O Branco
Ele tinha uma baita memória, mas numa noite, aconteceu. No meio de uma peça muito ruim que naquela noite era assistida por doze pagantes e oito convidados, uma palavra escapou. Ele substituiu por outra e seguiu em frente. Na noite seguinte, sete pagantes, três convidados e uma frase inteira sumiu. Como a dramaturgia era péssima, ele não teve pudores de improvisar uma nova fala que desse sentido ao festival de bobagens que era aquele espetáculo. Mas na outra semana, no meio de uma sessão que só não foi cancelada porque quatro senhoras apareceram em cima da hora, ele se esqueceu do monólogo final e encerrou a peça antes do fim, pra estranhamento dos colegas de cena. Depois, pediu demissão e saiu batendo a porta.
Horas mais tarde, ele tava no bar, no meio da bebedeira, argumentando que o texto da peça era um lixo e que, fundamentalmente, em matéria de teatro era melhor ficar quieto do que falar alguma coisa que não fosse importante. Ele achou que aquela decisão era muito importante de ser comunicada, por isso falou alto, com aquela voz empostada de ator. Todo mundo na mesa riu e alguém declarou, pastosamente:
-Um brinde às coisas importantes!
Brindaram e gargalharam. Artistas fudidos, mas pelo menos sabiam o que era importante na vida.
Lá pelas tantas, ele foi ao banheiro. Voltou, pediu outra cerveja e ficou sentado, olhar parado, aquela imagem do ébrio. Ninguém levou à sério aquele silêncio e a conversa corria solta. Um dramaturgo iniciante emendou um discurso convicto, enquanto tragava o décimo cigarro.
-É preciso acreditar que a sua angústia pessoal é a angústia de toda a humanidade, logo passível de identificação, porra!...
Uma atriz quarentona fingia interesse quando na verdade tudo o que ela queria era comer o jovem dramaturgo. E o ator, que ouvia a conversa de rabo de ouvido, resolveu se pronunciar.
-Isso tudo é uma bobagem!, ele gritou bem alto, a ponto de silenciar o bar repentinamente.
O dramaturgo iniciante, que curtia uma polêmica barata, tomou coragem e deu uma peitada:
-O que que é uma bobagem?
-Essa babaquice de angústia pessoal e identificação com o caralho a quatro! Bobagem!
-É por isso que a crise do teatr...
O dramaturgo iniciante foi silenciado por um soco na boca. A confusão foi geral. Muita gente quis apartar, mas como tava mundo bêbado, o esforço pacifista gerou novas discussões. E no meio do bate-boca e enquanto a atriz quarentona levava o dramaturgo pra casa com a desculpa de passar um gelo no hematoma, mas com o objetivo de levá-lo pra cama, o ator voltava pra sua quitinete, pensando que definitivamente, nada tinha importância e que tudo era, realmente, uma bobagem imensa.
Um dia, lembraram dele. Alguém disse: "por que não chamar o fulano pra dizer que o nosso plano é pago em trinta e seis vezes com as melhores taxas de juros do mercado."? Ligaram e ele atendeu. Chamaram e ofereceram uma graninha. Ele, que tava numa puta fossa e numa fase de penúria inédita, foi. A filmagem era de madrugada e tudo o que ele tinha que dizer era uma única frase pra depois embolsar o cachê que representaria muitos meses de aluguel quitado na quitinete. Maquiaram o ator, lhe vestiram um terninho que a figurinista ajustou atrás com fita crepe e o maquiador corrigiu a franja teimosa umas vinte e sete vezes. Ligaram as luzes, posicionaram os figurantes. Quarenta e cinco pessoas na equipe, envolvidas pra captação de uma única frase.
Que o ator não conseguiu dizer, mesmo depois de inúmeras tentativas. No take trinta e lá vai pedrada, quase saiu:
-As melhores taxas de juros do... do...
-Do mercado, merda!, desabafou o diretor, naquela altura do campeonato , putíssimo. O constrangimento era geral com aquela incapacidade de dizer uma coisa tão simples. Os figurantes se cutucavam, a equipe técnica bufava de impaciência. Perguntaram se o ator queria uma aguinha, ele recusou. Com o canto do olho, ele observou os olhares consternados, as cabeças que balançavam negativamente e o diretor que tentava controlar a impaciência transbordante. Respirou fundo e, meio trêmulo, chamou o diretor de lado:
-Você me desculpe, mas é óbvio que essas taxas não são as melhores do mercado e eu não consigo decorar textos que eu não acredito.
-Que porra é essa?, disse o diretor.
-A minha angústia é a angústia da humanidade, paciência, disse o ator, virando as costas.
O diretor não conseguia acreditar naquela justificativa cretina. Emendou um discurso sobre o profissionalismo em altos brados. O ator não gostou daquele tom de voz e disse que o diretor poderia enfiar o profissionalismo no rabo. O produtor tentou intervir, o diretor gritou de novo, houve empurra-empurra e no final, a filmagem finalmente foi cancelada, com xingamentos e ameaças de processo. Uma figurante que fazia teatro amador, sussurou pra colega, também figurante, que o ator tinha sido muito coerente com as suas convicções ideológicas e que isso era um mérito enorme num mundo de gente vendida. Mal sabia ela que o ator, enquanto lavava o rosto e tirava a maquiagem, lembrava de todo o esforço inútil realizado durante o dia na tentativa frustrada de decorar uma fala tão simples e idiota. Quando ele enxugou o rosto, as lagrimas rolaram. E foi nesse momento que ele decidiu nunca mais falaria nada, nem na vida, nem na ficção.
E podia terminar por aí, mas é bom que se diga que a greve de silêncio durou três dias. Logo ele se encheu daquela vida de eremitão de quitinete e saiu na rua, atarantado, xingando todo mundo, inclusive os policiais que pediram pra ele se acalmar. Depois de cinco horas detido na delegacia, ele foi ao bar, procurar os amigos da roda. Queria fazer uma peça, botar a boca no trombone, externar a revolta contra a mediocridade da comunicação através da arte. O dramaturgo iniciante tava lá e mantendo uma distância segura, tomou coragem e disse que tinha escrito um texto que ia ao encontro daquela inquietação e que se o ator quisesse ler, ele não guardava mágoas da porrada e etc.
Mas o ator não ouviu, já que falava pelos cotovelos, como se quisesse recuperar o tempo perdido.