A Proposta
Na minha quitinete, o silêncio era sepulcral. Naquele horário, normalmente eu escutava rock in roll, deitado no meu colchão infestado de pulgas, enquanto meu estômago combalido se esforçava pra digerir as porcarias da rua que eu normalmente como na hora do almoço. Infelizmente, a luz tinha sido cortada e por falta de dinheiro eu não almoçava há dois dias. Deve ter sido por isso que quando eu me levantei pra atender o telefone a minha pressão caiu, eu cambaleei pro lado e conseqüentemente bati a cabeça na quina da mesa. Contendo com as mãos o sangue que teimava em não estancar, atendi a chamada, ligeiramente intrigado, já que há alguns meses a linha estava cortada por falta de pagamento.
-Jota Oliveira?
A voz do outro lado da linha parecia familiar. De início, pensei que fosse mamãe, mas depois lembrei que ela já tinha morrido havia seis anos. O sangue jorrava em cataratas pelo meu rosto, mas ainda assim tentei manter a concentração no telefonema.
-Sabe quem tá falando?, a voz me perguntava.
-Mãe?
-Não, idiota. É o Alípio!
Meu semblante se iluminou. Primeiro, pelo alívio de não ser mamãe. Ela costumava ligar com alguma freqüência pra me chamar de idiota e eu nunca imaginei que algo simples como a morte pudesse fazê-la abandonar hábitos tão enraizados. Segundo, porque o Alípio sempre aparecia com alguma proposta de trabalho e eu definitivamente precisava abrir mão da minha dieta compulsória. Normalmente todas as propostas do Alípio eram bastante indignas. Lembro quando ele me contratou pra escrever discurso de homenagem a defunto pra ser lido em velório. A idéia parecia boa. A família descrevia pra nossa empresa o que tinha sido a vida do falecido e eu redigia, com todo o meu talento dramatúrgico, um discurso que era lido ao lado do caixão por algum parente próximo que assumia a autoria do texto. O negócio prosperou de maneira salutar durante algum tempo até que eu resolvi me desafiar artisticamente e comecei a inserir nos discursos alguns palavrões e críticas à Igreja Católica numa iniciativa que, obviamente, não foi muito bem recebida pelas viúvas em geral. O Alípio me demitiu da função, mas sempre lembrava de mim na hora em que aparecia algum cambalacho que cobrasse a figura de um homem das letras como eu. Eventualmente, ele me oferecia uns trocados pra que eu escrevesse requerimentos suspeitos e procurações ilegais. Dizia, com a boca cheia de orgulho, que ninguém usava a frase “Venho através desta...” de maneira tão elegante e apropriada quanto eu e que um documento bem escrito era o primeiro passo para uma falsificação bem sucedida. Em suma, o Alípio era um porco e se eu estivesse em tempos de fartura e abastança, certamente teria desligado o telefone na cara dele. Infelizmente, esses novos tempos ainda não chegaram.
-Como vai, seu bosta?, ele me perguntou carinhosamente.
-Tô me esvaindo em sangue, mas fora isso tudo bem...
-Me encontra no Giba´s, em meia hora. Te pago um lanche e conversamos sobre um trabalho...
E antes que eu pudesse pedir pro Alípio chamar uma ambulância, ele desligou o telefone na minha cara, daquele jeito prático que sempre caracterizou o seu comportamento. Eu lembro quando a minha mulher me abandonou e eu liguei pro Alípio dizendo que estava na fossa e queria me matar. Foi quando ele que me disse que não era pra tanto. “Como não é pra tanto? Ela me trocou pelo zelador do meu prédio!”, eu gritava. “E daí? Isso pode acontecer com qualquer um”, ele retrucou distraído, sem saber que quando a minha mulher dava plantão na guarita, o zelador normalmente não abria a porta automática da garagem pro meu carro, o que muito me aborrecia. Da última vez que eu telefonei pro Alípio pra desabafar, ele disse que estava um pouco ocupado dando comida macrobiótica pra sua criação de carpas e que me ligaria logo em seguida. Bom , o “logo em seguida” significou seis meses de espera, porque aquela era a primeira vez que eu falava com o Alípio desde então.
Meio zonzo pela fome e pela hemorragia, lancei meu corpo debilitado escada abaixo para chamar a atenção de alguém do meu prédio e ser socorrido. Acabei rolando em cima de uma lixeira e o faxineiro, depois me obrigar a varrer a bagunça, me encaminhou pro HC onde levei doze pontos e tomei uma sopa fria, que depois eu descobri ser um suflê de peixe. Estava quase adormecendo sob os efeitos dos tranqüilizantes quando olhei no relógio e percebi que estava três horas e meia atrasado pro meu encontro com o Alípio. Arranquei o soro do meu braço e cheguei esbaforido ao Giba´s.
Felizmente, o Alípio estava dormindo no balcão, depois de ter tomado oito doses de vodca esperando por mim. Acordei meu amigo e minutos depois ele manifestou o desejo incontrolável de vomitar, o que fez na minha camisa semi-nova que já estava imprestável devido às manchas de sangue oriundas do meu corte na cabeça. Olhei para a minha camisa vomitada e inexplicavelmente algo me trouxe uma saudável lembrança dos velhos tempos. Emocionado, abracei o Alípio com lágrimas nos olhos e foi nessa hora que o Giba nos expulsou do seu estabelecimento.
Minutos depois, Alípio e eu estávamos sentados no banco da praça. Foi quando ele me deu o serviço.
-Como você sabe, eu ando diversificando meus negócios. Há quinze dias, eu fui à um Congresso de Ioga pra ver se conseguia vender uns moderadores de apetite pros participantes. Tudo ia de vento em popa, até que uma menina veio me abordar dizendo que precisaria de algo mais forte pra estimular a sua meditação pela paz mundial no final da tarde. Logo depois de entregar as anfetaminas, eu já estava apaixonado.
-E eu com isso? Perguntei, já ligeiramente incomodado com o cheiro do vômito na minha camisa.
-Você é escritor e a menina tá estudando pra ser atriz.
-Já sei. Você quer que eu escreva um monólogo dramático onde ela possa explorar as diversas possibilidades expressivas da interpretação, num texto ágil, moderno, arrojado, feminino e atual...
-Não. Na realidade, o problema da Valeska...
-Valeska?
-Valeska Raños, é o nome artístico da minha princesa. O problema da Valeska é que ela é mais ligada à prática do que à teoria percebe? Ela está ameaçada de levar bomba na escola de interpretação se não entregar até semana que vem uma resenha crítica pro professor de História do Teatro.
Me levantei de sopetão e antes que pudesse sentir a velha tontura, esbravejei:
-Você me chamou até aqui, eu, um dramaturgo profissional, pra me propor uma indecência dessas?
-Calma, Jota...
-Calma o caralho, seu puto! Eu sou um artista do teatro! Eu ganhei o prêmio de autor revelação no Festival Nacional de Teatro de Guatupeva com a tragicomédia “Se Eu Sou Uma Besta, Você é Minha Égua”!
-Eu ainda não terminei...
-E agora você quer que eu empreste a minha arte na redação de um trabalho de escola pra uma idiota qualquer que você anda comendo?
-Ela é não é uma idiota qualquer.
-Ah, não?
-É uma idiota bem gostosa!
Aquela expressão abjeta, aliada à proposta indecorosa elevaram de maneira sensível a minha pressão arterial. O curativo na minha cabeça imediatamente se empapou do sangue que começou novamente a jorrar dos pontos rompidos. Minha vista ficou turva e como numa derradeira manifestação de dignidade, eu gritei a plenos pulmões algo como “nunca!” que saiu da minha garganta como um sussurro, graças ao meu depauperado estado físico e psíquico.
-Te pago dois mil reais, disse Alípio.
-Claro que eu dou uma força pra garota, respondi placidamente. Sobre o que é o trabalho? O papel do Teatro Épico de Brech na dramaturgia moderna? Artaud e o Teatro da Crueldade aplicado à encenação contemporânea?
-É uma análise crítica da peça teatral “Pluft, o Fantasminha...” Conhece?
-De nome...
-A Valeska teve uma certa dificuldade pra entender o primeiro ato e agora tá enlouquecendo. Diz que não é justo que uma resenha crítica atrapalhe a sua carreira profissional. Semana que vem, ela comemora três anos do seu primeiro salto de body-jumping e eu queria fazer uma surpresa. Por favor, me ajude! Escreve essa resenha, pelo amor de Deus...
Nessa hora, Alípio começou a chorar. A Valeska Raños devia ser bem gostosa mesmo. Ainda assim, mantive o sangue frio e fui logo ao que interessava.
-Paga adiantado?
-Trinta por cento agora e o restante no ato da entrega.
Fiz os cálculos mentais pra ver quanto aquele valor significaria em matéria de almoços e o meu estômago acabou respondendo no lugar do meu cérebro.
-Topo! A sua namorada vai ter em mãos a melhor resenha crítica da peça “Pluft, o Fantasminha”, ou não me chamo Jota Oliveira!
Dias depois, estava enfurnado na minha quitinete, diante do computador que agora funcionava devido ao pagamento da conta de luz. Ao meu lado, o exemplar de “Pluft , O Fantasminha”, retirado na Biblioteca Municipal, me encarava tal qual uma esfinge furiosa, salivante por me devorar caso eu não decifrasse seus enigmas. Com as mãos trêmulas, abri na primeira cena. Pluft brinca no sótão e pergunta pra Mãe Fantasma se “gente existe”. Ela responde: “Claro que existe, Pluft...” e ele retruca: “Eu morro de medo de gente, mãe...”
Minha garganta seca, meus olhos embaçam. Pluft sou eu, eu penso. Pluft é a humanidade! Ali, naquela peça infantil, uma alegoria do terror do homem pelo homem. Do homem que tem que morrer pra enfrentar seus medos e renascer na coragem do auto-conhecimento. Ali, naquela primeira cena está o homem espectral, destituído da matéria, diante do medo da matéria que provavelmente o conduziu à morte. E ainda existem outras mensagens subliminares naquele diálogo aparentemente ingênuo entre mãe e filho-fantasma: o vazio da existência, o passar inútil das horas, a nossa insignificância diante do infinito cósmico, o tripudiar de Deus diante da nossa ignorância infinita! Acendo mais um cigarro. Preciso de ar fresco, mas obviamente não é isso que consigo quando dou a primeira tragada. Então, lembro de abrir a janela e volto à leitura.
Na cena seguinte, a casa é invadida por três marujos trapalhões. Morro de rir das estripulias de João, Sebastião e Julião. O grande objetivo dos personagens é encontrar um tesouro que sequer será deles depois de encontrado. Os três coitados obedecem ordens de um capitão que não aparece. Um sujeito oculto, mas ao mesmo tempo onipresênte, simbolo da opressão velada dos poderosos que afoga o “eu” e os desejos individuais. Somos marionetes de um sistema opressor e cruel, que se alimenta da ignorância cultivada tal qual nabos na lavoura da existência. E quando já não há mais espaço para a indignação do espectador, eis que surge o Pirata Perna de Pau, que após capturar a menina Maribel, canta obsessivamente nos ouvidos da criança uma canção hedionda que rima “Maribel” com “cabelos cor do céu” e “olhos cor de mel”. O Pirata é uma figura paterna opressora que curiosamente me lembra a todo momento a minha mãe, exceto quando manifesta as suas pretensões matrimoniais com a garota. Está ali, na figura do abominável vilão, os sonhos infantis represados em nome do ganancioso espírito humano. Nada faz sentido na existência de Maribel, então nada mais natural que ela se torne amiga de Pluft, um personagem que nada mais é do que o “nada” materializado em forma de espectro! Pluft se vê diante de um dilema: aceitar a amizade da menina e resgatar a sua própria humanidade, ainda que não possa fazer porra nenhuma com esse tipo de aprendizado frente ao fato de que está irremediavelmente morto. Ao final da trama, o Pirata Perna de Pau é afugentado pelo Capitão Gerúndio, outro espectro, e pelos fantasmas do mar, que surgem na peça só no final. Por que a autora Maria Clara Machado revela seus fantasmas somete no final da peça? Qual é a simbologia por trás da entrada de personagens que poderiam ter salvo a menina Maribel muito antes dela sofrer traumas terríveis em função dos abusos de um pirata pedófilo?
Olho no relógio e já são quatro horas da manhã. No meu cinzeiro, um maço inteiro de cigarros foi fumado na sofreguidão das minhas inquietações. Minha cabeça está zonza. Não consigo me aprofundar em mais nada. Apenas penso nos atores recrutados pra fazer somente essa ponta como fantasmas do mar e reflito com tristeza sobre a solidão de um figurante, traçando paralelos com a solidão que eu mesmo sinto quando estou numa festa freqüentada por gente mais jovem do que eu. Exausto, coloco tudo na tela do computador e imprimo aquilo que acabo considerando uma pequena obra-prima da análise crítica para uma obra de teatro infanto-juvenil. Na semana seguinte, encontro o Alípio no Giba´s e entrego o texto, conforme o combinado.
Mas não adianta, porque nesse meio tempo ele já levou um pé na bunda da menina...