Outono
"Aconteceu alguma coisa?" - Ela me perguntou. Tive uma leve sensação de dejavu, sempre existe alguma coisa acontecendo e sempre existe alguém capaz de notar isso, não que eu tente disfarçar, na verdade geralmente essa "coisa" é algo que eu tenho prazer em demonstrar. Sabe? É algo natural, instintivo, um truque para compensar a falta de empatia que deveras existe, na maioria das pessoas (por opção ou não), uma ilustração de um quadro que deveria ser claro, um modo de exemplificar a primicia: "Quando estamos fudidos, precisamos de ajuda".
Não, não era ajuda que eu precisava, eu me contentaria com compreensão. Compreensão...não, isso era pedir muito. Quando o assunto sou eu, é hérculeo exigir compreensão, e por mais incrivel que pareça, eu nunca quis que fosse assim.
Varanda, uma rede no canto esquerdo, um sofá preto no centro.
- Aconteceu alguma coisa?
Eu deixei a nicotina entrar no meu corpo, eu estava de costas para ela porque esta ainda não tinha se acostumado com esse meu recém adquirido vicio, um hábito detestável provindo da insegurança de não ter onde por as mãos. Estiquei a mão direita, a que estava sem o cigarro, para fora da parte coberta e deixei as gotas de chuva escorrerem pelos meus dedos, apertei-as na minha mão e esfreguei no meu rosto. Naquele momento eu me dei conta de que alguns dos piores momentos da minha vida foram regados por chuva, e nem por isso eu passei a detestá-la, de fato eu a amava, sempre ei de amar; meu erro é amar tudo que é belo, tudo que é triste, por mais danoso que seja, o mesmo padrão das mulheres da minha vida, tristes, belas e extremamente nocivas, frias como a chuva e o vento, ela poderiam me matar e eu as amaria da mesma forma.
- É uma pergunta retórica?
- Agora passou a ser - Ela havia aprendido muito bem a ser rapida e letal. Ela já sabia direitinho o que tinha que dizer, como se tudo já tivesse sido escrito, uma peça sobre mim e sobre ela, sobre nosso amor e toda a tragédia que insistiamos incessantemente em encenar, em prol da poesia e de outras causas menores. Nunca haviamos dito uma palavra sobre isso, mas nós dois sabiamos, eu sempre tive certeza disso, era nossa fuga do mundo e do horror vazio do mundano, do imperfeito; ela queria ser tão grande quanto achava que eu era, ela sonhava com histórias incriveis e tinha uma cabeça fervilhante, mas pouca idéia do que fazer com isso, pouquissima mesmo, então ela me soava simplória, tristemente apagada. No meu jardim de rosas, ela era uma das mais belas, uma das mais vermelhas, que para qualquer outra pessoa significaria tudo, a mulher para uma vida, para mim, entretanto, ela ainda era só uma rosa, ela ainda permanecia igual, indigna.
- Um problema querida, um problema absurdamente grande - Murmurei palavra por palavra, sem pressa, degustando cada som, cada crocancia e macies que as palavras possuem - Com o tempo ele foi se apagando, mas ele ainda existe, como o zumbido distante e constante de um motor, que com o tempo tornou-se imperceptivel, porque deixamos de prestar atenção, mas ele está lá ainda e se você se deixar levar por alguns minutos, pode até ser capaz de ouvir.
- Você fala de nossas pendências?
- Falo e acrescento mais, meu problema é não só com o que deixamos de acabar, mas também com aquilo que nunca começamos. - Me virei para ela e lancei o cigarro varanda a fora, agarrei uma de suas mãos - Vai te soar familiar e eu não tenho a menor pretensão de ser original no momento, eu sou um extremo em um mundo de moderação e recato, e por ser um extremo eu busco por coisas similares. Enfim, eu te amo, como não pensei ser possivel, eu seria capaz de fazer quase qualquer coisa por você, e em absoluto, eu não esperaria nada em troca, essa é a parte boa, a parte ruim é que ninguém nunca vai me amar dessa forma, eu me contentaria com metade disso, mas ainda assim eu acho impossivel.
Ela ficou um tempo parada, apertando a minha mão, eu percebi que ela se forçou a não sorrir quando teve o ego massageado, mas logo depois ela viu que eu estava sendo sincero, que eu não estava fingindo toda aquela dor e frustração, ela finalmente havia percebido o que eu verdadeiramente significava na existência, o que a existência significava para mim e qual eram todas as minhas pretensões. O trágico mesmo, é que eu ainda tento descobrir o que ela descobriu, isso ajudaria muito. Ela então me abraçou e me beijou docemente na boca, como a muito tempo não o fazia, talvez guiada pelo excesso de sensualidade e selvageria que eram nossos encontros, ela demorou-se entre meus lábios e passou a mão nos meus olhos para fechá-los, eu quase pude prever o que viria, era um prenuncio de morte, ela fechou meus olhos para eu não morrer fitando o nada, o nada que eu sempre detestei, o nada que era minha obcessão. Sua fala foi antecedida de um suspiro de choro.
Então ela foi lacônica:
- Eu jamais te faria feliz. Eu jamais conseguiria fazer o que você faz.
Então suas lagrimas, incessantes como as gotas de chuva lá fora, um pouco mais quentes que essas, umidecendo meu casaco, e como sempre acontecera, seu cheiro adocicado se impregnou em mim me marcando naquele dia, me marcando para o resto dos meus dias, um sinal do que um dia ela foi minha e eu fui dela, um sinal que contra todas as expectativas e todas as probabilidades, nós conseguimos ludibriar o destino por alguns meses; eu, o garoto malvado, amaldiçoado com um destino trágico, fui um só, varias vezes, com a garota que poderia se passar perfeitamente por um anjo. Pela lei do equilibrio, algo seria tomado de mim, algo grande, por eu ter criado tantos paradoxos, de nenhuma maneira eu era merecedor da dádiva que eu estava recebendo e esse foi um dos motivos do fim, covardia perante as consequências de meus atos, covardia perante as retribuições do universo.