Incógnito *

Eram onze e meia da noite. Hugo tomava um café enquanto pensava no caminho que sua vida seguiria daí por diante. Fora um dia difícil. Sob a luz da lâmpada fraca as coisas, os problemas pareciam ainda mais assustadores. Mas Hugo ainda tinha uma esperança. Naquela manhã quando saiu de casa para trabalhar, ele sabia que precisaria de muito mais que seu salário para pagar a cirurgia da mãe.

Sua mãe era cardíaca e precisava de uma ponte de safena rapidamente. Hugo chegou ao trabalho e comentou com seus colegas que precisava de muito dinheiro. Todos entenderam sua necessidade, mas com o que ganhavam como carregadores no porto, mal conseguiam sustentar suas famílias.

O rapaz trabalhou sem descansar o dia todo. Precisava ocupar sua mente para não pensar e sofrer. Alguns companheiros realmente desejavam ajudá-lo, mas não tinham recursos. Quando parou para almoçar foi ao telefone público e ligou para o hospital. Conseguiu por sorte falar com sua mãe, estava acordada. Ela disse que não se preocupasse e que se não conseguisse o dinheiro, já havia vivido o suficiente para vê-lo um homem de bem. Mas a imagem da mãe cada dia mais abatida e pálida deixava aflita sua alma. Era seu único filho, seu pai morrera ainda criança e desde então a mulher trabalhava lavando, passando e limpando pra fora, a fim de colocar comida na mesa. Quando completou doze anos, Hugo começou a trabalhar vendendo picolé nas ruas. Cortava gramas, entregava compras e jornal, fazia de tudo para ajudar a mãe que sempre se queixava de dores no peito e às vezes sofria desmaios que deixavam o menino apavorado.

E agora essa mesma mulher que sempre batalhou até perder as forças desistia de lutar pela vida só porque não tinham o dinheiro. Hugo não ia permitir. Daria um jeito. Mas qual? A tarde demorou a passar. Olhava o relógio. O sol queimava sua pele, parecia machucar. Chegavam mais caminhões e mais navios para carregar e descarregar. Nem todas as cargas da vida são frágeis, pensava enquanto empilhava um carregamento de cristais. Às quatro e meia parou para lanchar. Foi sentar ao lado de um garoto que acabava de começar no emprego. Estava cheio de planos, sua namorada estava grávida, logo se casariam e criariam o bebê. Hugo imaginava a euforia de seu pai quando soube que sua mãe teria um filho. Sabia que seus pais haviam sofrido muito, que a miséria sempre rondara sua casa, e após seu pai falecer, as coisas só pioraram. Principalmente a saúde de sua mãe.

Findo o intervalo, voltou a trabalhar. Todos os dias passavam por suas mãos fortunas inestimáveis, sob a forma de sacaria e de caixas. Ali dentro, em alguma delas teria o dinheiro exato para a cura da mulher que dependia dele. Passou as mãos pelo rosto, enxugou o suor, afastou alguns pensamentos tristes. O calor do sol estava mais suportável. Fará hora extra. Tem feito há meses, tentando reunir a quantia que precisa. Mas apenas consegue os remédios para diminuir o sofrimento dela.

Anoiteceu. Um novo carregamento chega ao porto. Caixas frágeis. Que terá dentro? De repente, uma das caixas escorrega. Abre-se uma fenda e Hugo vê. Inacreditável. Reluzente, sob as luzes que iluminam seu trabalho, Hugo vê esparramadas as mais lindas e valiosas peças que podiam imaginar ver um dia seus olhos acostumados à miséria de sua existência. Quanto valeriam? Antes de provocar um tumulto, desceu as escadas e ergueu a caixa guardando a mercadoria rapidamente. Seu chefe pediu o que havia acontecido. Respondeu rápido que uma caixa havia caído, mas sem nenhum prejuízo. Continuou fazendo seu serviço calado, preocupado, atento apesar do sono de noites mal dormidas na recepção do hospital. Após cada visita médica era o seu coração que sofria ao ouvir dizerem que se fazia urgente a operação. Que não poderia esperar pela saúde pública. Ela não tinha esse tempo.

Nessa noite foi ao hospital mais cedo. Estava cansado, queria dormir, precisava dormir. O médico que examinou sua mãe foi claro. Precisava operá-la logo. Desesperado, deitou-se sobre o leito e chorou em silêncio. As mãos magras de sua mãe eram resultado do enfraquecimento de todo seu corpo. Além disso, eram calejadas, mal cuidadas, olhava as mãos de outras mulheres e se perguntava por que sua mãe não tinha direito a ficar horas no salão; fazer as unhas, cuidar do cabelo, depois ir passear com ele e ele orgulhoso exibiria sua linda mãe a todos. Foi para casa, tomou um banho, comeu um pedaço de pão com manteiga, tomou um café. Haviam chegado mais cobranças. Luz, água, gás. Todos cobravam uma atitude dele. E a primeira que tomaria seria com relação a sua mãe.

Levantou-se. Foi até seu quarto, revirou o bolso da calça suja que usara durante o dia. Estava ali a salvação de sua mãe. Deitou na cama desfeita do sono da noite anterior. O sono custou a chegar e quando chegou teve pesadelos à noite toda. Na madrugada levantou-se, foi ao banheiro, lavou o rosto e se olhou no espelho. Há momentos em que um homem precisa correr riscos. Estava disposto a correr.

Quando o dia amanheceu, telefonou avisando que não iria trabalhar. Disse que sua mãe piorara e que fora chamado ao hospital urgente. Em vez disso, foi a uma casa de penhor que ficava do outro lado da cidade. Estivera ali com um amigo anos antes emprenhando um relógio que ganhara nas cartas, com o dinheiro comprara sua primeira bicicleta. Provavelmente o dono não o reconheceria. Entrou na loja receoso. Era cedo, acabara de abrir. Certamente seria o primeiro cliente. O dono o atendeu. Olhou o objeto e viu que se tratava de coisa valiosa, mas só podia pagar dois mil reais. Era pouco, precisava de muito mais. O dono então sugeriu que fosse a uma casa que comprava moedas antigas, jóias, objetos raros e de valor. Sugeriu que se perguntassem onde conseguira tal preciosidade, devia dizer que era herança de família e que agora precisa desfazer-se.

Seguiu o conselho. Foi até lá. Realmente valia mais que o que tinha sido oferecido.

Saiu daí e foi correndo ao hospital. Havia tumulto, corro-corre. Gente que não entendia nada, que queria saber do que se tratava. Médicos e enfermeiras apressados. De repente a recepcionista o reconheceu. Doutor o filho dela está aqui.

O médico aproximou-se calmamente, pôs a mão em seu ombro e disse que fizeram tudo que podia ser feito. Relatou que depois dele sair daí na noite anterior ela ficara muito agitada e sua situação desestabilizou-se muito. Tentaram localizá-lo em casa, mas não atendeu, no trabalho disseram que já havia avisado que não iria. Então as lágrimas começaram a escorrer por seu rosto pálido. Tirou do bolso da calça o dinheiro que tinham pago a ele na outra loja. Disse ao homem que era para pagar a cirurgia. Chorou em silêncio por uma hora. Depois foi ao quarto dizer adeus. Deu a ela um sepultamento digno da melhor mãe do mundo. Foi para casa e adormeceu sem jantar.

Na manhã seguinte também não foi trabalhar. Pagou as despesas do hospital, as contas atrasadas e foi ao banco abrir uma popança com o que sobrou. No dia seguinte, quando chegou ao porto, os companheiros se fizeram solidários. Só no final da tarde o chefe comentou que tinham dito que faltou um colar de esmeraldas da carga da qual tinham caído as caixas no outro dia. Hugo disse que aquela tarde estava com a cabeça tão pesada de preocupação, nem sequer lembrava do que tinha acontecido. Bateu o ponto e foi embora; na rua passou em frente à loja onde fizera a venda. Tem coisas que ninguém precisa saber. Nessa noite, dormiu tranqüilo.

*vencedor do Concurso de Contos Gladstone Osório Marsico.