AMOR, ETERNO AMOR
Horácio permanecia como que imobilizado. O tempo todo calado. Quando tentava se mover, seus gestos não passavam de acenos. Olho-o em silêncio. Pensamentos obsessivos pareciam ocupar-lhe a mente todo o tempo. Evita fitar-me.
Ele nunca fora assim, ou melhor, mudou de vinho para água. Conforme dizia minha mãe, “com vinagre não se apanha mosca”, isso quando eu me sentia o melhor dos vinhos. Parecia até de propósito!
Quando alguém me depreciava, repetia para mim mesma que, palavras são apenas palavras e que a verdadeira vida estava muito além das limitações humanas.
Voltei minha atenção para Horácio. Quem diria? Logo o Horácio Pires da Cunha, detetive renomado. O melhor dentre seus parceiros. Temperamental é verdade, mas de boa índole.
E pensar que, há alguns anos atrás...
- Carla, estou faminto. Vamos sair, comprar uma pizza e voltar para este quarto e, durante esse fim de semana, nem pensar em sair dele, o que acha?
- Concordo quanto à pizza, meu bem. Mas, não sei se gostaria de me hibernar, por dois dias a fio.
- Acho que não me ama mais...
- Claro que eu o amo, mas você sabe que não agüento ficar num mesmo lugar por muito tempo. Sou irrequieta, mesmo no melhor lugar do mundo como esse seu quartinho...
- Acho que você acabará se acostumando... Quem tolera um cara como eu e até o ama, é capaz de acostumar com tudo nessa vida, até com a idéia da morte!
Morrer... Morrer... Quantas vezes mais morrer. A cada dia e, aos poucos, porém apaixonada e feliz.
Minha mãe também dizia “amor não enche barriga, minha filha”, enquanto enxugava o prato. O modo como ela manuseava a louça era quase uma carícia.
Eu respondia que “enche, enche sim. E muito, enche a vida”.
Sempre me entreguei às paixões. A todo vapor e sem limites. Amar até morrer de amor. De cortinas e peito abertos. Sempre fui passional. Mas sem loucuras.
E hoje é um dia para lembranças e devaneios...
- Por que você insiste em ficar comigo, dona Carla Madeira da Costa? Vivesse sua mãe, estaria enfrentando sérios problemas!
- Fico porque o amo e quero, é sina. É fatal, sina é sina, boa ou ruim, não é mesmo?
- Você fala de fatalidade, não de amor. Temos livre arbítrio, podemos escolher. E eu a escolhi, Carlinha!
- Você me escolheu e eu ficarei para sempre...
Dia doze de setembro de mil novecentos e oitenta e quatro. Data da reunião do delegado regional com a equipe de detetives. Uma demora além do normal. A ponto de causar preocupação.
Horácio, Informante do Serviço de Inteligência da Polícia parecia um barril de pólvora, prestes a explodir. Já não agüentava as brincadeiras de mau gosto de um dos colegas que, aparentemente, por inveja, tentava desmoralizá-lo e não perdia oportunidade para aborrecê-lo na presença de outras pessoas, fossem quem fossem.
A reunião se passara em um clima tenso de cobranças e alguns dos policiais não conseguiriam escapar da prestação de contas à Corregedoria, pelos seus atos impensados.
Após a reunião tão conturbada, o detetive, desafeto de Horácio, aproxima-se do mesmo e, ao pé do ouvido, fala algumas palavras inaudíveis para os que não estavam muito próximos.
A esse fato, seguiu-se uma discussão acalorada, alguns gritos de ambas as partes, alguns socos e... Uns disparos.
O delegado havia se retirado, mas os colegas correram à sala de reunião. Encontraram Horácio, olhos arregalados, a arma pendia da mão. No chão, dois corpos estendidos: o do colega agressor já morto e o do seu parceiro, amigo e confidente que tentara separar os dois. Parecia agonizar.
Felizmente o amigo, após um período de internação, conseguiu se recuperar, apesar de ter perdido parte de sua coordenação motora.
Dali pra frente, iniciava para Horácio uma nova realidade, uma trajetória de vida diferente para aquele homem arrojado, de estopim curto, muitas vezes, cheio de razão...
Hoje, contemplo esse quadro. Horácio permanece imóvel, olhar fixo em um único ponto, fazendo menção de se comunicar através de gestos evasivos, até que consegue emitir algumas palavras, num fio de voz:
- Carla, por que ainda está aqui? Eu não a mereço, nem mulher nenhuma. Eu sou hoje um criminoso, afastado da polícia à espera de julgamento. Certamente serei condenado e ficarei detido por muito tempo.
- Seus colegas me disseram, foi legítima defesa, a justiça se cumprirá, de mais a mais...
Horácio a interrompe :
- Você, nos primeiros tempos, irá me visitar semanalmente. Depois se cansará de mim, sem contar que vai conhecer alguém melhor do que eu. Eu trabalhei em presídio e isso é mais normal do que você pensa. Honestamente, não poderei culpá-la.
- Você sabe que irei sempre, onde você estiver, por quanto tempo for necessário. Mas acredito que não ficará preso, tem atenuantes e um ótimo advogado. Qualquer pessoa em seu lugar poderia ter agido assim. Lembra da peça do Plínio Marcos, Dois Perdidos numa Noite Suja, que vimos em São Paulo?
- O que aconteceu comigo dói mais, pois é na minha própria pele, é vida real, e é sua vida também.
- Você é um ser humano, sujeito a erros, e eu o amo. Por que tenho que justificar meus sentimentos a todo momento, se para o amor nem sempre existem justificativas? Assim, penso que você está tentando transformar um sentimento tão bonito em tortura...
- Perdoe-me, meu amor. Você foi o melhor que restou para mim. Preciso me acalmar. Aguardar a próxima audiência, entregar meu caminho a Deus, sei que me escutará apesar dos pesares.
Pela primeira vez depois de tudo, sinto que me olha com ternura. As feições de seu rosto se suavizam. Cravo meus olhos azuis em sua fronte vincada. Aproximo-me. Passeio a mão demoradamente pelo seu rosto e aliso sua barba crescida, começando a pratear.
Horácio, meu Horácio, como o amo! Vejo que, aos poucos, ele se acalma e, por fim, vai-se dissipando a tensão do início, recosta a cabeça em meu peito e adormece.
Amanhã será um novo dia.
fim