NeUrosE
Gostava de ir ao dentista. Sentia mesmo verdadeiro prazer. Uma sensação de euforia quase incontrolável.
A sala de espera absurdamente impessoal, a musiquinha da FM, o atendente de branco, impecável e com o olhar perdido; tudo mexia com sua imaginação.
Geralmente chegava cedo, ficava na sala de espera e divagava deliciosamente. Perdia-se pensando no que poderia fazer com todos aqueles instrumentos que via na sala do dentista.
Mas era quando as consultas atrasavam que se divertia mais. Deliciava-se com o burburinho ligeiro e contido da sala; com um certo medo que pairava no ar; as pessoas todas se comunicando por sussurros. Era como se estivessem num templo.
Monitorava todos os movimentos. Nenhuma expressão lhe escapava.
O olhar de pena e solidariedade que lançavam para quem saía da sala do dentista...era simplesmente imperdível; só superado mesmo pelo olhar de pavor atirado ao infeliz que se dirigia para a sala quando, depois do toque do interfone, o atendente anunciava, como quem anuncia um grande prêmio, o nome do próximo paciente.
Enfim, adorava aquele local claro, cheirando a limpeza e remédios. Adorava o brilho metálico dos instrumentos e o barulho que produziam. Simplesmente adorava!
Definitivamente gostava de ir ao dentista. Por isso estava sempre inventando uma razão ou outra para que a mãe lhe permitisse ir para uma consulta. Ora alegava que lhe doía um dente da frente, ora o do fundo é que incomodava.
Sentia uma satisfação tão grande que sua mãe chegou a pensar em levá-lo ao psicólogo. O menino logo argumentava: - Oras, mamãe, o que é isso? Quando crescer vou ser dentista também.
Dizia isso somente para acalmá-la. Nunca pensara em ser dentista, tinha outros planos para sua vida.
Quando finalmente chegava sua vez, caminhava para a sala em puro êxtase; entrava afoito, retribuía o sorriso do profissional e se perdia em divagações imaginando as cenas que já teriam acontecido naquele lugar.
Quantas pessoas apavoradas estiveram por ali? Quantas confiantes? Quantas efetivamente sentiram dor? Quantas estavam tão amedrontadas que sequer percebiam que o equipamento moderno já não assusta mais ninguém? E quantas, como ele, iam lá por puro prazer?
As perguntas invadiam sua cabeça sem a menor cerimônia. Eram tantas que ele precisava concentrar-se para curtir plenamente o pouco tempo que passava dentro daquela sala. Era tudo sempre tão rápido...
Como gostava de ir ao dentista! Prazer maior do que este só quando burlava a vigilância da faculdade de medicina lá no final da rua e entrava sorrateiro no necrotério. Ficava horas por ali olhando para aqueles corpos frios e indiferentes, colocados displicentemente sobre as mesas de pedra espalhadas pelo salão.
Caminhava entre as mesas geladas com grande satisfação e, por mais que quisesse, não conseguia impedir o sorriso sutil e maroto que teimava em instalar-se no canto dos seus lábios.
Não, não queria ser dentista. Com certeza tinha outros planos para sua vida.