Diário de Um Homem de Teatro
Eu sei que ando sumido, o que não significa que estou parado. Para provar o que estou falando, segue abaixo alguns trechos que extraí do diário que estou escrevendo nesse ano. Existem passagens bem mais interessantes no diário que eu escrevi no ano passado, mas infelizmente não sei onde foi parar a chavinha do cadeado.
Segunda-feira:
Minha inspiração aflora quando estou deprimido, portanto nos últimos dias ando inspiradíssimo. Hoje, fui fazer compras e levei uma multa por estacionamento proibido, o que foi bem estranho porque eu fui ao mercado a pé. Isso, obviamente acabou com a minha manhã e no meio de toda aquela fossa, tive uma idéia genial pra uma peça. Pensei numa dramaturgia que falasse sobre a solidão do homem moderno e a impotência sentida diante da certeza inexorável da morte. Um texto recheado de personagens obscuros e pessimistas, chafurdados no vazio de uma existência sem sentido. Sentei em frente ao computador com tamanho entusiasmo que acabei tendo um bloqueio criativo e não passei da primeira rubrica que dizia: “luzes se acendem revelando o palco vazio.”
Quarta- feira:
Acabei de voltar do Rio de Janeiro onde fui fazer contatos na Globo. Dizem que o salário é uma merda, mas a vantagem é depois de ficar famoso você começa a ter uma boa chance de conseguir desconto em determinados restaurantes. Um grande amigo meu, que trabalha lá dentro como assistente de cabo-man, concordou em facilitar a minha entrada no PROJAC, desde que eu prometesse que nunca mais iria procurá-lo na vida. Chegando na Globo, me dirigi à sala de produção de elenco onde fui carinhosamente recebido por uma produtora que aparentemente me confundiu com o rapaz da limpeza porque de cara me pediu pra trocar o seu cinzeiro sujo por um novo. Após desfeito o mal-entendido, eu me apresentei como ator e disse que havia enviado o meu DVD-Book pelo correio um mês antes. Depois de muito procurar, finalmente a moça localizou o meu material, que aparentemente estava servindo de calço pra sua mesa bamba, muito embora ela tenha me garantido que colocar o DVD ali era uma maneira de arquivá-lo num lugar confiável. Pedindo desculpas por estar um tanto quanto atarefada, ela me pediu para que eu a acompanhasse até o banheiro e nesse meio tempo tivemos uma longa e agradável conversa de um minuto e meio onde ela me perguntou sobre as minhas experiências profissionais. Falei da minha trajetória com entusiasmo, muito embora acredito que ela não tenha ouvido a última parte em função do barulho da descarga. Quando nos despedimos, eu a parabenizei pela gravidez evidente e acabei descobrindo numa resposta mal-humorada que na verdade ela era simplesmente gorda mesmo. Saí da Globo otimista, convicto de que tenho grandes chances de conseguir um bom papel na próxima novela das oito.
Quarta-feira
Ainda na Globo, cruzei com o Wolf Maia no corredor e lhe dei uma abraço caloroso, perguntando se ele não estava lembrado de mim. Ele disse que não, o que não foi surpreendente, já que nunca fomos apresentados.
Sexta- feira
Hoje tive um pequeno surto durante um teste de comercial, talvez porque esperei durante seis horas sem tomar água, até alguém me falar que eu estava na fila errada. Desfeito o mal-entendido, me deram um texto simples falando dos benefícios de uma determinada fralda geriátrica. Durante o teste, a assistente de direção me colocou sentado num vaso sanitário cenográfico, de onde eu deveria dizer algo como “se você não consegue chegar até aqui, use Confort Man...”. Fiz a cena duas vezes e na terceira, a assistente me disse que a minha interpretação estava teatral demais. Foi quando eu mostrei a bunda pra câmera e saí do estúdio. Acho que não vou ser editado.
Sábado
Convoquei uma reunião com o meu grupo de teatro pra decidir quais seriam os novos projetos da Companhia. Todos no grupo tem diversos compromissos profissionais, o que tem dificultado a sistematização dos nossos encontros. Na realidade, estamos tentando conciliar nossos horários há dois anos, sem sucesso, infelizmente. Então, eu anunciei que a reunião aconteceria hoje de qualquer jeito e que quem estivesse presente acabaria determinando o que o ausentes deveriam aceitar. O que foi decidido é que a próxima peça será um texto meu, protagonizado por mim e que o valor integral dos cachês deverá passar pela minha conta-corrente para que eu faça o repasse para os outros atores de acordo com o que disser a minha consciência. Ninguém reclamou, mesmo porque só eu estava presente.
Domingo
Hoje, depois de uma pequena discussão, a minha mulher me expulsou de casa, logo após arremessar com toda a delicadeza um liquidificador ligado na minha testa. Não achei de todo ruim ir pro olho da rua a não ser pelo fato de estar chovendo. Fui correndo pra casa dos meus pais, mas minha mãe me lembrou que, como há dez anos eu havia sido expulso de lá também, por uma questão de coerência ela não poderia voltar atrás. Então, procurei na minha agenda o telefone do João, que desde a faculdade sempre foi o mais pervertido dos meus amigos na esperança de passar a noite no apartamento dele como nos velhos tempos em que eu era solteiro: assistindo o canal Boomerang na tevê a cabo. Chegando lá, descobri que o João casou-se com uma freira e transformou seu apartamento num centro-espírita. Até tentei dormir no sofá, mas alguns espíritos de luz se recusaram a diminuir a iluminação da sala. Voltei pra casa e a minha mulher me recebeu de braços abertos, dizendo que tudo não tinha passado de uma brincadeira. Achei até divertido, mas acho que ela não precisaria ter passado o estilete em todas as minhas camisetas.
Segunda-feira
Enquanto não me chamam pra fazer novela, eu tenho que me virar pra ganhar a vida. Continuo dando aulas de teatro e descobri, maravilhado, que posso me realizar artisticamente sendo professor, mesmo que seja difícil convencer a turma da terceira série que montar Samuel Beckett pode ser super divertido.
Quarta-feira
O que seria da vida de um ator se não fossem os contatos? Na época da faculdade, eu dei aulas de teatro numa unidade da FEBEM. Foi uma experiência maravilhosa, que teria rendido muitos frutos sociais, artísticos e pedagógicos se a unidade não tivesse sido implodida pelo governo depois de uma rebelião. Lembro com carinho de todos os meu alunos e guardo especial afeto por aqueles que não me espancaram. Um dos mais brilhantes era o Ruim, chamado desse jeito pelo seu jeito afetuoso de se relacionar com as pessoas. Me emociono até hoje, quando lembro do dia em que o Ruim me presenteou com uma navalha feita a partir de uma colher de refeitório num gesto de agradecimento por eu ter dado a ele o papel principal da nossa peça de conclusão de curso: “O Fantástico Místério de Feiurinha.” Pois bem. Anos se passaram, eu estou no Banco 24 Horas às duas e meia da manhã, tirando meu extrato porque é nessa hora que eu gosto de fazer meu planejamento orçamentário, quando um ladrão encapuzado invade o quiosque. Como a vida dura nas grandes cidades me deixou absolutamente acostumado com situações de violência, imediatamente desmaiei com toda a convicção. Quando acordo, estou no colo do Ruim, que me olha com ternura e me chama de professor. Foi um lindo reencontro e após trocarmos um abraço emocionado, o Ruim me pediu, com toda a gentileza, que eu sacasse quinhentos reais da minha conta corrente. Depois disso, e em meio à uma conversa onde relembramos com alegria os velhos tempos, fui agredido com uma chave de roda e trancado no porta-malas do meu carro, de onde fui retirado doze horas depois, ainda refletindo sobre a beleza da amizade.