O Filho-Problema
Se hoje eu conheci o amor e vivo em serenidade ao lado de Denise, saibam que nem sempre foi assim. Até os quarenta anos eu fui sustentado pela minha mãe. Nunca achei que aquilo fosse um grande problema, mas a minha mãe se aborrecia um bocado e as minhas irmãs me enchiam o saco. Na época, eu dizia que não tinha me curvado a nenhuma imposição social. Emprego, casamento, filhos, contas, documentos. Eu tinha escapado de tudo aquilo. Então, as minhas irmãs me lembravam que eu também tinha escapado da mendicância, mas só porque a minha mãe me sustentava. Claro que aquela vagabundagem tinha seu preço. Minha mãe sempre me atormentou com uma porrada de conselhos e de vez em quando eu apanhava. Nos últimos anos não doía muito, porque minha mãe depois de velha já não conseguia bater com tanta força. Mas quando eu era adolescente, mamãe era bem mais agressiva. Um dia, ela se encheu daquele meu jeito relapso e disse que iria me expulsar de casa. Antes, no entanto, me obrigou a tirar o RG. Ela tinha medo que eu pudesse morrer atropelado e fosse enterrado como indigênte. Depois ela desistiu daquela idéia maluca e me expulsou de casa sem o RG mesmo.
Pobre mamãe. Durante muito tempo, ela usou de todas as estratégias pra tentar fazer de mim um homem decente. Quando eu fiz dezoito anos, ela intercedeu junto ao tio Olavo, que era major, pra que eu fosse convocado pelo exercíto. Nunca perdoei mamãe por aquela intromissão na minha vida. Eu era jovem e cheio de energia, tinha um circulo de amizades fortalecido e fora o fato de eu ter quebrado quatorze ossos durante uma tentativa de pichar um trem em movimento montado na minha mobilete, tudo se encaminhava muito bem. Infelizmente, ela cismou que a disciplina do exército poderia ser benéfica e meses depois, eu estava na caserna. Pra sorte minha, logo depois me diagnosticaram como louco, o que garantiu minha baixa prematura. Pra azar do exército, isso só aconteceu depois que eu explodi a guarita do quartel.
O detalhe é que eu só estava na guarita porque havia sido punido injustamente. Na noite anterior, meus colegas de caserna esconderam o meus óculos de grau e no dia seguinte, eu acertei sem querer o sargento Oliveira na cabeça com um tiro de escopeta durante a prova de tiro ao alvo. Por sorte, o sargento estava de capacete, o que não impediu que ele ficasse um pouco aborrecido com o incidente. A minha punição foi fazer a guarda e naquela noite, ainda sem meus óculos, fui acender meu cigarro e acabei confundindo a minha granada de bolso com o meu isqueiro. Quando percebi a cagada, ao invés de jogar a granada longe, eu preferi me atirar pessoalmente pela janela e deixar a granada lá dentro. Escapei com vida, mas a junta psiquiátriaca acabou me diagnosticando como psicótico.
Eu nunca me considerei psicótico. Talvez eu seja simplesmente um cara que se aborrece muito rápido com o que as pessoas normais costumam tolerar com resignação na vida cotidiana . Problemas triviais como filas, congestionamentos, tubos de pasta de dente entupidos e rolos de papel higiênico no fim costumam alterar de maneira sensível o meu frágil equilíbrio emocional. Por exemplo, um dia eu estava atrasado pro meu curso de artesanato e me vi diante de um baita engarrafamento no meio de uma avenida movimentada. Depois de morder o volante na tentativa vã de tentar me acalmar, acabei me descontrolando e comecei a engatar a ré e a primeira marcha seguidamente naquilo que me pareceu ser uma boa estratégia para abrir espaço entre os carros. Quando o motor explodiu e a senhora do fusca da frente teve um enfarto, a polícia apareceu e nessa hora eu percebi que tinha me excedido um pouco. Na delegacia, eu apresentei o meu atestado psiquiátrico e o delegado até que foi simpático. “Quem nunca teve vontade de fazer o que esse moleque fez?”, ele disse, com um sorriso compreensivo que não saiu do seu rosto mesmo durante a sessão de pontapés desferidos na minha barriga antes que eu fosse jogado dentro de uma cela imunda. Minha mãe apareceu no mesmo dia pra pagar a fiança, mas o delegado a convenceu que duas semaninhas de confinamento, limpando vaso sanitário com escova de dentes, poderiam me ensinar muito sobre a profissão de faxineiro. Esperançosa diante do novo horizonte profissional que se desenhava aos meus pés, minha mãe concordou em me deixar no xadrez por mais um tempinho. Infelizmente, a minha estadia foi interrompida por uma rebelião onde acabei sendo feito de refém juntamente com o faxineiro adjunto. Quando íamos ser executados com uma afiada colher de plástico, bombas de efeito moral foram lançadas pela tropa de choque e o movimento foi debelado. Ao voltar pra casa, ruídos banais como o canto dos passarinhos e o tique-taque do relógio de parede me causavam sobressaltos. Numa manhã, mamãe deu um espirro e em consequência do susto, eu tive um princípio de derrame. Demorei cinco meses pra voltar a falar e quando um avião passava no céu, inexplicavelmente eu babava e chamava pela Tia Adelaide, o que era estranho, porque eu nunca tive uma tia chamada Adelaide.
Ok, eu confesso. Eu era um sujeito nervoso, mas agora tudo passou, graças à Denise. Ela me compreende e sabe que eu só era daquele jeito porque a minha família era um poço de conflitos. Meu pai abandonou a minha mãe cinco vezes. Nas quatro primeiras, ela o trouxe de volta pra casa à força. Na quinta, ela foi buscar papai e trouxe um carteiro por engano no lugar. Pra não ficar chato, o carteiro morou seis meses conosco. Durante as festas de família, as brigas sempre foram homéricas. No natal, normalmente os presentes eram arremessados com violência uns sobre os outros durante as nossas crises de fúria. Pra minha sorte, as minhas irmãs sempre me presenteavam com cuecas e por isso eu nunca me machuquei. No entanto, ano passado, eu comprei uma panela de pressão pra mais velha e o resultado é que ela amanheceu o dia no hospital.
Na juventude, eu me tratei com uma psicóloga que mexia com os chacras. Depois de quatro sessões, ela mexeu no chacra errado e o resultado é que acabei indo pra cama com ela. Namorar a minha própria psicóloga não fez muito bem pra minha psiquê. Ela sempre dizia que os meus sentimentos eram uma questão de transferência, e talvez por isso ela nunca tenha se oferecido pra rachar uma única conta nos restaurantes que a gente frequentava. E olha que ela comia pra burro e sempre pedia a sobremesa. Numa das nossas conversas mais duras, ela me disse que o nosso relacionamento era fruto de um delírio obsessivo da minha parte. Eu disse que era difícil acreditar naquilo com ela pelada na minha frente naquele quarto de motel. Pensando bem, a minha psicóloga era definitivamente uma louca e a prova maior disso é que semanas depois ela me deu alta e terminou comigo na mesma sessão. Desesperado de amor e precisando com urgência de pelo menos mais alguns florais, eu quebrei todos os cristais energéticos do consultório, o que provocou uma descompensação cósmica nos meus chacras e me conduziu ao coma. Pelo menos foi o que a terapeuta disse que aconteceu à polícia. Depois eu descobri a verdade: pra conter a minha crise de fúria, ela havia me acertado na nuca com o pé do divã.
Depois disso, eu vaguei por aí, trabalhando de vez em quando e sendo demitido sempre. Claro que isso foi me deprimindo e numa manhã de inverno, depois de agredir o meu dentista com o sugador de saliva, acabei sendo preso de novo. Quando saí da cadeia, decidi que não ia mais arrumar nenhuma confusão na rua, o que consegui por quase um ano, período em que não saí nem uma vez de casa. Até o dia em que a minha mãe escorregou no banheiro e foi parar no hospital. Lá, o médico disse que ela precisava de uma atividade física e sugeriu um curso de natação geriátrica. Como as minhas irmãs eram ocupadíssimas, coube a mim a tarefa de levá-la, todas as terças, pra sua atividade física. E foi lá que eu conheci Denise, que trabalhava na escola de natação como segurança em tempo integral. E enquanto mamãe boiava nas águas mornas da aula de hidroginástica, eu boiava nas ondas do amor cada vez que Denise brigava comigo, ora porque eu tinha estacionado o carro do jeito errado, ora porque eu deixava a cadeira de rodas de mamãe no meio do corredor de passagem do vestiário feminino. Eu fazia de propósito, eu assumo. Amava as broncas da Denise. Ansiava pela fúria daquela mulher durante toda a semana e confesso, não sem uma ponta de vergonha, que no dia em que mamãe acordou especialmente indisposta e manifestou um desejo severo de não comparecer à aula, eu a levei à força para a escola, só pra ver Denise e levar alguns esporros. Foi nesse dia que mamãe teve um colapso e ficou boiando na piscina durante uns três minutos até ser socorrida pelo professor que durante algum tempo achou que ela estivesse brincando de se afogar pra divertir as amigas. Mamãe ficou quase um mês no hospital, período em que me matriculei na natação somente por Denise. E antes de uma aula, quando Denise ameaçou me bater porque eu me recusava a colocar a toquinha, eu a beijei com sofreguidão. Levei um soco na boca na sequência, mas a parte boa é que dois meses depois, eu estava casado com ela. A parte ruim é que mamãe não compareceu à cerimônia do casamento por estar na UTI. A parte boa é que três semanas depois, ela teve alta. A parte ruim é que mamãe não pode ficar sozinha e agora ela mora comigo e com Denise. As minhas irmãs, de vez em quando, apareciam pra fazer visita e a parte boa é que a Denise se encheu do mau-humor das mocreias e proibiu as duas de entrarem na nossa casa.
A parte ruim é que se eu tomo uma cervejinha com os amigos, ela faz a mesma coisa comigo.