Ernesto Genioso

A mulher volta e meia dizia:

-Com esse seu gênio, um dia você acaba tendo um enfarto.

O Ernesto ficava puto quando a mulher falava esse tipo de coisa. Na realidade, não era difícil ele ficar puto e era por isso que a mulher avisava toda a hora do perigo do enfarto, gerando um ciclo vicioso de irritação. Tudo era pretexto pra explosões em casa com a mulher. Perguntar sobre como havia sido o seu dia era sempre um risco. Normalmente, o dia tinha sido uma merda pro Ernesto. O chefe era um bosta, os colegas da repartição eram uns idiotas e o Ernesto tinha especial implicância com o Alfredão, o funcionário piadista que tinha mania de ser engraçado às custas do mau humor do colega. O Ernesto ficou puto quando o Alfredão colocou nele o apelido de TPM. "Chegou o TPM!". "Não esquece dos relatórios, TPM!". “Já almoçou, TPM?". A repartição caia na gargalhada e o TPM ficava puto. O que justificava o apelido.

Ele bem que tentava se controlar, mas o povo do trabalho não deixava. Volta e meia, o Ernesto explodia: “Vamos ter respeito, porra!”, e aí todo mundo fazia "huuuu" porque ninguém levava aquelas explosões à sério. E era nessa falta de respeito que o Ernesto pensava todo dia de manhã, enquanto seu carro ficava parado no congestionamento. O congestionamento deixava Ernesto bem puto e de vez em quando ele esmurrava a direção, que inclusive trazia algumas marcas das suas crises nervosas. Olhando bem de perto, era possível ver as marcas das unhas que se cravavam no volante com toda a força cada vez que o carro parava num cruzamento. A irritação era maior quando Ernesto estava atrasado, o que não era raro acontecer. Como ele invariavelmente brigava com a esposa pela manhã, muitas vezes acabava perdendo a hora. Numa das brigas matinais, Ernesto chutou a poltrona da casa e quebrou o dedo mínimo do pé. Teve que faltar ao trabalho pra ir ao Pronto-Socorro e no dia seguinte, quando chegou com o pé engessado ao trabalho, recebeu do Alfredão um xarope de Maracujina embrulhado pra presente. A repartição explodiu em gargalhadas e o Ernesto, sem nenhum senso de humor, mandou o Alfredão à merda, motivando um novo e irritante "huuuuu". O Alfredão não era nada original nas suas piadas construídas às custas do azedume do colega, por isso desde esse dia, volta e meia ele deixava o xarope sobre a mesa de Ernesto, gerando sempre o mesmo efeito: gargalhadas de uns e irritação no outro.

E não adiantava reclamar pro chefe, porque o chefe, um tipo careca e fanho, que poderia ser alvo de piadas muito mais engraçadas mas que estava imune à verve corrosiva do Alfredão justamente por ser o chefe, era um dos que mais se divertia com o mal humor do Ernesto. Na realidade, olhando de perto, poderia se dizer que o nervosismo daquele homem salvava o dia daquela dezena de funcionários infelizes que tinham um cotidiano de trabalho infeliz, aliviado somente nos momentos em que tripudiavam do pobre TPM.

Foi quando começaram as demissões. Primeiro, surgiu um boato de conteção de despesas. O Seu Olívio, que tinha sessenta e sete anos e trabalhava na contabilidade foi o primeiro a ser mandado embora. Ninguém se alarmou tanto, mesmo porque o chefe fez questão de dizer, com a sua voz fanha, que se tratava de uma aposentadoria compulsória. Fizeram até uma festinha pro seu Olívio no seu último dia. Cantaram parabéns e ofereceram uma plaquinha de metal. O Alfredão, animadíssimo, aproveitou a ocasião pra distribuir outros prêmios pro resto dos colegas. A dona Isaura, recepcionista solteirona, recebeu um pacote de camisinhas.

-Nunca se sabe quando um milagre pode acontecer!, disse o Alfredão, em voz alta.

Mas ninguém riu. A dona Isaura, discretamente, saiu pra chorar no banheiro enquanto o chefe tossia disfarçando o constrangimento. Alfredão não se fez de rogado e, na carona das cinco latinhas de cerveja consumidas durante a confraternização, seguiu com aquela premiação improvisada.

-Pro Marcondes, esse pacote de drops, que ninguém agüenta o bafo de onça!

O Marcondes nem foi receber o prêmio. Ninguém achava que o Marcondes tinha mau-hálito e de novo, não foi ouvido um único risinho, nem do Chico, o office-boy que fumava maconha escondido na garagem e que por isso normalmente ria de qualquer coisa. A premiação seguiu num festival de constrangimento e o Alfredo sentia que a platéia lhe escapava irremediavelmente. Olhou para o chefe e percebeu que estava a ponto ser expulso de cima daquela mesa que servia de palco improvisado. Era preciso uma grande e certeira piada final. E num misto de euforia, embriaguez e desespero, o Alfredão anunciou:

-Tem o prêmio do TPM!

Como mágica, a platéia se acendeu. Era como se, num espetáculo mambembe, fosse anunciada a presença do Tom Cavalcanti como convidado especial. E as gargalhadas explodiram, terríveis e infalíveis quando o Alfredão sacou, mais uma vez, o xarope de Maracujina. E enquanto o chefe passava o lenço por cima da careca que sempre suava quando ele tinha acessos de riso, o Ernesto, claro, ficava bem puto, de novo.

Na semana seguinte, a dona Isaura apareceu chorando, encostada no bebedouro. Nada a ver com as camisinhas. Ela tinha sido mandada embora e dessa vez não houve festinha de despedida. Dez dias depois, foi a vez do Almeida e logo na seqüência, quem foi pra rua foi o Chico, que inclusive estava chapado quando recebeu a notícia e por isso apareceu no dia seguinte, como se nada tivesse acontecido. O clima estava péssimo na repartição. O chefe fumava cada vez mais dentro da sua sala e no meio daquela névoa todos os funcionários imaginavam a suas respectivas batatas assando. O Ernesto sabia que seria o próximo. Era o mais impopular, ninguém gostava dele e ele não gostava de ninguém. Ernesto tinha bons motivos pra ficar, mais uma vez, puto da vida. Um funcionário exemplar como ele, em vias de ser mandado embora por pura falta de carisma.

Mas estranhamente, uma sensação de paz começou a se apoderar do seu coração. No final das contas, fora o fato de ter que aturar a mulher o dia inteiro, ficar desempregado não era uma coisa que o afligia tanto. Ele pensou numa nova existência, simples e feliz, numa vida no interior, junto dos bois e das vacas, respirando ar puro enquanto via o sol nascer. E calculou que o FGTS daria pra comprar o terreno em Bragança e que a sua mulher, aquela chata, não iria achar ruim mudar de vida, mesmo porque a vida dela também era uma merda. E quando o Alcides do RH puxou o Ernesto de canto e segredou que o chefe havia solicitado a sua papelada, (“Vai se preparando, rapaz...”) o Ernesto ficou praticamente eufórico.

Nesse dia, pela primeira vez, Ernesto voltou pra casa assobiando no carro e nem ficou puto quando o congestionamento se estendeu à sua frente, tal qual as artérias entupidas de um safenado. Nos dias que se seguiram, Ernesto era um poço de tranqüilidade e bom humor. Todo mundo estranhava aquele comportamento, que foi inclusive interpretado por alguns como uma ironia perversa diante da fossa generalizada que havia se instalado na repartição desde o início das demissões compulsórias. Ernesto cantarolava e não se abalou nem no dia em que o Alfredão, num último esforço pra descontrair o ambiente, escondeu o papel higiênico do banheiro.

-E agora, Alfredão? Vou ter que limpar a bunda com o teu último relatório?, ele disse alegremente, pra estranhamento e frustração de todos os funcionários que esperavam uma nova crise de nervos pra se divertirem um pouquinho.

E quando o chefe chamou o Ernesto e o Alfredão pra sua sala enevoada, o Ernesto levantou-se da cadeira como um adolescente que recebe entrada VIP num puteiro. Olhou pro Alfredão, que nos últimos dias não fazia mais nenhuma piada justamente porque estava apavorado pela perspectiva de ser também mandado embora e pensou que seria idílico nunca mais ver aquele sujeito na sua vida. A repartição silenciou enquanto Ernesto e Alfredão se dirigiam à chefia. E todo mundo estranhou aquele sorriso lotado de tártaro que Ernesto ostentava, num claro contraste com os olhos marejados daquele outro funcionário, outrora tão piadista.

-Senta aí os dois, disse o chefe com cara soturna.

Ernesto e Alfredão obedeceram. O chefe foi direto ao assunto com aquela voz fanha, que em outros tempos deixava o Ernesto muito irritado.

-Como vocês sabem, o escritório tá em crise e eu preciso fazer mais uma demissão.

Alfredão começou a suar descontroladamente. Já tinha na manga o discurso do humilhado. As fotos dos filhos estavam no bolso. Ele as mostraria pro chefe em meio ao choro convulsivo. Tinha passado dos quarenta, onde iria achar um emprego como aquele, e etc...

-Chamei vocês aqui porque eu vou demitir o Marcondes.

Os dois funcionários se entreolharam. Alfredão trazia no semblante uma indisfarçável expressão de alívio, mas o Ernesto, meio puto, prontamente perguntou:

-Por que o Marcondes?

-Nada pessoal. O Marcondes é uma besta tão grande quanto qualquer um de vocês. Pesou no final das contas aquela piada do Alfredão sobre o mau-hálito. De fato, o Marcondes tem um bafo filho da puta. Isso foi decisivo na minha decisão.

Alfredão não sentia culpa nenhuma. Tinha dois filhos e uma ex-mulher que fazia da sua vida um inferno com aquela história de pensão alimentícia todo mês.

-E por que o senhor nos chamou aqui?, perguntou Ernesto.

-Porque eu tô de saco cheio desse clima de merda. E daí que estamos em crise? A vida continua! Eu quero festinha de despedida pro Marcondes e quero ver, de novo, o Alfredão tripudiando do seu mau-humor. Vai comprar a Maracujina, Alfredão. Entrega pro Ernesto. E você, Ernesto, quero te ver uma pimenta, porra! Como nos velhos tempos! Você anda cantarolando até quando tem que fazer hora extra em véspera de feriado! Que porra é essa? Cadê aquele mau-humor que deixava todo mundo feliz aqui dentro? Que que eu posso fazer pra te deixar putinho de novo?

-Reduz o salário dele, respondeu prontamente o Alfredão.

-Cala a boca, idiota!, retrucou ainda sob o impacto da indignação o Ernesto.

-Boa, boa, vibrava o chefe, enxugando a careca em meio a uma gargalhada. Esse tipo de relação que vocês estabeleceram é importantíssima no ambiente corporativo. Um é a escada pro humor do outro. Comédia sempre foi fundamental, porra! Não leva a mal, Ernesto. É pelo bem comum e pro seu próprio bem, porque desse jeito você garante o seu emprego, compreendeu?

Ernesto se levantou, quase sem ar. De todas as humilhações colecionadas ao longo daqueles anos, aquela era a maior. De repente, tudo ficou claro. Ele era o palhaço involuntário daquela equipe, que fazia com o Alfredão a dupla cômica do escritório! Todos os seus apelos por dignidade e respeito eram motivos de chacota. O chefe era sempre o primeiro a rir. E agora seria o primeiro a apanhar. Porque naquele momento, um simples esporro seria motivo de riso, outra vez.

Os funcionários invadiram a sala atraídos pelos gritos de dor de Alfredão. Ele tentava inutilmente estancar o sangue que jorrava do seu nariz enquanto o chefe jazia desacordado no chão. Ernesto foi correndo até a garagem, pegou o seu carro e saiu pela última vez do prédio. Sentia-se liberto e vingado, mesmo que a custa da violência, que era uma coisa que normalmente o irritava. Seu coração estava aos piparotes e ainda ao volante, ele telefonou pra mulher anunciando que ela poderia fazer as malas porque os dois iriam pra Bragança naquele mesmo dia. Estava feliz e eufórico. A mulher, no entanto, cortou-lhe o barato, dizendo que naquela noite a sua sogra era esperada pro jantar.

E foi nesse momento que Ernesto teve o infarto.

Leonardo de Faria Cortez
Enviado por Leonardo de Faria Cortez em 10/09/2008
Código do texto: T1170402
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