CICATRIZES POÉTICAS

Em meio a uma noite, “não enluarada”, ele chegou, com suas sandálias surradas pelo tempo, com os ombros pesados, (o peso da idade), peso que segundo ele até hoje não tinham servido para nada; com a calça muito empoeirada... ele chegou e me disse calmamente:

- Quanto custa um quarto?

Quando o vi lembrei do meu tio, aliás, ele deveria ser tio de alguém, ele tinha a maior cara de tio.

- Ei, moça!

- Ah! Sim o quarto? É...

Então, sem que ele percebesse, ao lhe dizer quanto custava o quarto, olhei-o da cabeça aos pés, ele parecia ser boa gente e tudo mais, eu só não entendia o porquê dele se hospedar em um hotelzinho de beira de estrada!

Ele era muito calado, por isso, não puxei conversa, entreguei a chave e lhe desejei uma boa noite. Depois de algum tempo, ouvi um grande barulho, corri para ver o que era, um cara do quarto ao lado , disse que o barulho tinha vindo do “535”, dei uma olhada e o que vi, foi um homem, o mesmo homem que eu tinha atendido a pouco tempo atrás, deitado no chão com várias garrafas de vinho ao seu redor, claro que eu não ia deixar ele ali, estirado no chão, por isso cuidadosamente eu o coloquei em cima da cama.

Por um breve momento, percebi que ele estava chorando, não perguntei a razão, seria muita impertinência fazer isso, resolvi sai do quarto, mas de repente uma voz trêmula me falou:

- Desculpe tê-la acordado.

- Não tem problema! Respondi.

- Você poderia então, me fazer companhia?

- Acho... Claro!

Eu não queria de jeito nenhum ficar a sós, com um homem desconhecido, mas, tive pena dele e fiquei, ele me falou de sua vida, sua família que tinha morrido, entre outras coisas, me disse também que não queria acordar os outros hóspedes, apenas tinha bebido demais.

E me disse que durante muito tempo era a única coisa que ele tinha feito, todas as noites, desde o dia em que, segundo ele, tinha perdido o seu grande amor:

- Ela tinha 22 anos, era uma morena linda, cabelos longos e volumosos, ela era tão linda e simpática, que até parecia um sonho. Certa noite, (me lembro como se fosse hoje), ela falou, que queria fugir comigo, tinha medo que seu pai obrigasse a casar com o filho de um fazendeiro amigo dele, sem dizer mais nada, ela se pôs a chorar.

Eu tinha escrito um livro, já era o segundo, estava fazendo muito sucesso em São Paulo e assim sendo, tinham me convidado para dar uma palestra por lá, então disse a ela que quando voltasse eu a desposaria.

Foi o fim do mundo para mim quando voltei e descobri que ela tinha se casado com o filho do tal fazendeiro, tentei resgatá-la das garras daquele ser desprezível (ser, que tratava gente feito bicho), mas, antes de tomar a iniciativa, a mãe dela me disse aos prantos que num acesso de raiva, ele a tinha matado...

- Fiquei horrorizada com toda aquela história, mas, outra coisa me chamava a atenção – os dedos do desconhecido estavam repletos de cortes profundos cortes que sangravam muito – por isso resolvi perguntar:

- Moço, o que aconteceu com seus dedos?

- Ah, isso?

- Bem, desde o dia em que minha amada morreu, resolvi me auto penitenciar pelo que aconteceu com ela. Então, vi que a única coisa que eu podia fazer era deixar um pouquinho de mim em cada canto, para que assim eu possa alcançar a sua sublime misericórdia.

- Moço você é doido?

- Claro que não, pois foi por causa do meu orgulho que ela morreu...

No outro dia fui ver como ele estava, mas, não o encontrei no quarto, o procurei por todos os cantos, tinha desaparecido. Fui então, como de prache, ate a porta do hotel, grande foi o meu espanto, ao ver que na fachada do hotel – bem baixo, próximo a porta tinha alguma coisa escrita, era um poema que parecia ter sido escrito com sangue:

“Destas veias impuras, sujas,

Jorra a tinta;

Com a qual um poeta triste pinta

Na esperança que surja a paz;

Para um espírito inquieto”.

Ramon Diego
Enviado por Ramon Diego em 18/09/2008
Reeditado em 19/09/2008
Código do texto: T1184749