OBJETO DIVINO

O que poderia dizer deste objeto? O fizemos hoje à tarde, nos preparando para usá-lo à noite, na alcova, como deve ser feito, embrenhados em alguma sombra da vigília, nos escondendo da lua, pois nem ela pode presenciar tal acontecimento. É algo único e exclusivo, para privilegiados ou não que, mirando-se na ponta do objeto, retiram ternas calmarias e turbulentas inquietações. Uma mescla de sensações, de euforia intensa, de tristeza profunda. Poderia muito bem dizer que este objeto transmuta nossa essência para além de nós mesmos. Não seria ousado afirmar que perdemos nossa identidade, todas elas, e nos tornamos leões presos em pequenas jaulas, de onde podemos apreciar somente uma pintura daquilo que foi nosso verdadeiro lar; ao invés de carne fresca, feno; ao invés de montanhas e estepes, chão enferrujado e carcomido pela urina; ao invés do céu, uma massa enegrecida pela chuva.

Não poderia dizer que moldamos calmamente o objeto, pelo contrário, fizemos com as mãos trêmulas, imaginando o momento de usá-lo, de perpetuá-lo, de fazê-lo exalar. Os olhos estalados, a respiração arfante, o coração descompassado; seria a emoção? Creio que sim! Nos sujeitávamos a este ofício por prazer, para, na verdade, matar o tempo. Não agüentávamos mais esperar até a noite, momento em que iríamos buscar o combustível da nossa obra. E o melhor: ficaríamos livres dos objetos improvisados, sem caráter, sem nosso toque especial... moldamos com nossas mãos, nossos dedos amarelentos. E logo o usaríamos... ah, se ansiedade matasse...

Ao terminarmos o colocamos para secar junto ao sol. O mesmo calor que o endurecia acabava por ferir nossos olhos sem luz que, perdidos em si mesmos, migravam para uma região inabitada, onde um corpo sem voz tentava clamar pela força felina que jazia ao fundo de uma cela... na verdade estávamos cansados, mas não tínhamos outra opção. Como louvadores sem deuses que, por mera coincidência forçada, encontram a estátua de algum ser divino, reconhecendo nesta aparição o seu júbilo, e assim se entregam em adoração. Ficamos a observar aquele objeto, reconhecendo nele a satisfação futura, e assim nos reconfortamos... não isentos de uma ansiedade destruidora e muda.

Cair da noite. Hora da caça. Rua. Calçadas estreitas. Calçada sem acabamento. Terra fria. Palmas que ecoam. Um vulto aparece acima do muro. Um pedido. Uma entrega. Uma saída rápida. Olhar para os lados antes de atravessar a rua. Cair da noite. Fim da caça. Recolhimento da presa. Volta ao objeto adorado. Hora do louvor.

* * *

O sol da manhã acompanhava todo o quintal, que estava coberto por um cimento enlodado, geometricamente trincado, com folhas secas da velha goiabeira pelo chão. Um cão passeava por lá, sem latir, estava em busca de algum resto de comida que não existia. Coçou a pelugem seca, que voava com o vento, aumentando o amontoado de pêlo negro no canto da parede sem reboque. Os olhos caninos viram, ao longe, um pequeno objeto estirado no chão. Correu imaginando ser um osso mas, que decepção, era um pequeno cachimbo. Estava ainda quente e cheirando a borracha queimada. O pequeno cão foi espantado por uma menina, quase tão pequena quanto ele que, ao reconhecer o objeto que seus irmãos adoraram durante a madrugada, ficou absorta em saber qual era seu poder, mas não saiu fumaça alguma quando o enfiou na boca, como uma chupeta, e o sugou. Apenas um gosto horrível e a vaga lembrança da noite passada...

No início foram risos e louvações, como os crentes que se encontram diante da imagem e da sensação de um bom deus, que eles mesmos criaram para diminuir sua pequenez, mas que revigora e sacia a fome; mas logo este deus, que era um deus castrador, mostrou sua outra face. E começou a dúvida, as perguntas sem explicação, a sensação de vazio, o medo, o rancor, o ódio... aquele deus os abandonara. Estavam irremediavelmente sozinhos. E a fumaça da louvação se converteu em insanidade e vazio. Estavam, literalmente, crédulos.

André Plez
Enviado por André Plez em 22/08/2008
Código do texto: T1140992
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