Então ele soube da verdade. Sua mãe havia morrido.

- Que horas?

- Eu te liguei assim que soube.

***

Depois de algumas semanas dando aulas Marcelo já se sentia à vontade com seus alunos e colegas de trabalho. Um de seus alunos, Felipe, era realmente bagunceiro e o lembrava de Fernando.

Era dia de reunião, e assim que Marcelo entrou na sala, percebeu que os olhares se voltaram para ele. A professora de Geografia tomou a palavra:

- Marcelo, porque você não disse pra gente que foi aluno daqui.

A pergunta pegou Marcelo surpreso, pois não esperava que esse pergunta lhe fosse feita desse modo, nem na frente de todos os outros professores, principalmente Lúcio, com quem, mesmo trabalhando no mesmo local, não mantinha nenhum tipo de relação além da estritamente profissional.

- Bem... - começou a responder - Eu... Preferia que não soubessem disso, é verdade, pois não queria que isso modificasse a forma como vocês me veêm como profissional.

A reunião foi um pouco constrangedora, mas aparentemente os professores engoliram sua desculpa.

Só aparentemente.

Ao final da reunião, quando Marcelo abria a porta de seu carro para ir embora, um outro carro parou ao seu lado. Ao volante, o professor Lúcio:

- Marcelo. Tá afim de tomar uma cerveja?

Perguntou Lúcio.

Não era mais o momento de fugir da verdade, teria que se confrontar com o velho professor Lúcio.

- Vamos. Onde?

Lúcio pareceu pensar um pouco, até que respondeu:

- Tem um ótimo restaurante na frente da praia, segue meu carro.

Chegando ao restaurante, estacionaram os carros logo após a esquina.

Aos poucos, o Sol ia se pondo, descendo de seu patamar, dando lugar à escuridão.

Dentro do restaurante, foram indicados a uma mesa próxima da janela. De lá, viram um homem sentado, solitário, em um banco.

Marcelo e Lúcio ficaram longos cinco minutos sem falar nada, até que Lúcio resolveu quebrar o silêncio:

- Então, qual foi o real motivo de você não ter contado para todos que você era um antigo aluno.

Marcelo sentiu-se supreso que Lúcio já não tivesse adivinhado os motivos:

- Eu não tinha motivos pra contar pra nenhum de vocês.

- Pra mim tinha!

- Tinha? Qual?

- Eu era seu professor! Eu gostaria de saber que estava trabalhando com um antigo aluno.

- Mesmo que o antigo aluno fosse eu?

- O que você quer dizer com isso?

Marcelo queria socar o rosto daquele homem, todas as vezes que quisera isso durante seus anos de escola vindo à tona.

- Você só atrapalhou minha vida, sempre me humilhando para os outros alunos, sempre me fazendo de babaca na frente de todos! Você realmente esperava que eu viesse todo feliz te dizer que seu velho e maltratado aluno estava de volta?

- Eu... Melhor irmos embora, Marcelo.

- É.

***

Fernando caminhou pela beira da praia. Fazia pouco mais de um mês que sua mãe havia morredo, pensava ele.

Infelizmente, ele não estava ali para pensar na mãe. Estava para roubar. Finalmente ele encarava suas atividades como um homem. Era um ladrão, e como tal agiria, não importando as consequências.

Então viu os dois homens saindo, indo na mesma direção. Sacou sua arma.

Chegou sorrateiramente nos homens.

Ouvia a conversa deles.

- Eu espero que você um dia me perdoe, Marcelo. Eu não fiz por mal.

- Um dia, Lúcio, quem sabe.

Então, sem pensar, puxou a camisa de um, colocando a arma encostada na testa dele.

Quando o outro se virou, percebeu que colocara a arma na cabeça do mais novo.

Marcelo nunca sentira tanto medo quanto quando sentiu o frio metal contra sua pele.

Lúcio não sabia o que fazer. Quando se virou, percebeu que algumas das feições não lhe eram estranhas.

Então reconheceu.

- Fernando... - disse ele - Não...

Mas Fernando não lhe deu atenção. Então, mesmo sem nunca ter sido treinado, Lúcio puxou a arma das mãos de Fernando.

Ao ter a arma puxada, Fernando reagiu institivamente, apertando o gatilho.

Lúcio sentiu uma estranha queimação em seu peito. No minuto seguinte, estava caído, o sangue jorrando.

- Fernando...

Disse com uma voz extremamente fraca, quase um sussurro.

Fernando ouvira, e então se dera conta de onde conhecia aquela voz. Era o velho professor Lúcio. Então o outro...

- Quem é você? Qual é o seu nome?

Gritou Fernando, desesperado, arrependido do que acabara de fazer.

Marcelo percebeu que havia algo estranho, e mesmo com medo, respondeu:

- Marcelo.

O mundo de Fernando ruiu naquele momento.

- Marcelo... - começou ele, com a voz fraquejando - Sou eu, Fernando... do colégio.

Então tudo ficou claro.

Marcelo odiara aquele homem, quando ele ainda era um menino, com todas as forças, mas agora não queria o mal dele. Seu arrependimento de ter acabado de matar seu professor preferido seria suficiente.

- Corre, Fernando! Corre antes que eu chame a polícia! Corre, porra!

E ele correu.

***

Era o enterro de Lúcio, e Marcelo e Clara, assim como todo o corpo docente do colégio, caminhavam lentamente pela cemitério. Chovia muito, portanto todos os guarda-chuvas estavam erguidos.

Enquanto os empregados do cemitério desciam o caixão, e o padre resava as últimas preces, Marcelo percebeu um homem, bem ao longe, ajoelhado, olhando diretamente para o enterro de Lúcio.

Se aproximou do homem.

Era Fernando. Ele chorava, as lágrimas brilhando contra a luz pálida que vinha do céu.

- Então, e agora?

Perguntou Marcelo, ciente de que olhares se voltavam para ele, inclusive o de Clara.

- Eu não sei. - Respondeu Fernando - Mas... Você não contou a ninguém que fui eu, contou?

- Não.

- Então agora só me resta buscar redenção, de alguma maneira.

- Adeus, Fernando.

- Adeus, Marcelo.

***

Marcelo chegou para mais um dia de trabalho.

O Colégio ainda não encontrara um novo professor de Literatura, mas logo encontraria.

Os alunos o esperavam. Ele começou sua aula.

Ao fim da mesma, ao sair do colégio, olhou para trás.

E lá estava ela, majestosa, triste, cheia de histórias. Lá estava, imóvel e bela, A Velha Escola.

***

Fernando agora buscava a redenção, e sua maior fonte de força era sua mãe, e sua últimas palavras, que embora ninguém o tivesse dito quais foram, ele sabia perfeitamente quais eram. Ela as tinha dito somente para ele, em seu sonho:

"Obrigada, meu filho. Ainda existe bondade em você"

G Heyerdahl
Enviado por G Heyerdahl em 20/09/2008
Código do texto: T1188370
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