E-mail de Mãe

Querida Mara:

Como foi a viagem para Canela? Espero que tenha sido uma delícia. Você e o Agenor mereciam esse descanso depois de tanto estresse no trabalho. Por aqui foi tudo ótimo. Seu filho, Andrézinho se comportou como um anjo e ter cuidado dele nesse final de semana foi um grande prazer. Impressionante como ele se dá bem com o Beto. Os dois brincaram o tempo todo e sabe como é, se nosso filho fica feliz, nós como mães, ficamos felizes também. Devo te dizer que o Andrézinho aparentemente não gostou muito da minha comida (snif), mas a gente sabe como criança às vezes é enjoada pra comer. A propósito, seu filho cometeu uma pequena peraltice que eu, infelizmente, tenho o dever de te comunicar: imagine que o danadinho jogou álcool em cima das bicicletas estacionadas na garagem e provocou com isso um pequeno incêndio. Coisa de criança, sem maiores conseqüências, mas eu sou obrigada a te informar mesmo porque, infelizmente de novo, alguns moradores do condomínio ficaram um pouco aborrecidos e vieram me cobrar o prejuízo. Fiz uma planilha no Excell enumerando os custos da travessura. Depois, você me manda o cheque pelo Andrézinho na escola, tá ok? De resto, espero que esteja tudo bem e de novo, pode contar com essa sua amiga sempre que precisar deixar seu filho com alguém de confiança.

Beijos

Helena

Querida Helena:

Já te agradeci pessoalmente, mas quero aproveitar esse e-mail pra deixar registrado por escrito o quanto eu e o Agenor somos gratos pela sua força. O Andrézinho realmente adora o Beto e ter passado o final de semana na sua companhia fez com que ele praticamente ignorasse o fato de que os pais saíram pra viajar, o que normalmente é motivo de grande crise, já que ele é muito apegado à família. Não se preocupe com essa história do Andrézinho ter estranhado a sua comida. Como a alimentação é muito balanceada aqui em casa, normalmente ele estranha a comida dos outros. Em relação ao episódio do incêndio, acho que temos que conversar com mais calma. O Andrézinho me garantiu que quem jogou o álcool e ateou o fogo não foi ele. Houve inclusive uma sugestão vaga de que teria sido, na realidade, o seu filho o autor do “vandalismo pirotécnico” (rs), mas claro que não podemos nos precipitar nas conclusões, principalmente quando o objeto da investigação é o filho da gente. Vamos com calma, tá amiga? A gente sabe como são essas crianças e acima de tudo, acredito que temos que zelar pela amizade que une as nossas duas famílias em função da proximidade entre nossos filhos. A propósito, abri a sua planilha no Excell e posso te dizer que achei estranho alguns valores ali mencionados. Ou você acha realmente que um selim vale 250 reais?

Beijos

Mara

Querida Mara:

Obrigado pelos agradecimentos, mas eles são desnecessários uma vez que eu já te disse que é sempre um prazer ficar com o Andrézinho, mesmo que ele seja uma criança realmente muito enjoada pra comer. Imagine que o danado chegou a atirar um brócolis pela janela na hora do jantar, dizendo que não ia comer mato porque não era cabrito. Essas crianças... De qualquer modo, pode ter certeza que a comida daqui de casa é de primeira, mesmo porque a minha mãe fez curso de nutrição e desde sempre é a digníssima dona Neusa que fiscaliza o nosso cardápio (rs). Em relação às insinuações do Andrézinho, devo alertá-la, como mãe, que seu filho infelizmente está mentindo. Eu não tenho nada a ver com a educação que você dispensa em sua casa, mas vou te dar um toque: o Beto costuma ser punido imediatamente no ato da mentira, justamente para coibir o ato mentiroso que na adolescência pode trazer danos posteriores muito mais graves, e nessa hora eu estou falando especificamente de sexo e drogas, se é que você me entende. O fato é que realmente foi o Andrézinho que ateou fogo nas bicicletas, depois de uma atitude igualmente reprovável que eu omiti no meu último e-mail na esperança, aparentemente vã, de que poderíamos resolver esse assunto sem maiores polêmicas: pois bem, o que você não sabe é que o Andrézinho roubou o litro de alcóol que foi jogado em cima das bicicletas. Eu, inclusive, paguei o prejuízo do meu bolso ao dono do mercadinho aqui do condomínio, o seu Mario, enquanto ele gritava em altos brados que iria chamar a polícia. Como você vê, amiga, eu tive que cortar um dobrado em função do seu filho e não estou pedindo nada em troca a não ser que você deposite o valor do prejuízo na minha conta. A propósito, o selim realmente custa 250 reais por se tratar de uma peça importada. Na garagem do nosso predio só tem bicicleta importada, sabe como é. E de resto, espero que esteja tudo bem.

Um beijo

Helena

Cara Helena:

Infelizmente, não está tudo bem. Muito me espantou o conteúdo da sua última mensagem, escrita justamente num momento em que a minha simpatia por você já suplantava a péssima primeira impressão que tive quando nos conhecemos na comissão organizadora da festa junina da escola. Ouvir que o filho é ladrão e mentiroso sabendo que ele é inocente é algo que convenhamos, deixaria qualquer mãe possessa. Em relação ao brócolis, meu filho afirma que só atirou o vegetal pela janela porque o mesmo se encontrava, segundo sua descrição, inapropriado para o consumo. Ou você acha que é normal que o aspecto e o sabor de um brócolis se assemelhe ao de um carvão? Em relação ao incêndio, o Andrézinho garantiu que quem roubou o álcool e ateou fogo nas bicicletas foi o seu filho endiabrado, que inclusive ignorou os apelos insistentes que o Andrézinho empreendeu para que o vandalismo não fosse realizado. Nessa hora, segundo o meu filho, o seu distinto rebento o chamou de viadinho e lhe presenteou com um tapa na cabeça. Isso foi algo bastante desagradável pro Andrézinho que já convalescia de uma contundente dor de barriga, provavelmente motivada pela “alimentação balanceada” que a Dona Neusa providencia nas refeições da sua família. Isso posto, quero te dizer que não vou pagar um tostão desse prejuízo e espero, honestamente, não ser mais aborrecida por esse assunto, que da minha parte, já está encerrado.

Atenciosamente

Mara

PS. Pesquisei num site de artigos para bicicletas importadas e o selim mais caro que encontrei custava 180 reais, o que reforça a minha teoria de que quem confeccionou a planilha de prejuízos agiu de má-fé. O que pra mim pouco importa, já que a referida planilha repousa em pedaços no cesto de lixo do meu escritório.

Mara:

Fiquei um pouco surpresa com o seu último e-mail. Ele está repleto de inverdades e falsas insinuações que me deixaram no mínimo puta da vida, se assim posso me expressar. Pra começo de conversa, se ao colocar entre aspas a expressão “alimentação balanceada” você insinua que o que ocorre aqui em casa é justamente o contrário, fique sabendo você que está redondamente enganada. Como eu te disse, minha mãe fez nutrição e não existe uma única refeição servida à nossa mesa que não seja um pouporri completo de vitaminas e calorias apropriadas. O brócolis não estava com gosto de carvão e se a aparência do vegetal estava escura é por causa do tempero indiano que a minha mãe coloca depois do cozimento. Enfim, não tenho que te dar satisfação sobre a nossa orientação nutricional, mesmo porque até onde eu sei, quem entope uma criança com porcarias é você, já que não raras vezes o Beto me questiona sobre o fato dele não poder levar na lancheira itens como torresmo e bala de goma, como faz, segundo ele, o seu filho sistematicamente. Em relação às nossas desavenças na comissão organizadora, devo lembrá-la que não somente eu , mas todas as mães foram contra a sua sugestão de colocar um pau-de-sebo como uma das brincadeiras da festa junina em função da periculosidade que esse tipo de entretenimento poderia representar às nossas crianças. Devo dizer também que não só eu como todas as mães achamos inoportuna a sua piadinha na ocasião, quando você disse, em meio às suas solitárias gargalhadas, que pau-de-sebo era uma brincadeira infantil e não um artigo de sex-shop. É bom lembrar que a nossa escola é uma instituição católica e que os pais devem zelar para que os bons exemplos e o linguajar decente partam principalmente de casa. Mas tudo isso não é nada comparado à descrição mentirosa do seu filho Andrézinho sobre o episódio do incêndio. Segundo testemunhas oculares, dentre as quais eu posso destacar o seu Hamilton, o zelador de plantão, foi o seu filho quem ateou o fogo depois de roubar a garrafa de álcool cujo valor está especificado na planilha de prejuízos que estou te reenviando já que você inadvertidamente rasgou a dita cuja. Além disso, me causou grande estranheza o Andrézinho ter dito que foi agredido física e verbalmente pelo Beto, quando na verdade o que aconteceu foi algo muito pior, que eu vou deixar pro seu filho lhe contar pessoalmente.

Grata pela atenção

Helena

Helena

Segundo o Andrézinho, a comida servida na sua casa é uma lavagem. E eu acredito nele, lamento informar. E até onde eu lembro, a minha piada do sex-shop recebeu sorrisos de aprovação e descontraiu um pouco aquele ambiente de merda criado por mães paranóicas que, como você, acham que um pau-de-sebo pode ser um perigo pra vida dos nossos filhos. O Andrézinho nunca levou torresmo na lancheira e em relação às balas de goma, a ignorância do seu filho não o fez perceber que, na verdade, o que o Andrézinho leva na lancheira são balas de alga marinha, ricas em colágeno e vitamina E. Semana passada, inclusive, seu filho roubou as balas do Andrézinho, que na ocasião levou outro tapa na testa. Alias, pelo visto, seu filho bate sistematicamente no meu e prometo que levarei esse fato ao conhecimento do conselho tutelar. E finalmente, em relação ao que aconteceu de “muito pior” tenho certeza que você se refere ao tamanho do meu aborrecimento com toda essa mal-fadada história. Chega, Helena! Não me escreva mais!

Mara

Mara:

Vou escrever! Já estou escrevendo! Eu faço o que eu quiser que o computador é meu! Sua piada foi chula e lavagem deve ter sido o que você serviu de jantar na festa do seu casamento! Isso posto, é importante que você saiba que o ocorreu antes do incêndio foi algo que eu simplesmente não iria revelar por uma questão de sensibilidade, mas que você me obriga em função da sua descrença no caráter deturpado do seu filho Andrézinho. O seu pequeno marginal ofereceu um cigarro de maconha pro meu filho Beto. Quando o Beto recusou, porque filho meu foi criado pra recusar drogas, o Andrézinho aparentemente teve um surto, roubando em seguida o álcool com as conseqüências que todos nós já conhecemos. Desculpe-me falar assim na lata, mas seu filho de doze anos é um drogado arruaceiro que eu espero que nunca mais receber na minha casa. No mais, devo dizer que o selim, de fato, custa 180 reais, desde que seja vendido sem a base de titânio que nunca sai por menos de 100 e que se revela um item obrigatório quando falamos nesse tipo de acessório. Ou seja, quando eu te cobro 250, na realidade, estou te oferecendo uma pechincha, sua muquirana. Aguardo o depósito do valor estipulado na minha conta, antes que eu seja obrigada a acrescentar os juros na virada do mês vigente.

Atenciosamente

Helena

PS. Não me escreva mais! Não irei responder!

Sua Ordinária:

Pra começo de conversa maconheiro é o seu irmão que foi preso por tráfico de drogas como é público e notório na nossa comunidade escolar. E se você não achou graça na piadinha do pau-de-sebo é porque não só você, como boa parte das mulheres que faziam parte daquela comissão são reprimidas sexualmente. Talvez tenha sido por isso que o seu ex-marido teve aquele caso público e notório com a ex-professora de trabalhos manuais. Mas isso não é o mais importante. O que eu gostaria de lhe comunicar é que eu estou acionando os meus advogados para que você seja processada judicialmente por calúnia e difamação. Chamar de maconheiro e incendiário um menino que mal sabe como um funciona um isqueiro é extrapolar todos os limites do aceitável e o mínimo que eu poderei exigir do conselho disciplinar da escola é a expulsão do seu filho Beto, que inclusive deve ter roubado as balas de alga marinha do Andrézinho numa crise de larica. Sim! Larica! Porque, com certeza, é seu filho o drogado dessa história. No mais, devo dizer que o Andrézinho até hoje está com desarranjos intestinais devido às porcarias que você ofereceu a ele durante a mal-fadada estadia na sua casa. Helena, você tentou envenenar o meu filho? Eu te boto na cadeia, sua vagabunda!

Mara

PS. Estou enviando pelo correio uma barra de titânio pra você colocar onde bem entender, se é que você me entende...

Sua Vaca:

Recebi sua barra de titânio e estou guardando a referida pra acertar na sua cabeça na primeira oportunidade. Respondendo a sua pergunta, não, eu não envenenei o seu filho afeminado muito embora eu confesse ter desejado a sua morte principalmente quando ele jogou o brócolis pela janela. Seu filho é um mala sem alça, que não para um minuto de falar inconveniências e que certamente merece cada porrada que leva do Beto. Em relação ao meu irmão, ele pode ter sido preso por tráfico de drogas mas isso não é nada comparado ao fato de que seu tio foi afastado do emprego por ter molestado a faxineira do escritório, como é público e notório. É público e notório também que você possui um primo homossexual e uma avó demente. Que sua empregada é cleptomaníaca e que sua mãe fede a queijo. E se meu ex-marido teve um caso com a ex-professora de trabalhos manuais, eu devo te dizer que o Agenor vem tendo um caso extra-conjugal comigo há alguns meses, o que motivava uma certa crise de consciência no meu espírito até que essa nossa nada saudável troca de e-mails me fez perceber que, de fato, você merece ser chifrada de maneira implacável. No mais, quem vai te acionar judicialmente sou para que você pague não só o prejuízo das bicicletas como também uma indenização monstro por danos morais. Vou te arrancar as calças, Mara! E falando em calças, avisa o Agenor que ele esqueceu as ceroulas aqui em casa na semana passada, ah, ah, ah, ah, ah, ah, ah, ah...

Helena

NOTA DO EDITOR:

A comunicação foi interrompida aqui. Dias depois, Helena foi acidentalmente atropelada por Mara no momento em que as duas pegavam os filhos na porta da escola. O carro de Mara acabou caindo numa valeta e as duas foram parar no hospital. A direção da escola está estudando ações severas para acabar de vez com as desavenças. A primeira medida já foi tomada: as duas senhoras estão excluídas da comissão organizadora da festa junina do ano que vem.

Leonardo de Faria Cortez
Enviado por Leonardo de Faria Cortez em 07/09/2008
Código do texto: T1166489
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