O velho da foto
A moldura estava acinzentada, e o retrato que continha, amarelado, curtido pela ação do tempo, bem mais que um século. Sabia que ele era o segundo dos quatro. Era o mais alto. Isso era tudo o que eu sabia.
Pequeninos, meus irmãos e eu passávamos as férias na casa dos nossos avós maternos. A ânsia de que o dia da viagem chegasse nos dava insônia. Em toda a minha infância, esperei por essas singelas viagens ao Engenho Santo Antônio. Sonhava cavalgando pelas veredas entre o pasto viçoso – verde escuro – , que dava ao campo uma vida sobressalente.
Da sala grande onde fazíamos as refeições, avistávamos a cozinha. Havia um grande fogão de lenha, várias bocas de fogo, quase sempre ocupadas com grandes panelas de barro. Havia duas ou três mulheres a ocuparem-se dos afazeres da cozinha. Vovó Lia estava costumeiramente à frente de tudo. As travessas chegavam à mesa, fumacentas e cheirosas. Aquele perfume ainda me traz recordações fortes que me enchem a boca de saliva. Que saudade!
O quadro dormia esquecido na parede do lavatório de porcelana, logo ali entre o corredor de chegada e a sala de jantar. Olhava-o sem qualquer admiração porque sua feiúra em mim nada despertava. Era apenas um quadro velho e desbotado, fingindo ainda mostrar-nos quatro parentes já há muito mortos.
- Este aqui era meu bisavô. Morreu aos quarenta anos, em plena flor da idade. Era um homem caridoso, elegante, trabalhador. Foi quem construiu toda a sede deste engenho.
- O retrato está tão velho, mãe, que não dá para que a gente reconheça ninguém. O mofo já consumiu pedaços grandes dele.
- Sua avó não tem nenhuma outra foto dele. É uma pena!
- Faz de conta que eu reconheço. Não sei por que a senhora faz tanta questão de venerá-lo.
- Menino, cala tua boca!
- Oxente, mãe, ele lhe impõe medo?
- Não..., deixemos essa conversa pra depois. Vamos comer!
Vovô ocupava a cadeira da cabeceira da mesa. Vovó ficava em pé ao lado dele. Não se sentava enquanto o último de nós não estivesse servido.
- Senta, mãe, vamos comer.
- Não. Só quando servir aos meus netos. Seus filhos, lembre-se, são duplamente meus também.
- Vou deixar esses diabinhos passarem um ano com a senhora. Vai ver o que é trabalho!
- Ah quem me dera ter todos vocês debaixo de minha saia. Quando acabam as férias e vocês voltam, tudo fica triste, sem luz. Nem a lenha do fogão pega ligeiro.
Engenho velho gemedor, nada mais produz e tristemente é corroído pelo vento do tempo. Coronel Francisco Dutra, seu fundador, não deixava parar qualquer de suas moendas. Muito mascavo saía de seus tachos quentes. O melaço escorria deles com fartura.
- Mamãe, o mistério do retrato continua a acontecer?
- Madalena, minha filha, não me traga esse assunto. Algum dos meninos vai nos ouvir, se impressionará, e o que é que vamos dizer-lhe? Não quero falar sobre isso.
Cedo ainda e a noite clara por uma linda lua cheia, mesmo assim, foram dormir. A última a deitar-se foi a velha Lia. Rezou o terço, deu alguns mergulhos de sono e só após foi mesmo para a cama. Major Alfredinho já havia adentrado o quarto.
Às três da madrugada, a moldura caiu da parede. Causou um barulho forte. Madalena saiu assustada do quarto. Paulinho acompanhou-a com a intenção de saber o que era.
- Vá dormir, meu filho. Não finda.
- Tou com medo, mãe. A cortina do meu quarto se abriu sozinha.
- Impressão sua. É o vento que faz isso. Mês de dezembro esse vento Nordeste chega a apitar de forte. Foi isso. Agora vá pra cama.
- Vou não, mãe, estou com medo.
Sob o lavatório do corredor, a moldura havia se partido em duas. O retrato estava alguns centímetros afastado dela. Parecia que haviam limpado a foto. Estava nítida, recolorida, bonita.
- Mãe, mudaram o retrato de Dindinho. Nesta foto ele está bem visível.
- É não, meu filho, esta é a mesma foto velha que lhe mostrei de manhã.
- É não, mãe... naquela eu não conseguia vê-lo tão nitidamente.
- É menino, deixe disso!
- A senhora fala que eu é que sou teimoso. Esta foto é outra!
- Mamãe, se acordou também?
- Foi, Madalena, o que houve?
- Olha, vovó. Como a fotografia de Dindinho virou outra...
- Meu Deus! Ela estava tão envelhecida e agora tão nítida! Ai, tudo vai acontecer-nos novamente.
- O que, vovó?
- Falei besteira, meu neto. Vamos dormir.
- Ah! Vovó..., que segredo é esse que a senhora não quer falar?
O dia todo foi de chuva, trovões e relâmpagos. Ninguém saiu de casa. Mamãe ficou jogando paciência na mesa, papai foi ao campo com vovô vacinar o gado e vovó, nesse dia, para espanto meu, não pisou na cozinha. Agarrou-se ao terço e rezou de cedinho até o jantar. Apresentava os olhos vermelhos como quem havia chorado.
- Estava chorando, vovó?
- Não..., é que não dormi bem essa noite.
- Por quê?
- Levantei-me várias vezes para ir ao banheiro.
- E o retrato, vó, onde está ele?
- Guardei na cômoda do meu quarto. Vou providenciar-lhe nova moldura.
- Deixe-me vê-lo agora.
Sentei-me na cama de vovó e tive-o nas mãos. Confesso que senti um forte arrepio quando olhei para o rosto de Dindinho. A foto me caiu da mão, o vento soprou bem mais forte e vovó se ajoelhou com o terço. Tive medo. Ela adotara uma atitude estranha. Era como se exorcizasse. Apertei a foto, encarei-o e disse alto.
- Vovó, Dindinho era espírita?
- Menino, não me pergunte nada dele que não saberei lhe responder.
- Vovó está mentindo?
- Sua vó não mente!
- Então, escondendo algo de mim?
Tudo foi interrompido com o grito de mamãe. Ela venceu o corredor, entrou no quarto de vovó, abraçou-a e disse:
- Foi ele, mãe!
- Reze minha filha e tudo há de passar. Reze muito!
Havia quem dissesse que por várias vezes tinha visto as moendas do engenho se movimentarem sozinhas, sem a tração animal. Outras pessoas viam Dindinho entrando e saindo da casa grande do engenho, sorridente, com o mesmo terno com que havia sido enterrado.
Desvendei todo o mistério da fotografia quando me levantei no dia seguinte. Umas duas da madrugada. Na mesa grande estava vovô, vovó, mamãe, papai e uma velha amiga da família que só aparecia na casa do engenho quando ia rezar em algum de nós doente.
Vovó estava ensopada de suor. Na cabeça da mesa, cabisbaixa e taquipnéica, murmurava. Eu não consegui entender o que dizia para os outros. Assustei-me e corri para o quarto e me cobri dos pés à cabeça quando ela meteu a mão na mesa e gritou:
- Por que protege esse menino? Careço possuí-lo. Viverei nele mais quarenta anos. As moendas do Santo Antônio não podem parar. Esse menino é ágil, diferente de todos vocês. Deixem-no levar a minha foto do lavatório. Através de seus olhos é que visitarei sua alma tão trancafiada dos sopros que tenho dado em sua busca.
- Vá dormir, Paulinho. Meu Deus! Ele deve ter visto mamãe em transe. E agora?
No café da manhã, no dia seguinte, tudo estava normal no velho casarão do engenho. O cuscuz de milho cheirava a leite. Na cozinha, a mesma movimentação de sempre. Vovó nem parecia que na madrugada passada havia ficado até quase o amanhecer, suada, sentada à mesa grande fazendo sei lá o quê. Ainda vi mamãe confabulado com ela. Disse-lhe alguma coisa importante. Tinha os olhos arregalados e bem vermelhos: não sei se de sono ou de medo.