SEGUNDO NOTEMUNDO

I

Eu sempre me acomodava à poltrona direita do carro e, naquele tempo, minha mãe, ao volante, tinha reflexos tão mais delicados, que eu nunca soube doutros iguais em alguma outra mulher ou homem. Ensimesmado folheava uma das “Críticas”(*) de Kant(**), tentando compreender os artífices de sua “Razão”. Mas eu só tinha 8 anos e já havia passado do melhor momento cognitivo para à filosofia! Não obstante, enfastiado por conta das estripulias da mamãe na pilotagem do Passat preto 1982.

Ela, tão jovem e ao mesmo tempo, linda como uma madura imperatriz, defendia seus herdeiros - eu e minha irmã -, atravessando à cidade como, pilotando um avião: avançando semáforos fechados e veículos; marcando asfaltos com os pneus de seu Wolksvagem. Os borrachões, cavalos de paus, rés violentas em contramãos,.. demasiado seu gosto em dirigir automóveis! O povo ficava neutralizado, quase paralítico, quando persistia no seu ir e vir sem destino, jogando aquela máquina nociva sobre alguns pedestres e contra outros motoristas covardes. Mas suas rodas, quase derretiam os tapetes de piches e o nosso Passat endiabrado, desaparecia enfumaçado em nuvens de óleo evaporado.

Mamãe sugava do motor tudo que ele poderia lhe dar. Minha irmã de 3 anos, chorava de se engasgar no banco traseiro, enquanto ela guiava os nosso futuro à mão esquerda. À direita se dividia-se em dedilhar caule do litro de uísque, tragado de tempo em tempo, trocar às machas, quando preciso, na alavanca de passagem e no toca-fitas, num excessivo volume, repetidas vezes:

“DEIXE QUE EU SINTA SEU CORPO

QUE EU BEIJE TEU CORPO

TEUS LÁBIOS DE MEL

DEIXE QUE EU TE ABRACE AGORA

QUE A NOITE LÁ FORA, FICOU PRA DEPOIS

VENHA SER A COMPANHEIRA ESPERADA

CORPOS JUNTOS, MÃOS DADAS

PRECISO DE VOCÊ!

E SINTA LÁ DE DENTRO À VONTADE

MEU OLHAR É VERDADE

EU QUERO SÓ VOCÊ”

DEIXA, DEIXAAA...

UH, UUH, UUUH...

DE, DEIXAAA...

AH, AAH, AAAH”...

Eu sei, tamanha a angústia de minha pequena e chorosa irmã: seu imaturo consciente, já conceituava à idéia de fragilidade e o constante perigo, o qual nos sujeita até a surpresa dos últimos dias e, não sabendo ainda desse “a priori”, a garota clamava por vida.

“DEIXE QUE EU TE ABRACE

TE EMBALE NO SONO

MEU CORPO NO TEU

DEIXE QUE EU TE DESPERTE

SUSSURRE BAIXINHO

TEU NOME PRA DEPOIS DORMIR

VENHA SER A AMADA AMANTE, TE DESEJO

QUERO ME PERDER NOS TEUS BEIJOS

QUERO HOJE TE AMAR

VENHA SER A COMPANHEIRA ESPERADA

CORPOS JUNTOS, MÃOS DADAS

PRECISO DE VOCÊ!

DEIXA, DEIXAAA...

UH, UUH, UUUH...

DE, DEIXAAA...

AH, AAH, AAAH...”

Decerto, o que mesmo me assustou, foram as estridentes sirenes da polícia. Embora, fosse mais complexa à agonia de mamãe, bebendo do gargalo daquele xarope sagrado e fechando caminhões em bêbadas ironias. O carro transpunha os acostamentos e quando entrou novamente na avenida central, invadiu as calçadas para fugir do extenso congestionamento. Tão logo, joguei a “Crítica” pela janela, minha irmãzinha roxa, soluçava podres lamentações; minha mãe, dirigindo de cigarro aceso à boca de filtro manchado com seu batom, que borrava os mesmos vermelhos lábios e sol da garrafa do destilado. Víamos mulheres, homens, crianças, mendigos, idosos, guardas, enfim, todos os seres possíveis, mal ou bem trajados - até nus -, cujos sempre compactuavam dos esplendores urbanos, arremessando-se para todos os lado, para dentro dos prédios, para os meados do tráfego truncado, tentando escapar dos palpites do velho carro em exercício, pelos descaminhos daqueles pisos de pedras portuguesas, naquela hora, tê-lo-ia ditado-os.

Todavia, as viaturas barulhentas tentavam furar o bloqueio dos outros veículos entalados no engarrafamento, e iam ficando para trás. Já nem tinham às suas vistas, em seus rádios, o rastro sonoro de Tim Maia(***), repetindo-se sucessivamente, no usado de nossa família.

“DEIXA, DEIXAAA...

UH, UUH, UUUH...

DE, DEIXAAA...

AH, AAH, AAAH...”

II

Pois que, na época de mamãe viva, à luz de minha infância, ela, mulher de tantos predicados aqui confessos e expostos! Tamanha sua inteligência e equidade natural para o julgamento de algumas normais adversidades. Embora, acredito, ela ter nascido numa família tradicional, portanto, privilegiada numa formação erudita e diante disso, explicava sua apurada sensibilidade artística, amplo senso científico, delicadeza no recitar como versos às histórias de suas viagens e preocupação em transmitir aos filhos, seu extenso leque de informações, não rejeitando o amparo das regras de etiqueta para interagirmos com classe em qualquer roda social.

Não esqueço de minha mãe, aconselhando nunca prestar atenção na conversa alheia. Sobretudo, nestes dias relativistas, em quais estamos, meus caros, não há como tratarmos os imperativos sem alguma flexibilidade.

Certa feita, encontrava-me num dos vagões do coletivo a caminho da faculdade. Os sobrenomes, não mais me garantiam àqueles feudos, as pensões que os advogados dos meus avós controlavam, ao passo que os meus antepassados, enfileiravam-se em orgias nos "casarões" do Monte Olimpo. Aliás, o sangue, à ascendência, já nem me seguravam um carro e os estudos universitários, tinha de encarar como uma necessidade utilitária, ao contrário dos que me antecediam na genealogia.

Estava eu naquele expresso, lendo uma revista segmentar à minha graduação e não me fugiu um bom papo de dois homens à frente: um de meia-idade e o outro ainda amargando na primeira casa dos vinte. O mais idoso então, tomou às rédeas do colóquio:

- Ora, novo candango, você ainda vai pichar as respostas no muro perdido do tempo.

- Não hei de trazer respostas, pretendo formular pequenos problemas.

- Mas saberá tudo das partes que investiga, garoto!

- Eu só tento me empreender no mundo, caro senhor.

- Pois bem, meu rapaz, algo me atormenta nesses meses que saem e entram e fogem ao meu controle. Conquanto, sei, ao tomar conhecimento de minhas perturbações, a solução lhe acometerá antes de seu piscar involuntário.

- Não medirei esforços em ajudá-lo, amigo!

- Filho, tenho um animal de estimação em minha casa. Trouxe para o meu convívio familiar ainda bem filhote. Minha esposa é professora e leciona em nosso lar. Veja, menino sábio: esse estimado bichinho, sabe ler melhor que muita gente! De modo que se mostramos escrita a palavra “COMIDA” ele corre até ao estoque de sua alimentação. Qualquer coisa, o qual lê, dá sinais de entendimento, gesticulando com suas patas ou quando acessíveis ao seu toque, trás para a gente.

- Sim, o senhor há de entender que existem diversos estágios de compreensão lingüistica... Falou o rapaz.

- Claro, mas o meu animal tem mesmo o conhecimento abstrato. Certa vez, assistíamos uma matéria sobre Gabriel Garcia Márquez(****) num telejornal e ele me veio com o seu andar quadrúpede, sustentando entre os dentes à obra “Cem anos de solidão”(*****).

- Sim, sim,.. Saiba: estou confuso!.. A linguagem escrita é essencialmente humana. Aliás, isso nos impele a pesquisar sobre a humanização de espécimes alheias... Diga-me: qual a espécie de seu animalzinho?

- Trata-se de um felino que não é gato. Em verdade é um rotwailer que não é cão, que canta e não é pássaro.

- Interessante, observou o estudante, acho que podemos atingir às vias de uma conclusão! Entenda, o senhor afirma que sua mulher é...

Concluir, sê-lo-ia imprudente àquela investigação, pois, no momento da eloquente explanação, vinha correndo entre os vagões, abrindo caminho no superlotado coletivo, um pit bull, rosnando, latindo e cuspindo todo seu ódio entre os dentes afiados, golfando sangue. Todos ou subiam nos bancos, atiravam-se pelas janelas ou se suspendiam nos corrimões superiores. O pavor, o instinto de sobrevivência, a falta de coragem humana e tudo que pudesse subordinar entes vivos àquela fera, eu poderia citar aqui. No entanto, só pensei em salvar das ignorantes garras do cão, minha revista de filosofia.

III

Eram dez horas de uma manhã nublada, ensolarada e chuvosa. Pela primeira vez em meus vinte e poucos anos, o serviço de meteorologia não tinha se enganado. Percorri o campus da universidade e no pátio, alguns amigos e amigas numa roda, tocavam violão e cantavam, mas não música; outros papeavam descontraídos, mas não sobre arte, filosofia, literatura, política, ciências, pessoalidades, superficialidades ou qualquer que fosse o assunto! Conversavam sem emitir palavras completas, compreendidas em qualquer idioma, dialeto, ou alguma forma inteligível de linguagem falada ou mesmo gestual. Porém, vi dois colegas visivelmente cansados, arredios, conversando sem parar! Um só parava para passar a palavra ao outro. Uma companheira de curso me confidenciou aquele debate já se travar há nove dias e seria eterno enquanto o diálogo persistisse: apostaram contender até que o sono ou a morte declarasse o verdadeiro vitorioso. É o jogo da vida! Quisera eu ser um tanto competitivo!

O pátio tinha um imponente chafariz de cento e vinte e três anos – idade das edificações, as quais abrigavam cada departamento da instituição. Lá estava sentado entre as guimbas de cigarros, os quais injuriavam os degraus, que davam acesso àquela beleza decadente, naquele centro onde os mais distintos saberes se harmonizavam e se conflitavam, o líder do movimento estudantil.

Ele tinha ao lado um megafone esquecido de suas vistas, fumava convulsivamente, ao ponto de acender um novo cigarro no filtro quase inútil do antigo e concomitantemente, goleava, ofensivamente, no colo de uma garrafa de absinto. O representante dos estudantes, em sua solidão, fumava, tragava do álcool e me direcionava um olhar sinistro de condenação.

Encarou-me por alguns minutos, de forma que atemorizado, tomei alguma distância e me aliviou flagrar uma bonita moça se aproximando dele. Ela usava botas pretas e saias de ilhós xadrez, quase dois palmos acima dos joelhos, expondo lindas pernas roliças e caucasianas - quase fosfotescentes. Sua tez branqueada e os longos cabelos rosas, aqueciam suas costas seminuas, pois a chuva e o vento da manhã, tinham se perdido num recente passado e falar agora desses fenômenos, não havia sentido!

Tratava-se de uma namorada do representante estudantil. Ele a agarrava com toda uma violência máscula, tascando-lhe beijos emporcalhados e não houve quem não presenciasse o desencontro de suas línguas! Ele a insinuava um sorriso tarado e com uma mão apenas, por baixo da curta saia, os cinco dedos cobrindo-lhe as ancas, levantava-a recostada ao seu tronco alcoólico, suado de fumo, sedento de cópulas e militância política. Mas a moça, em alguns minutos se foi, então ele retornou a sentar nos manchados degraus do chafariz, com o seu velho megafone ao lado, acendeu outro cigarro e bebeu do absinto. Novamente, o rapaz estava lá nas repetições dos atos: os mesmos discursos; os mesmos hábitos.

Não significava mais medo, tratava-se apenas de uma questão de segurança: distanciei-me e ainda bem, esbarrei com uma querida pessoa e veterana, com a qual resolvi pedir aconselhamento acadêmico. Era um ser não-ser, desconfio. Não-humano, talvez. Cultivava bigodes de algodão, gadelhas rebeldes e multicoloridas. Falando em cor, à de sua pele também não era definida. A ilustre figura estava sentada no meio de um corredor, costurando um pedaço de pano desbotado com agulha e linha, quando nela tropecei. Desculpei-me pela topada e por meu medo. Convenceu-me, assistirmos juntos uma das aulas que acontecia há alguns andares acima, como ouvintes.

Na sala, o professor, um renomado pensador de procedência étnica afro-franco-alemã, esperava o momento de começar a expor sua disciplina, sentado numa velha cadeira, com as suas franzinas pernas cruzadas, puxando seus longos fios da longa barba brancos, com os dedos, resmungando baixo num sotaque basco, exibindo com lucidez à dignidade dos seus 187 anos.

- Professor - um aluno tomou a palavra -, tenho modestos aforismos e minhas alegorias, também dependem de sua orientação e apontamentos.

Daí, foi o fiasco para o acadêmico se levantar enfurecido, frustrado, retirar seu revólver escondido por baixo do paletó e descarregar todas as balas sobre o graduando pedinte. Sob o queimar de cada tiro em seu corpo, o rapaz ia derrubando as carteiras numa fuga lenta de queda, movendo seus braços como estivesse batendo asas para morrer. Os colegas e eu, apenas tentávamos escapar das balas. Ninguém deteve a didática assassina do velho. O pensador xingava alto, num dialeto francófono, enquanto um outro colega seu, este recém-doutor, concomitantemente, abriu um pergaminho e passou a recitar o seu Manifesto Internacional da Arrogância Humana, entre salvas de palmas dos alunos presentes, ainda testemunhando àquela querela pedagógica. Com estas palavras, iniciava-se à declaração:

-“NÓS, DOUTOS NAS ARTES DO PORVIR, REIVINDICAMOS AQUI, UM SISTEMA MONISTA DE FIDELIDADE EM EXISTÊNCIA E NÃO-EXISTÊNCIA, ONDE SEJA POSSÍVEL NÃO SÓ O UTILITARISMO E A APLICABILIDADE SOLIDÁRIA DA ESSÊNCIA DO SER E TODO O CONHECIMENTO, RESULTANTE DO INTELECTUALMENTE DEDUZIDO, EXPERIMENTADO, INDUZIDO AO LONGO DE MILÊNIOS. ENTREMENTES, REAVENDO OS SABERES NÃO-AVENTADOS E NÃO-PERDIDOS, REQUISITAMOS UMA MELHOR MANUTENÇÃO DAS VIRTUDES, DA FELICIDADE E SUAS EPISTEME. NÓS, OS SÁBIOS DO MUNDO...”

No mais, o professor guardou sua arma após gastar toda a munição, retomou o equilíbrio, viu o horário no relógio de bolso e como eu, não permaneceu na sala, velando o corpo do nobre colega e prestigiando o entusiasmo do manifestante. A gente se retirou, ele seguiu para um lado a passos nobliárquicos e eu fui para o outro. Ainda assim, à medida que me distanciava daquela dependência, ouvia à declaração ininterrupta, trivial daquele representante do proletáriado intelectual, deste tal meu país!

IV

No pátio da faculdade, já estava montado o altar e os convidados eram recebidos pelos agentes do buffet. Eu saía de uma aula e estava em tempo vago, aguardando que outra começasse. Tinham alguns seguranças bem fortes e eu não pude me aproximar muito do local onde ocorreria a cerimônia. Fiquei próximo ao chafariz, perto do líder estudantil, que acendia um cigarro atrás do outro, dava petelecos em guimbas, tomava do absinto e quase esbarrei em seu antigo megafone.

Não obstante, alienar-me à falta de informação, não me contive! Aproximei-me de uma sala próxima e flagrei um homem jambo, cabelo cortado à máquina, bem aparado, uns doze quilos acima do peso, com fraque de noivo desesperado:

- Não, eu não quero!.. Dizia o rapaz, banhado em demasiado suor.

Ele era contido pelo pastor – que seria o Juiz de Paz do matrimônio –, o pai da noiva e outros dois homens bem robustos e novos - , deduzo, pertencentes à família.

- Calma rapaz, medo é normal... Consolava-o seu futuro sogro.

- Pelo amor de Deus, eu não quero casar!... DEIXA EU IR EMBORA, DEIXA EU IR EMBORA!

O jovem de fraque foi contido pelos irmãos da noiva, ao tentar fugir.

- Sente aí, varão!.. Ordenava o pastor. Agora é tarde, você não deveria ter pedido a moça em casamento. O inimigo está agindo em você, varão! A família é uma instituição sagrada e no mundo nada há sem a existência do pai. O universo está entregue a Satanás. Jesus voltará para o juízo!

- Glória Pastor, Glória! O pai e os irmãos da noiva exaltavam.

- Sou um professor-doutor e emérito, milito contra à laicidade e tenho de fomentar o comprometimento religioso à formação intelectual. Minha filha já lhe aguarda!

- Não, não, por Deus!... Eu estou arrependido... O rapaz trêmulo, pálido, mijou-se todo,.. EU VOU ME EMBORA... ME SOLTA, ME SOLTA, ME SOLT...

Tentando se desvencilhar daqueles homens outra vez, foi imobilizado num golpe marcial e, o pastor retirou do paletó uma seringa com agulha na ponta, mediu a quantidade da medicação, já diluída em seu interior, enquanto os cunhados tratavam de desnudar um dos braços e nele amarraram um cinto, para que contivesse a circulação sangüínea.

- Aqui meu pastor, aqui... O velho apontava o braço.

O homem chorava, chorava,.. – “NÃO, NÃO, NÃÃÃÃÃO”...

O sacerdote injetou a solução no local indicado e, simultaneamente, o cafuzo sentiu um torpor, uma calma; seus olhos chegavam a dilatar em êxtase:-“Batizado no Espírito Santo!”- dizia entorpecido. Foi necessário, os mesmos rapazes que o neutralizaram, conduzi-lo ao local onde aconteceria, em minutos, o evento.

V

Bem como afirmei, não pude estar entre os convidados, para assistir a solenidade. De longe, eu avistava o casal, seus pais, alguns padrinhos e Juiz de Paz, declamando seu sermão neopentercostal no altar.

Permaneci ali no chafariz, próximo ao líder estudantil, consumindo tabaco e absinto com o megafone e sua estúpida solidão. O meu colega, morto há pouco pelo professor europeu de 187 anos, aproximou-se de mim, ainda um tanto abatido, embora, trajado em terno preto, listrado de corte italiano, gravata vermelha, decorada com pequenos pontos brancos. Chegou ao pé do meu ouvido com uma pasta executiva à me aliciar.

- Você é talentoso. Tem futuro, amigo!... Eu posso fazer de você uma celebridade... Eu tenho muitos planos pra você: uma carreira meteórica!

Eu tentava não desviar à atenção do casório, mas o cara era persistente e me cercou, impedindo-me de assisti-lo.

- Sua voz é única. A melhor do mundo! Posso fazer de você bilionário. Veja: nem precisa mais compor! A gravadora tem os melhores compositores só para sua santidade!

- Uma canção revolucionária!.. Protestou o líder estudantil ao se levantar, erguendo as mãos fechadas.

- Consigo o melhor repertório, depois papéis no teatro; participações em filmes dos diretores mais badalados e papel de protagonista na novela das nove, hein?

- Canções revolucionárias! Canções revolucionárias!... Repetia o mesmo discurso, o líder sorridente de braços abertos, após fazer estatelar no piso do pátio, sua garrafa quase vazia.

- Filmes em Hollywood, mansões, mulheres, garotos, drogas, tudo que você quiser, posso conseguir se assinar comigo!

- Uma canção revolucionária, revolucionária!

- Assine aqui, aqui... Temos uma coletiva de imprensa daqui a pouco.

- Uma canção revolucionária... Várias, VÁRIAS CANÇÕES REVOLUCIONÁRIAS!.. Ele berrava entre nós e eu me perturbava.

- Assine aqui.

- CANÇÃO REVOLUCIONÁRIA!

- Aqui.

- REVOLUCIONÁRIA!

O Líder estudantil sacou seu megafone e quando nele berrou: -“CAMARADAS” – uma Veraneio 73, azul marinho, invadiu o pátio com policiais a paisano, atirando para todos os lados. Tratei de me refugiar em algum canto. O pessoal do casamento, em pânico, corria de forma desordenada. O noivo fugiu por um lado oposto à companheira. O Pastor sacou uma pistola e começou a trocar tiros com a polícia. Alguns estudantes formavam barricadas, enquanto outros como eu, corriam. O líder estudantil deixou o megafone cair pelo caminho, mas o Chevrollet o perseguiu e o esmagou com suas pesadas rodas. Ele ainda citou Giddens(****) após o carro ter passado por cima de seus ossos. Eu achei uma metralhadora jogada pelo chão e tive de usá-la para começar a fugir. O Pastor assegurou minha fuga e me prometeu cobertura. Eu perguntei:-“E o senhor, quem irá cobrir”? – “Deus, meu filho. Ele atira por mim!..” Respondeu-me. Então trocamos as armas, ele me deixou uma granada para melhor segurança e descarregou algumas rajadas contra os federais, para que eu conseguisse correr. Atravessei à portaria do campus e quando dei por conta, estávamos cercados por todas as forças de segurança governamental. Atirei o artefato, matando alguns soldados e agentes estatais.

Houve uma momentânea dispersão do cerco policial, devido ao meu lampejo salvador. Percebi uma garrafa de refrigerante média, com um líquido amarelado em seu interior, e fechada no talo, com um imenso pedaço de jornal, abandonada próxima a mim. Indaguei sobre aquela estranha combinação de objetos e substância a um alferes doutorando, cujo cruzava os portões numa tosca tentativa de fuga. Ele me afirmou que o produto era gasolina. Tomei em minhas mãos, retirei o pedaço de jornal, beberiquei um bocado do combustível e verifiquei que o mestre não variava. Daí, tampei o recipiente novamente, com o mesmo pedaço de papel, encontrei o meu isqueiro do bolso, acendi, joguei para o interior da universidade.

A luz me veio e fez doer muito os olhos. Exasperei-me, diante das labaredas; da revelação; da verdade anunciada daquele templo nunca antes confesso. Resolvi jamais temer! “Volto lá e conto tudo aos meus. Eles hão de enxergar também!” Pensei. “Está tudo errado!” Pensei de novo.

Eu cruzei as chamas com uma coragem messiânica e alguns corpos queimavam ao chão. Sobretudo, os sobreviventes, ainda mantinham-se em alerta e se ouvia alguns disparos de todos os lados. Eu acenei as mãos, clamando o acordo de paz. Não me assustei com a súbita e prévia aliança, estabelecida diante de mim, e fui fuzilado. Silenciaram-me para não tentar mudar os destinos de mais nada.

NOTAS:

• (*)“Crítica da razão prática” e ”Crítica da razão pura”: ambas obras de Immanuel Kant.

• (**)Immanuel Kant (1724-1804): filósofo idealista alemão.

• (***)Tim Maia (1942-1998): cantor e compositor brasileiro, gravou a música “Lábios de mel”, autoria de Cleunice Aparecida Cazalonga e Edson Trindade, utilizada nesta estória.

• (****) Gabriel Garcia Márquez (1928-...): escritor colombiano, Prêmio Nobel de Literatura 1982.

• (*****) Cem anos de solidão: obra de Gabriel Garcia Márquez, publicada em 1967, rendendo o Prêmio Nobel de Literatura ao seu autor.

• (******) Antony Giddens(1938-...): sociólogo britânico liberal.

- Lábios de Mel (YOUTUBE):

http://www.youtube.com/watch?v=F829MMP_uto

RODRIGO PINTO
Enviado por RODRIGO PINTO em 11/09/2008
Reeditado em 23/10/2024
Código do texto: T1171989
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