Cascabulho

Eu estava numa depressão da porra, me sentindo um cascabulho de merda e dando graças a Deus porque, fora isso, estava tudo bem. Era uma dessas tardes quentes de verão, onde qualquer esforço físico como levantar da cama te faz suar em bicas, de modo que eu estava deitado, usufruindo dos benefícios do ventinho gerado pelo meu ventilador mequetrefe. E pensava como a minha vida era sem sentido e como toda aquela fossa era reflexo do festival de erros que tinha começado a partir do momento que eu dei os meus primeiros passos com um ano e meio de idade e andei descalço na direção de um formigueiro, sem saber que eu era alérgico à picada de inseto. Infelizmente, depois desse incidente eu ainda dei muitos tropeços na vida. Muitos com conseqüências mais desgraçadas do que um ataque hipoalergênico.

A cagada mais recente foi ter esquecido do aniversário da Vanessinha. Justamente da Vanessinha, minha namorada mais atenciosa, que me promoveu uma festa-surpresa quando eu fiz trinta anos, muito embora ela tenha se confundido com a data, aparecendo no dia seguinte gritando “surpresa!” enquanto eu guardava os restos do bolo numa tapeaure. Lembro dessa festinha como se ela tivesse acontecido mês passado, o que não é estranho, porque foi exatamente no mês passado que a festinha aconteceu. Poucos convidados e muitas ausências. Meus pais deram uma passadinha rápida porque disseram que estavam atrasados pra pagar uma promessa em Aparecida do Norte, o que foi uma desculpa esquisita, já que os dois não acreditam em Deus. Dos amigos, o Bocomoco foi o único que justificou a ausência, num telegrama onde ele dizia que não poderia comparecer porque certamente estaria doente no dia do meu aniversário. Desconfiei que aquilo era conversa pra boi dormir, mas mesmo assim respondi dizendo que não havia problema e que ele seria bem vindo nas festas-surpresas dos anos posteriores, desde que ele não mandasse telegramas sobre a festa-surpresa na semana anterior à festa surpresa porque esse tipo de atitude normalmente estraga a surpresa de uma festa- surpresa.

Ok, sempre fui impopular e isso não é algo que me incomode, a não ser quando eu apanho em função disso. Desde o colégio, eu sempre paguei o preço por falar aquilo que me vinha na cabeça. No começo, eu achava que esse aspecto autêntico da minha personalidade incomodava os hipócritas de plantão. Depois, a maturidade me fez perceber que eu só falo bobagem, mesmo. A minha relação com as mulheres nunca foi fácil. Nunca fui um Alan Delon e além disso, recentemente um endocrinologista confirmou que, graças à um problema gástrico, eu tenho um bafo filho-da-puta, o que eu já suspeitava desde que recebi de alguns colegas da faculdade o apelido de “Boca de Bueiro”. Foi por isso que eu comecei a comprar drops todos os dias no supermercado, acreditando que o consumo desse produto poderia me dar maiores chances com o sexo feminino. E eu estava certo. A menina do caixa me deu bola. Seu nome? Vanessinha.

Cento e doze quilos. Um mundo de prazeres em cada dobra daquele corpo que eu nunca cansei de desejar. Com a Vanessinha eu aprendi tudo na cama. Das posições mais libidinosas até coisas mais simples e singelas de um relacionamento amoroso, como dormir agarradinho com ela, o que eu fazia quase todas as noites com a ajuda de um snorkel. Aquela mulher foi na cama uma espécie de mãe pra mim e quando eu disse isso pra ela, inexplicavelmente ganhei um tapa. Foi quando incorporamos a violência nas nossas relações sexuais, o que nos conduziu à noites idílicas e delirantes que terminaram no dia em que eu dei entrada no hospital com um politraumatismo maxilar, ocasionado por um orgasmo múltiplo que a Vanessinha nunca havia experimentado.

Essa era a nossa relação e era nisso tudo em que eu pensava enquanto o meu corpo suado grudava no lençol encardido em função daquele calor do inferno. Erguendo os meus trêmulos dedos em direção ao telefone, disquei mais uma vez, sabendo que, mais uma vez, a ligação cairia na secretária eletrônica e que mais uma vez eu iria implorar por perdão, o que seria mais uma vez inútil porque já fazia duas semanas que eu deixava recados naquela caixa postal e ela nunca retornava, a não ser uma vez, pra dizer pra eu não ligar nunca mais. Foi nesse dia que eu explodi:

-Pô, Vanessinha! É por isso que a gente está terminando? Por causa de um esquecimento de data?

Então, ela enumerou oitenta e cinco itens que faziam de mim o sujeito mais insuportável do planeta. Não lembro de nenhum deles a não ser do setenta e seis, onde ela dizia que eu nunca prestava atenção nas coisas que ela dizia. Depois, ela bateu o telefone na minha cara, me condenando àquela depressão profunda, que eu só havia sentido antes na adolescência, quando fui flagrado pelos meus pais fumando maconha na companhia da Elizete, minha boneca inflável que eu havia comprado pelo telemarketing com o dinheiro da mesada.

Foi quando bateram na porta. Levantei com dificuldade e perguntei quem era. Aquela voz de tenor que eu conhecia tão bem se fez ouvir do outro lado:

-Vanessinha!

Tentei manter o orgulho.

-Vai embora! Você me fez sofrer demais!

Não esperei dois segundos e a porta foi arrombada. E antes que eu pudesse me recuperar do susto, a Vanessinha me agarrou pelos braços e me ergueu a meio metro do chão:

-Chega de profundidade! Nossa relação agora vai ser só carnal!

Com os dentes, ela rasgou meu pijama e me jogou com toda a violência na cama, infelizmente com péssima pontaria, já que fui parar em cima da escrivaninha. Antes de perder os sentidos, eu ainda senti as minhas costelas estalando com o peso da Vanessinha sobre mim. Duas horas depois, eu dava entrava na emergência da Santa Casa com hemorragia interna e algumas fraturas.

Felicíssimo, diga-se de passagem.

Leonardo de Faria Cortez
Enviado por Leonardo de Faria Cortez em 10/09/2008
Código do texto: T1170364
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