CAIXA PRETA

_ Amor – ele ouviu atrás de si com um leve silvo no final, mas continuou concentrado com a faca no fio da antena externa, enquanto a televisão fazia o ruído de quem esta fora de sintonia.

O silencio foi grande depois de ela ter ensaiado começar, mas ele pensava isto, enquanto suas costas suavam, e a língua presa entre os lábios secos na mímica do esforço. A sua frente, uma janela aberta, irradiando um dia claro bom de ver lá fora.

Ela estava sentada no sofá, logo atrás dele, ele que estava sentado no chão cortando com a faca de cozinha a ponta do fio da antena: o jogo ia começar logo.

Domingo – pensou ela enquanto juntou os joelhos, fincou os cotovelos ali e apoiou o queixo nas mãos juntas, admirando aquela costa morena e quadrada, porem o pensamento recorria à outra coisa: aos filhos, dois, que estavam pela rua? Não; talvez rapidamente. Podia ser a imagem da televisão que iria aparecer? Podia, mas ela olhou obliquamente para a tela desta, assim quase como se não esperasse mais nada dali, tanto que riu.

Ele ergueu-se, suspirando forte, satisfeito, ajeitando o cabo da antena atrás da televisão e de imediato a tela desta tomando cores e formas: um casal brigava. Era um filme, norte-americano, o lar não espelhava a aparência comum, talvez coisa que nunca vira fora das telas, mas era como ela imaginava a sua casa quando ensaiou dizer-lhe algo depois de uma manhã toda de sorrisos secos e tácitos.

_ Amor – disse ela num tom mole, mas ele sentara ao seu lado de um modo tão calmo e indolente que ela deixara de imaginar.

Ele passou não apenas os olhos, mas suas mãos ásperas acariciaram os cabelos crespos e desalinhados dela, e assim tão calmo, sem palavras ele fazia-a calar. Ela emudecia agradecida, e logo notando que na televisão o filme acabara: o jogo ia começar, assim beijou-o no rosto, levantou-se dizendo que ia fazer o almoço, e ele esqueceu um pouco a televisão para reparar que as pernas dela ainda eram bonitas apesar das varizes, e ela voltou-se por sobre os ombros lançando-lhe um olhar dúbio, mas era de tédio apenas, apenas de tédio.

_ Então vamos ao jogo – disse ele alto até e nem soube por que, esfregando as mãos, todo concentrado para a tela da televisão, e nem reparou que ela voltara um pouco inclinada, rapidamente como para saber o que ela havia dito de verdade.

Rodney Aragão.

25 de agosto de 2008