A mediadora
 
- Você sabe o que mais me magoa nesta vida, não sabe? - perguntou Eugênia.

- Sei; são os meninos, não? - respondeu sua amiga.

- Sim... Essa discórdia sem fim. Eu daria minha vida para vê-los unidos; você não imagina o que é ter dois filhos que não se falam.

- Não sei, realmente, mas imagino; deve ser muito triste, mesmo. Dois irmãos criados com tanto carinho por uma mãe tão zelosa como você...

- Pois é. Sempre os tratei com amor, criei-os para serem amigos, mas não adiantou. Já lhe disse que o Francisco não virá aqui no sábado, porque descobriu que o Joaquim virá? A que ponto isto chegou.

- Não, não sabia; você ainda não me havia contado.

- Dói, dói muito. Eu não os criei para isso, está cada vez pior.

- Mas não será só uma fase? Eu também já briguei com minha irmã algumas vezes, já ficamos até sem nos falar um tempo. Isso passa, é coisa de irmão, coisa de família.

- Não. Queria que fosse apenas uma fase, mas infelizmente não é. Desde que eram crianças os dois não se dão, nunca foram companheiros de verdade. Já tentei de tudo para vê-los juntos. Não sei mais o que fazer!

- Deixe que o tempo cuidará deles, querida. A vida há de aproximá-los.

- Se Deus quiser, Deus te ouça. Mas eu queria tanto estar viva para ver a amizade dos dois. A única coisa, na minha vida, que me atormenta é essa inimizade. Já lhe contei o que o Francisco fez com o Joaquim quando eram meninos?

- Não sei. Você está falando daquela fez que ele pediu de presente que o irmão não ficasse na festa de aniversário dele?

- Não, quem pediu isto foi o Joaquim. Eu estou falando da vez que o Francisco pediu para mudar de colégio, pois não queria estudar no mesmo do irmão. Existe coisa mais triste?

- É lamentável, mesmo...

- Mas isto não foi nada perto da briga que eles tiveram quando adolescentes. Se eu não interviesse...

- Desta eu me lembro bem. Não gosto nem de falar, foi horrível.
- Olha, se eu não estivesse em casa, acho que hoje eu só teria um filho. Nunca achei que poderia chegar àquele ponto; meus olhos enchem d`água só de lembrar. Graças a Deus os salvei.

E a conversa continuou. As duas senhoras sentadas na varanda da casa da mãe inconformada, que narrava à amiga as desavenças de sua prole.

Na verdade, todos que conheciam Eugênia ouviam sempre a narração de batalhas da guerra familiar. Era praticamente impossível encontrá-la e não ouvir pelo menos um fato relacionado às famosas brigas entre seus filhos.

Vamos, portanto, aos beligerantes: Joaquim era o mais velho, nascera dois anos antes de Francisco. Os dois eram bem parecidos, tanto fisicamente, quanto no modo de ser: ambos eram misantropos e perseverantes. A mãe achava que o fato de serem muito semelhantes poderia ser o motivo da perene discórdia entre eles. “Os iguais se repelem; se fossem diferentes provavelmente dar-se-iam bem”, dizia Eugênia.

Mas, independentemente do motivo, o fato é que os dois não se suportavam. E mesmo assim tinham muitos amigos em comum; no entanto, para encontrá-los, seus amigos tinham que fazê-lo em dias diversos: num dia, Chico; noutro, Joca - nunca os dois juntos.

Fizeram o mesmo curso universitário: os dois tornaram-se médicos, com a mesma especialidade, inclusive. Contudo Joaquim estudou em São Paulo e Francisco, no Rio. Depois de formados, abriram seus respectivos consultórios no Rio, onde nasceram e cresceram. Apesar da insistência da mãe – se dependesse dela, dividiriam a mesma sala -, não trabalhavam perto um do outro: o mais velho estabeleceu-se no Centro e o outro, na zona sul. A mãe sofria: eram doutores, mas inimigos.

Também eram servidores públicos: foram aprovados no mesmo concurso e nomeados no mesmo ato. A mãe regozijou ao ver seus nomes publicados, um abaixo do outro, no Diário Oficial: “3º - Joaquim dos Santos Silva; 4º - Francisco dos Santos Silva”. Para Eugênia foi como vê-los unidos. Eufórica, ela contou a todos os amigos, conhecidos e até desconhecidos, que cruzaram seu caminho naqueles dias, a aprovação dos filhos, e fazia questão de ressaltar a proximidade dos nomes publicados, “os nomes tão perto, coladinhos um no outro”.

Entretanto sua alegria durou pouco. Quando ela propôs aos filhos um jantar para comemorar a dupla nomeação, ambos lhe negaram, e disseram-lhe, quase com as mesmas palavras, que só jantariam com ela se o outro não fosse. Ela teve que se conformar com dois jantares separados.

Com efeito, a vida de Eugênia era a guerra dos filhos. E por piores que sejam as mazelas que aflijam uma pessoa, o tempo possui o poder de as consolidar, tornando-as tão arraigadas, que o seu fim não traz alívio, mas vazio. Assim, prefere-se, muita vez, o mal conhecido ao bem desconhecido. Esse aparente paradoxo pode ser explicado de duas formas: uns dizem que o homem tem medo do novo; outros, que se trata de apego ao que se conhece. A rotina cansa e a variação assombra. A verdade é que as mudanças, ainda que desejadas, quando batem à porta de surpresa assustam e, por isso, freqüentemente, são refutadas.

O leitor mais perspicaz já imagina que uma surpresa atingiu a mãe mediadora; e foi justamente o que ocorreu. O inesperado aconteceu: os adversários - Joaquim e Francisco - fizeram as pazes; e o fizeram sem a intervenção da mãe.

Eugênia tomou conhecimento do acordo de paz da maneira mais surpreendente: os filhos foram juntos lhe contar. Era quarta-feira à noite; ela estava ao telefone, quando a campainha tocou; pediu licença à amiga com quem falava, e dirigiu-se ao portão. Ao olhar, através do olho mágico, não acreditou no que viu. Olhou de novo, mas não cria.

Depois de alguns minutos, bateram de novo a campainha; o som estridente fez Eugênia sair da letargia. Abriu a porta. Os filhos, sorrindo, deram-lhe um abraço. Joaquim, então, falou:

- Fizemos as pazes, mãe. Eu e o Chico viemos pessoalmente lhe contar: o seu maior desejo foi realizado!

- Mas... Como?! – espantou-se a mãe.

- Na verdade, eu tomei a iniciativa e chamei o Chico para conversar, ontem à noite. Ele foi à minha casa e lá passamos horas falando de tudo: da nossa infância, de trabalho e, é claro, da nossa inimizade. Chegamos à conclusão que perdemos um grande tempo em nossas vidas e sequer descobrimos o porquê de tanta discórdia.

- É mãe, foi assim; o que importa é que agora estamos unidos, como a senhora sempre quis.

Eugênia estava perdida. Sorria por fora, mas por dentro sentia-se estranha. Ouvia sem acreditar os filhos, que juntos lhe contavam detalhes da noite anterior. Lembrou-se de que deixara a amiga esperando na telefone, mas quando pegou o fone, já não havia ninguém. Os filhos jantaram com ela. Os dois falavam tanto, estavam tão próximos, tão amigos um do outro, que a mãe apenas os ouvia, nada falava.

Quando foram embora, Eugênia se sentou no sofá, eufórica e incomodada. Não sabia o que sentia, mas seu corpo lhe parecia pesado. O telefone tocou, mas ela não o atendeu; o que era estranho, pois, loquaz como era, nunca deixava de atendê-lo. No entanto, naquela noite não queria falar com ninguém e não sabia por quê.

No dia seguinte, Eugênia acordou mais tarde que o costume e não sentiu vontade de sair da cama. Arrastando-se foi passar o café. Enquanto o bebericava, sem vontade, o telefone tocou. Desta vez, ela o atendeu; era a amiga que havia sido deixada ao telefone na noite anterior.

- Alô?
- Alô.
- Eugênia?
- Sim.
- O que houve ontem? Você me largou no telefone; fiquei preocupada. Liguei mais tarde, mas você não atendeu...
- Ah, me desculpe. Ontem tive uma surpresa tão grande que esqueci de tudo, minha filha.
- O que houve?
- Você não vai acreditar: o Joaquim e o Francisco fizeram as pazes.
- Não acredito! Mas ontem mesmo falávamos da inimizade dos dois...
- Pois é. Estava falando com você quando a campainha tocou; fui atender, eram eles, os dois juntos, vieram aqui me contar que tinham feito as pazes.
- Meu Deus! Que surpresa boa! Me conta logo como foi que isso aconteceu.

E Eugênia falou à amiga o que os filhos lhe contaram. Depois de desligar o telefone, ficou em casa o dia todo, não saiu como costumava fazer. Ainda não sabia o que a atormentava. Dizia a si mesma que agora tinha todos os motivos para ser a pessoa mais feliz do mundo; mas não adiantava, sentia-se angustiada, desanimada, vazia. Pensava na sua vida e não conseguia vislumbrar nenhum objetivo a alcançar.

Na sexta-feira, dois dias depois de os filhos terem ido lhe levar a boa nova, ela saiu de casa e encontrou algumas colegas da vizinhança; no entanto, quando elas se aproximavam, Eugênia não sentia vontade de puxar conversa, como costumava fazer. Apenas as cumprimentava, friamente, e seguia. Eugênia não queria falar com ninguém; na verdade, ela sentia que não tinha nada para falar.

Aquela mudança repentina dos filhos, apesar de desejada pela mãe, causou-lhe surpresa, principalmente, porque não ocorreu como Eugênia havia imaginado, pois sempre que pensava na reconciliação dos filhos, ela via-se como o vínculo imprescindível, o elo que os uniria. A mãe chegou a sonhar algumas vezes com o dia da trégua; nestes sonhos, era a protagonista, os filhos uniam-se pelas suas mãos. A crise demanda heróis; a paz, não. Eugênia não seria mais heroína nem protagonista, a conciliação, da maneira que ocorreu, a relegou ao segundo plano.

Naquele dia, sexta-feira, ligou para o Joaquim, para saber como estava a união dos irmãos. Este lhe disse que tudo ia bem e que no dia seguinte, sábado, viajaria com o irmão para Paraty. A mãe ficou ainda mais estupefata. Era muito esquisito ouvir o filho falar do irmão com alegria, depois de tantos anos de reclamações e xingamentos. Ligou, em seguida, para o Francisco, que confirmou a viagem. Nenhum dos dois a convidou, e isto causou enorme dor na preterida mãe: antes, em tempos de batalha, ela possuía toda a atenção de cada um dos filhos.

Na manhã de sábado, duas amigas foram à casa de Eugênia. Logo que chegaram, perguntaram-lhe sobre os filhos; a mãe preterida lhes contou sobre a reconciliação e a viagem, tentando parecer feliz, embora estivesse bastante incomodada.

Durante a conversa, por duas ou três vezes, Eugênia tentou falar de brigas antigas dos filhos, mas suas amigas disseram-lhe que deixasse o passado de lado, que agora os dois eram grandes e inseparáveis amigos. A mediadora, enfiada em si, resignou-se, e pouco falou com as amigas; somente escutava o que falavam, distante, apesar de tentar parecer presente. Almoçaram juntas e depois do café as duas foram embora.

À noite, Eugênia resolveu escrever sobre as brigas de seus filhos; era uma forma de registrar aqueles fatos, que durante muito tempo foram o principal assunto de sua vida. Sentou-se à mesa da sala e escreveu por horas seguidas. Encheu páginas e páginas, descrevendo, na ordem cronológica, os confrontos.

Foi dormir tarde. Nesta noite, sonhou que os filhos lutavam, se xingavam, e que ela assistia aos confrontos, presa numa redoma de vidro. Ela berrava, mandava que eles parassem, socava o vidro que a prendia, mas eles não ouviam nada.

No domingo à noite, Francisco foi à casa da mãe para visitá-la. Descreveu a viagem, extasiado com a amizade do irmão; estava muito feliz e elogiava tudo. A mãe ouvia, séria. O filho percebeu que Eugênia estava com o cenho franzido e lhe perguntou se havia algum problema. Ela disse, sem convicção, que não era nada; mas o filho insistiu:

- Alguma coisa há! Você não me engana, mãe; o que está te aborrecendo? Pode me dizer.

- Não é nada, não, meu filho. Deixa isso pra lá.

- Deixar pra lá o quê?

- Olha, não vale a pena insistir neste assunto...

- Que assunto? Agora fala, pois estou curioso.

- Não! Não vou dizer. Demorou tanto pra que você e seu irmão ficassem de bem... Não! Eu não quero vê-los brigados de novo.

- Mas por que nós brigaríamos?

- Não é nada. Deixa pra lá. É besteira, é coisa do passado...

- O Joaquim lhe falou alguma coisa de mim?

- Esqueça, meu filho, não se irrite por besteira.

Francisco começou a ficar tenso. Imaginava o que teria feito o irmão contra ele.

- Fala, mãe! ordenou em voz alta.

- Não foi nada. E não adianta insistir, porque não vou falar.

Francisco, irritado, foi embora.

Duas horas depois, Joaquim ligou para mãe, falando alto e sem pausas:

- Como eu fui fazer as pazes com aquele idiota? Você acredita que ele me ligou há pouco falando um monte de asneiras e ainda desligou na minha cara? Vê se pode: passamos o fim-de-semana juntos e, sem qualquer motivo, ele liga me xingando...

A mãe, entusiasmada, respondeu-lhe:

- Mas já brigaram? Não pode ser verdade. Tantos anos para fazerem as pazes e nem uma semana depois da trégua já estão em guerra novamente... Vocês não querem me ver feliz, não é? Alegria de mãe dura pouco!