As flores do túmulo

Cedinho, resolvi visitar o túmulo dos meus pais. Sentira uma saudade imensa e, por isso, achei que devia prestar-lhes homenagens com a visita deixando sobre a sepultura flores brancas e vermelhas. Eram as que preferiam.

Para chegar ao cemitério, tinha que vencer uma longa ladeira tortuosa, mas nem tão íngreme. Resolvi ir ainda com o sol frio, quando os pardais famintos, à procura do desjejum, barulhavam tentando encontrar alimento. Poucos casebres ladeavam a estrada de paralelepípedos bem varridos. Após vencê-la calmamente, como se debulhasse a saudade que tinha ao peito, dei-me frente a frente com o esbelto portão de ferro do campo santo. Seus varões não pareciam ter vencido tantos anos. Mostravam-se novos. Antes de ultrapassá-lo, falei com o velho coveiro aposentado que morava em um cubículo pregado à parede frontal do cemitério. Desde pequeno que via seu Deolindo habitando aquele espaço. Era tido como homem corajoso por não dar valor às lendas que se contava acerca das almas passeadoras que gostavam de sair após a meia-noite e espantar as pessoas.

-Bom-dia, Deolindo...

-Bom-dia, jovem. Que faz por estas bandas da cidade? Perdeu o medo? Quem pensa visitar agora?

O velho sabia muito de mim. Meus pais morreram cedo em um triste e comentadíssimo acidente de trânsito. O caixão não pôde ser aberto porque os corpos ficaram irreconhecíveis, despedaçados. Foi depois disso que me tornei um alcoólatra e passei a perambular por tantos anos pelas ruas da cidadela. Fiz muitas serestas – meu violão e eu apenas, à porta do Cemitério Santa Edvirgens. O velho sabia tudo de mim: tudo e mais um pouco. Quando eu, ainda criança, ia petecar nos arredores do cemitério, procurando acertar as pombas-rolas tão fartamente presentes no sombreado que faziam as paredes altas do campo santo, costumava dizer-me:

-Vai pra casa, menino. Dá sossego a esses passarinhos...

Obedecia-lhe, não tão prontamente. Ainda atirava pedras em duas, três, quatro delas. Quando o velho queria apressar a nossa saída e assim livrá-las da morte, dizia-nos:

-Neste instante, pulou o muro uma alma vestida de branco, bastante enraivecida e disse em alto e bom tom que havia sido baleada. Ela parece-me decidida a achar vocês. Corram, vão embora!

Chegávamos em casa exauridos, molhados de suor e amedrontados. Mamãe recebia-me à porta de casa, sem saber o porquê da correria e do cansaço e logo me indagava:

-O que aconteceu, menino?

-Uma alma penada baleada, mãe, vem correndo atrás da gente.

-Estava no cemitério, aposto!

-Foi o coveiro que nos falou.

-Oh! que coveiro inteligente!

Mais triste, após conversar por alguns minutos com o velho coveiro, venci o portão alto de ferro e localizei a sepultura dos meus velhos. A cal das paredes sepulcrais estava descascada. Sentei-me à beira dele e pus-me a conversar. Havia levado comigo apenas duas rosas: uma encarnada, outra branca. Esta para meu velho; aquela, para minha mãe.

Senti uma sensação estranha ao pô-las ao lado do crucifixo do túmulo. Achei que as havia posto para mim. Um pequeno arrepio lembrou-me disso. Desconversei comigo mesmo. O vento parecia agitar-se e ouvi a voz do velho Deolindo à minha procura.

-O que houve com você?

-Nada. Acabei de localizar o túmulo dos meus pais.

-E as flores?

-Quais?

O velho deu-me as costas e retornou cabisbaixo. Pensei que estivesse sendo vítima de sua esclerose. Não dei valor à cena. Rezei e conversei sei lá com quem. Pus água limpa no pequeno vaso de cimento, abandonado, e ajeitei para que se segurassem dentro dele as duas lindas flores que dei a mim mesmo em memória dos meus saudosos pais. Já saí do cemitério com um forte desejo de embriagar-me. Não havia chorado como de costume. Apenas demorei a retirar o olhar fitador sobre as rosas deixadas no túmulo.

-Uma hora dessa e você já está se embriagando?

-É seu o dinheiro com que vou pagar essa cachaça?

-Que não seja por isso. Beba até fartar-se. Sinta o gosto da morte. Como tio, acho que posso aconselhá-lo.

-Estou de cabeça quente, tio Armelindo. Não ligue para isso não. Sei lá...

Quando soube do acidente envolvendo o jovem Arnaldo, fui até a sepultura de seus pais, abri-a, preparei a gaveta superior para receber seu corpo. As duas rosas estavam perfeitas. Pareciam ter recebido o perfume àquele instante. Pus um pouco mais de água no jarro para compensar a que o sol havia sugado durante todo o dia cheio de calor e brilho. Já escurecia quando a procissão fúnebre trouxe-lhe o corpo para o sepultamento. Ouvi muito choro. Seu tio estava inconsolável.

Na saída do povo que cortejara o corpo dele, restou-me uma conversa simples e curta com aquele mesmo tio que mais chorava no sepultamento.

-É verdade que estivera aqui logo cedo?

-Veio conversar comigo sobre coisas do passado, pôs flores no túmulo que agora é seu também. Quando ele estava visitando a sepultura, ouvi um grito de pavor vindo dele. Apressei-me e, chegando lá, nada encontrei. Sonhei acordado que ele havia morrido.

-Morreu embriagado.

-Como sempre estava em vida.

-É..., pareceu destínico seu alcoolismo. Não conseguiu livrar-se dele. Tentou tantas vezes! Descansou agora!

-Este descanso é indesejável para todo o mundo. Ninguém quer.

-É..., eu sei.., mas...

-Livrou sua família dos vexames que sua embriaguez ofertava.

-Talvez isso.

Uma linda roseira que fazia perfumadas rosas bi coloridas fez touceira no túmulo de Arnaldo. Tiravam-lhe as rosas brancas de beiras róseas e as punham noutros túmulos. Diz a lenda que aquela roseira continua sendo aguada todas as noites pelos três que ali dormem. Algumas pessoas já viram. De longe eles erguem os braços e oferecem rosas. Quando se aproximam do túmulo, só sentem o perfume suave de flor com que o vento presenteia. Uma lenda, em que tantas almas creem fala de um cheiro perfumado para os que se dispõem a visitar o túmulo da família Lima. Eu, pessoalmente, já o senti. Gosto de visitar o túmulo das rosas.